Em 6 de julho de 2020, Damares Alves, que exercia o cargo de ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pediu ao então presidente Jair Bolsonaro (PL) que não enviasse aos indígenas, que padeciam pela pandemia da covid-19, leitos de UTI, água potável, materiais de limpeza e higiene pessoal, ventiladores pulmonares e materiais informativos sobre a doença.
O pedido está numa nota técnica assinada por Esequiel Roque, que era secretário adjunto da Igualdade Racial, secretaria subordinada ao ministério de Damares. O documento foi revelado na época pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que o conseguiu via requerimento de informação. A ministra alegava que os povos indígenas não haviam sido "consultados pelo Congresso Nacional".
Em seu pedido, Damares alega: "Mesmo cientes da situação de excepcionalidade vivida pelo país e da celeridade em aprovar projetos de lei que beneficiem e protejam os povos tradicionais, os povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais, eles não foram consultados pelo Congresso Nacional".
Imediatamente, Bolsonaro acatou a determinação de sua ministra. Dois dias depois, em 8 de julho, Luis Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal adotasse medidas para conter o avanço da pandemia entre os indígenas.
A determinação de Barroso foi confirmada pelo plenário do STF um mês depois. Em agosto, o Congresso Nacional derrubou o veto de Bolsonaro e referendou a ordem da Corte.
Com Israel tendo completado 73 anos de sua declaração de independência em meio a novos crimes de guerra na Faixa de Gaza e a uma operação de limpeza étnica em Jerusalém, estamos republicando este artigo sobre a fundação e a evolução do Estado sionista, que concentra as grandes contradições não resolvidas do século XX. O artigo foi publicado originalmente em 29 de maio de 1998, depois de Israel ter completado 50 anos de sua fundação.
Israel comemorou os 50 anos de sua fundação em meio a uma crescente crise política e social do Estado sionista e tensões cada vez maiores com o povo palestino nos territórios ainda ocupados pelas forças israelenses, bem como com o mundo árabe ao redor.
Nenhuma das comemorações oficiais organizadas em Israel, nem as celebrações glamorosas e superficiais encenadas pelos amigos de Israel nos EUA e em outros países, tocaram nas profundas questões históricas subjacentes à fundação do Estado de Israel.
No nascimento e na evolução de Israel estão concentradas as grandes contradições não resolvidas do século XX. Suas origens essenciais estão em um dos maiores crimes da história contra a humanidade, o Holocausto nazista. O extermínio de seis milhões de judeus europeus foi, por sua vez, o preço terrível pago pela crise do movimento da classe trabalhadora provocada pela degeneração stalinista da União Soviética e da Internacional Comunista. Os crimes do Stalinismo e seu controle sobre o movimento operário impediram a classe trabalhadora de pôr fim ao sistema capitalista, que encontrou no fascismo sua última linha de defesa.
As derrotas da classe trabalhadora, os crimes do Stalinismo e os horrores do Holocausto criaram as condições históricas para a criação de Israel e a tentativa bem-sucedida do movimento sionista, auxiliado tanto pelo imperialismo americano quanto pelo Stalinismo, de igualar o sionismo ao judaísmo mundial. O movimento sionista e o Estado de Israel foram fundados, em última instância, no desânimo e no desespero. As traições do Stalinismo produziram uma desilusão na alternativa socialista que tinha exercido uma influência tão poderosa nos trabalhadores judeus em todo o mundo. Os crimes do fascismo alemão foram apresentados como a prova definitiva de que era impossível derrotar o antissemitismo na Europa ou em qualquer outro lugar. A resposta do sionismo foi conseguir um Estado e um exército e derrotar os opressores históricos do povo judeu em seu próprio jogo.
A trágica ironia dessa suposta solução é a associação de Israel do povo judeu – tradicionalmente e historicamente ligado à luta pela tolerância e liberdade – com a brutal repressão de outra população oprimida.
David Ben-Gurion leu a declaração da independência de Israel em 14 de maio de 1948, um dia antes do mandato do Reino Unido sobre a Palestina expirar. Em menos de um ano, as forças militares israelenses conseguiram expandir as fronteiras internacionalmente reconhecidas do país, enquanto mais de 750 mil árabes palestinos foram expulsos de suas casas em uma campanha sistemática de terrorismo e intimidação.
Ben Gurion descreveu a realização do Estado de Israel como a “culminação da revolução judaica”. Essa “revolução” representou a realização do objetivo político central do sionismo, o movimento nacionalista judeu fundado no final do século XIX. Antes da Segunda Guerra Mundial, o sionismo havia permanecido um movimento relativamente isolado, recebendo apoio principalmente de setores da classe média judaica. Mesmo na Palestina, existia entre os trabalhadores judeus um poderoso sentimento de classe para unir os trabalhadores judeus e árabes num movimento comum contra o capitalismo.
Embora o Holocausto tenha levado o sionismo ao poder de Estado, as verdadeiras relações entre os crimes cometidos pelo nazismo contra os judeus europeus e o movimento sionista foram objeto de sistemática distorção histórica. Israel é retratado como o refúgio necessário para os judeus fugindo dos campos de extermínio alemães. No entanto, a atitude do sionismo em relação à luta para salvar os judeus do extermínio não foi tão simples assim.
Esse é um dos muitos assuntos que os historiadores israelenses começaram a examinar. Conhecidos como os “novos historiadores”, que faz parte da escola “pós-sionista” ou “revisionista”, o surgimento dessa atitude crítica em relação à história de Israel é um dos sinais mais profundos da crescente crise do sionismo como uma ideologia e de Israel como uma sociedade.
Entre esses novos historiadores está Zeev Sternhell, autor de The Founding Myths of Israel, publicado recentemente em inglês. O livro de Sternhell desmascara alguns dos mitos mais poderosos do sionismo, principalmente que os líderes sionistas que fundaram Israel estavam tentando estabelecer um novo tipo de sociedade baseada em princípios igualitários e até mesmo o socialismo.
Esse historiador considera que o sionismo não era de modo algum único. Ele surgiu como uma expressão peculiar do nacionalismo europeu oriental do século XIX; um movimento baseado não em princípios democráticos universais, mas em concepções exclusivistas de hegemonia étnica, religiosa e linguística. Ironicamente, um movimento que reivindicou defender a libertação dos judeus encontrou um significativo terreno em comum com os antissemitas e os precursores nacionalistas de direita do fascismo alemão.
O sionismo, escreveu Sternhell, “foi desde o início a preocupação de uma minoria, que entendeu o problema judaico não em termos da existência física e da provisão de segurança econômica, mas como um empreendimento para resgatar a nação do perigo da aniquilação coletiva”. Ele percebeu que o maior perigo de aniquilação vinha da assimilação dos judeus pela sociedade moderna, particularmente através da atração de um crescente número de trabalhadores judeus para o movimento socialista.
Na medida em que os fundadores do Estado sionista tentaram identificar o sionismo com o movimento operário, a igualdade e o socialismo, escreve Sternhell, o sionismo tornou-se um “mito mobilizador”, destinado a ganhar os judeus da classe trabalhadora para a causa do nacionalismo. Ele argumenta que esse uso da fraseologia socialista tinha muito em comum com outros movimentos “nacionalistas” que buscavam o ressurgimento nacionalista na Europa, que, no limite, deu origem ao nazismo.
Certamente é possível afirmar que muitos outros movimentos nacionalistas ao longo do século XX, incluindo o nacionalismo árabe, que se apresentou como socialista e igualitário, utilizaram esse “mito mobilizador”. Em todos os casos, tais ideologias têm o propósito de encobrir os interesses da burguesia nacional e suprimir a luta independente da classe trabalhadora.
Quanto à justificação de Israel como o único refúgio possível para os judeus fugindo da opressão nazista, Sternhell, assim como outros historiadores – entre eles Tom Segev, autor do livro The Seventh Million, the Israelis and the Holocaust – apresentaram amplas evidências de que o resgate dos judeus europeus nunca foi uma preocupação primordial para o sionismo como um movimento, e que Ben-Gurion e outros líderes sionistas reagiram com indiferença em relação a esse resgate.
Prestes a eclodir a Segunda Guerra Mundial, com a ameaça do nazismo aos judeus da Europa cada vez mais clara, Ben-Gurion definiu o princípio que guiaria a atitude do movimento sionista durante o Holocausto: “Considerações sionistas têm precedência sobre os sentimentos judaicos... nós devemos agir de acordo com considerações sionistas e não apenas considerações judaicas, pois um judeu não é automaticamente um sionista.” Durante toda a guerra ele argumentou com sucesso contra aqueles que sugeriram que a Agência Judaica na Palestina voltasse sua atenção da construção da “Eretz Yisrael” (“Terra de Israel”) para o resgate dos judeus do nazismo.
Ao mesmo tempo, os sionistas não perderam tempo em fazer uso da catástrofe na Europa para seus próprios fins. Seus esforços foram bem-sucedidos à medida que a população judaica sem-teto e sem-pátria da Europa era direcionada à Palestina por razões geopolíticas bem definidas. Washington, que fechou as fronteiras dos EUA para os judeus que fugiam da opressão nazista, viu o surgimento do Estado judeu no Oriente Médio como um instrumento para afirmar sua própria hegemonia na região à custa da Inglaterra e da França, as antigas potências coloniais na região.
Fundado na luta para arrancar o controle da terra de seus habitantes árabes, Israel foi desde suas origens um estado militarizado, com o exército servindo como o pilar central da sociedade. Cercado por estados árabes hostis e colocando-se como uma nova forma de sociedade, fundada sob princípios de igualdade e vagamente socialistas, o novo Estado foi amplamente considerado oprimido e merecedor de simpatia popular.
Porém, tanto a realidade quanto a percepção do Estado de Israel mudaram à medida que se tornava uma força militar indiscutível e passava a ser única potência nuclear na região. Primeiro veio a guerra de Suez em 1956, na qual Israel rapidamente tomou a Península do Sinai. A guerra de 1967 redesenhou novamente o mapa do Oriente Médio, estabelecendo os parâmetros do atual conflito. Com o apoio dos EUA, Israel invadiu o Egito, a Síria e a Jordânia, conquistando a Cisjordânia, as Colinas de Golã e a Faixa de Gaza, que ocupa até hoje. O sionismo e o Estado de Israel surgiram como uma força de agressão e expansionismo. Israel depois travou outras guerras contra o Líbano, onde continua a ocupar uma “zona de segurança” no sul.
A inicial expansão militar de Israel foi possível graças a uma maciça e contínua ajuda econômica e militar dos EUA. A “relação especial” entre Washington e Israel, que inclui uma ajuda anual de 3 bilhões de dólares dos EUA ao Estado judeu, não se estabeleceu por princípios compartilhados entre os dois países ou por simpatia dos EUA pela opressão histórica do povo judeu. Ao invés disso, os EUA apoiam Israel como um estado de guarnição que serve para suprimir os esforços revolucionários das massas do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que fornece um meio de ampliar a influência dos Estados Unidos nesta região estrategicamente vital produtora de petróleo.
O militarismo israelense foi acompanhado do crescimento de tendências políticas e sociais reacionárias dentro do próprio Estado de Israel. A ocupação e administração de Israel da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, exercendo uma ditadura política sobre cerca de um milhão de palestinos, não apenas expôs o caráter opressivo do Estado israelense, mas trouxe à tona todas as contradições incorporadas no sionismo como um movimento.
Em 1968, assentamentos sionistas foram iniciados na Cisjordânia e em Gaza, ambas recentemente ocupadas, com o objetivo de servir como postos paramilitares na linha de defesa contra ataques de guerrilheiros palestinos contra Israel. Enquanto o governo do Partido Trabalhista inicialmente apresentou os assentamentos tendo não mais do que um caráter defensivo, o que não impediria a devolução dos territórios à Jordânia e ao Egito, a questão da Cisjordânia e da Faixa de Gaza rapidamente se tornou o ponto central da política israelense.
A oposição de direita sob a liderança de Menachem Begin exigiu que os territórios fossem colocados sob o domínio israelense, alegando que eles eram as terras bíblicas de Samaria e da Judéia, prometidas por Deus ao povo judeu. Trinta anos depois, a questão ainda não foi resolvida, apesar da tão anunciada paz no Oriente Médio, intermediada pelo governo Clinton e assinada por Israel e pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Cento e quarenta e quatro assentamentos estão espalhados pelos territórios, habitados por 160.000 colonos, muitos deles nacionalistas extremistas e fanáticos religiosos que estão fortemente armados.
Os assentamentos continuam a crescer a uma taxa de 9% ao ano, apesar do acordo assinado com a OLP. O governo israelense insiste que suas forças devem controlar as estradas de acesso a esses enclaves e sua conexão com o próprio Israel. Isso por si só expõe o caráter amplamente simbólico de qualquer estado palestino “independente” que possa surgir desse processo. A Autoridade Palestina é deixada para policiar pequenos territórios, principalmente cidades empobrecidas, enquanto permanece cercada e isolada por tropas israelenses. Como o impasse nas negociações intermediadas pelos EUA deixa claro, o Estado de Israel não está preparado para fazer quaisquer alterações fundamentais na situação atual.
A motivação de Israel para assinar o acordo no Oriente Médio foi, em primeiro lugar, impedir um levante revolucionário das massas palestinas nos territórios ocupados, que tomou forma embrionária na intifada iniciada em 1987. Apesar da contínua e brutal repressão, Israel provou incapaz de derrubar esta rebelião sem a colaboração direta da OLP.
Ao mesmo tempo, a classe dominante israelense estava ansiosa para escapar dos custos econômicos e sociais punitivos associados à ocupação, tanto em termos de gastos militares quanto do status de Estado-pária que Israel adquiriu em todo o mundo árabe e para muitos outros países.
Mas, como mostraram o assassinato de Yitzhak Rabin em novembro de 1995 e o subsequente retorno ao poder da direita israelense sob o comando de Benjamin Netanyahu, não é tão fácil escapar das contradições históricas do sionismo. A política de assentamentos iniciada pelo Partido Trabalhista gerou uma camada nacionalista e semifascista de direita, que produziu o assassino que tirou a vida de Rabin. Cada vez mais, o debate sobre o futuro dos assentamentos, bem como o cada vez maior conflito entre os judeus israelenses seculares e religiosos, possui o caráter de uma “guerra civil”.
Com poder desproporcional no governo, os partidos políticos ultra-ortodoxos de Israel impuseram cada vez mais os ditames da lei religiosa judaica em áreas anteriormente consideradas seculares. Todo o controle administrativo sobre nascimentos, casamentos e funerais foi colocado nas mãos do rabinato ortodoxo, para grande consternação de judeus conservadores, reformados e seculares. Os membros ortodoxos do Knesset, o parlamento israelense, que desempenham um papel crucial em formar a maioria dos governos de coalizão, estão exigindo leis que fechem as estradas e acabem com os voos da El Al, a companhia aérea nacional, aos sábados. Muitas comunidades se dividiram amargamente entre judeus ortodoxos e seculares, chegando ao confronto físico entre eles.
Não menos profundos são os abismos sociais que surgiram em Israel. Em um país que já afirmou precisar de todos os imigrantes judeus para o trabalho de construção nacional, 8,2% está desempregada de acordo com os números oficiais. Os desempregados estão concentrados nas empobrecidas “cidades de desenvolvimento”, como Ofakim, no deserto de Negueve. Nessa cidade, tumultos começaram seis meses atrás, depois que a taxa de desemprego chegou a 14,3%.
Os judeus etíopes também se revoltaram no ano passado com o tratamento desigual dado a eles. O ressentimento dos judeus sefarditas, aqueles originados no mundo árabe, contra o establishment asquenazita, ou judeu europeu, emergiu como um volátil e importante fator na política israelense. Menachem Begin foi capaz de manipular esse ressentimento à direita, em grande parte devido à flagrante contradição entre as pretensões socialistas dos fundadores sionistas de Israel e a imensa polarização social que existe hoje na sociedade israelense.
Uma contradição econômica essencial continua a minar tanto o projeto sionista quanto a concepção subjacente ao acordo de paz do Oriente Médio de uma nova parceria econômica entre a burguesia israelense e suas contrapartidas árabes. O setor que mais cresce em Israel é o de alta tecnologia, que não produz nem para o mercado nacional nem para o regional. 96% das exportações de Israel e 93% de suas importações são realizadas com áreas fora do mundo árabe.
Enquanto o impasse sobre os territórios ocupados congelou em grande parte o crescimento dos laços econômicos entre árabes e israelenses, o desenvolvimento de tais relações acabaria acontecendo à custa das massas de trabalhadores, tanto árabes quanto judeus. O mundo árabe oferece ao capitalista israelense a perspectiva de novas reservas de mão-de-obra barata para diminuir ainda mais as condições de vida dos trabalhadores em Israel.
Enquanto isso, nas áreas administradas pela OLP em Gaza e na Cisjordânia, os trabalhadores palestinos estão descobrindo que sua situação de opressão social só piorou, ao mesmo tempo que uma pequena camada de burocratas do governo e homens de negócios com conexões políticas aumentam suas fortunas.
Cinquenta anos após a fundação de Israel, a utopia sionista reacionária de um Estado nacional em que os judeus do mundo todo puderam encontrar refúgio, unidade e igualdade foi realizada através de um estado capitalista criado pela expropriação de outro povo e mantido através da guerra, repressão e desigualdade social. Como o assassinato de Rabin e outros atos violentos das forças de extrema direita cultivadas pelo Estado sionista mostraram, há o perigo de que o próprio Israel reproduza as condições de ditadura e de guerra civil das quais uma geração anterior de judeus europeus fugiu.
O beco sem saída do sionismo é uma expressão peculiar do fracasso de todos os movimentos que se basearam na perspectiva do nacionalismo para resolver qualquer uma das questões fundamentais enfrentadas pelas massas trabalhadoras. Isso não é menos verdadeiro para os países árabes, onde as elites dominantes manipularam sentimentos nacionalistas e um amargo ressentimento de Israel a fim de desviar as lutas sociais da classe trabalhadora.
Há apenas uma maneira de superar as contradições da sociedade israelense: unindo os trabalhadores árabes e judeus em uma luta comum contra o capitalismo e pela construção de uma sociedade socialista, que derrubaria as fronteiras artificiais que dividem os povos e as economias da região. Só assim a região pode se libertar da guerra e da opressão, alimentada pelo impulso dos lucros dos capitalistas estrangeiros e das classes dominantes nativas.
Ô pessoal, cuidado que hoje levantei da cama
com o pé esquerdo! Agarrem os braços da poltrona, vamos iniciar uma viagem um
pouco sacudida!
No princípio da nova gestão
estadual, convencido de que, agora sim, teria mais audiência para minhas
sugestões, estabeleci uma lista de propostas culturais bacanas e baratas para
animar o centro histórico de Salvador e pedi audiência à responsável, versão
morena da falsa loira de outrora. Quando cheguei ao encontro marcado, a senhora
diretora estava tão ocupada, coitada, que não poderia me atender. O braço
direito da dita também tinha mais o que fazer. Pediu a uma jovem assistente
para me ouvir, o que esta fez com extrema educação e paciência. Deixei cópia de
minhas sugestões à amável representante de terceiro escalão e saí da mesma
forma que tinha entrado.
Ninguém se dignou nunca em me
dar nunca a mínima resposta. Também, quem sou eu?
O tempo passou, até que um
belo dia, via Unesco-Paris, descubro que algumas de minhas ridículas idéias estavam
sendo realizadas. Mandei a 500 endereços internet cópias da agenda e da minha
lista. Foi um Deus-me-acuda geral. Pediram-me insistentemente por favor seu
Dimitri, faça um comentário sobre esta agenda, já que o senhor é o pai das
crianças. Redigi duas líneas. Foram publicadas vapt-vupt em algum e-mail
descartável. Tudo bem. Não vamos fazer uma tempestade num copo d´água pouco
transparente.
De repente, a poucos dias da
primeira feira de antiguidades, a responsável pelo Escritório de Referências,
me manda um e-mail informando que a senhora diretora me deseja curador da dita
feira. Não é maravilhoso? A própria senhora diretora sugere, como pró-labore,
equiparação com minha curadoria da retrospectiva de Eckenberger no Palacete das
Artes. Tudo bem. Sempre chegado a desafios, aceito o convite, sob certas
condições a debater em
breve. Não sou mais criança, gente! Mesmo assim começo a me
mexer. Consigo informações sobre a feira do Lavradio, no Rio de Janeiro e da
Benedito Calixto, em São
Paulo. E até os estatutos da associação da feira paulista.
No sábado errado – lógico
seria no primeiro sábado do mês, quando a gente tem alguma grana a gastar
– a feira é inaugurada, mas reservada
aos únicos comerciantes da rua Ruy Barbosa e dois do Pelô. O Cabral Descobertas,
do Carmo, por exemplo, não foi nem lembrado, e os do Rio Vermelho, Vitória e
Graça foram excluídos sem direito a apelação. Ninguém entendeu porquê.
Choveu a cântaros naquele
dia. Ninguém vendeu nada. Mesmo assim, expositores e comerciantes do Cruzeiro
de São Francisco louvaram a iniciativa.
Marcamos nova reunião de
trabalho para uma sexta, fim do expediente, mas, no último momento, a senhora
diretora teve uma indisposição e mandou remarcar a reunião para a segunda-feira
seguinte. Também não veio naquela data, pela mesma inquietante indisposição.
Felizmente, ela estava com ótima aparência, três dias depois, na inauguração da
Praça Jubiabá. Não se dignou em falar comigo, mas fiquei muito aliviado ao
constatar sua ótima aparência.
Quem acha que haveria alguma
seqüência, está enganado. Por duas vezes mandei e-mails à senhora diretora
pedindo definição da proposta. Não obtive a mínima resposta.
No terceiro tive direito a
resposta, sim. Ríspida e impaciente
Tive pena de uma frágil
senhora sucumbindo sob o colossal peso do cargo
Funcionário público não tem
satisfação alguma a dar a seja quem for, menos ainda ao contribuinte que paga
seu salário.
Nunca esta senhora se dignou,
com toda razão, em se encontrar comigo, rastejante e desprezível verme fugido
de algum aquário de laboratório.
Alguma definição essa atitude
tem. Deixo ao leitor a escolha do termo.
Dimitri Ganzelevitch Salvador, 20 de novembro de 2008.
Segundo Angélica Sobral, ela andou por todo centro da cidade, além de ir em alguns bairros pensando em encontrar um cinema, uma casa de cultura, alguém fazendo voz e violão em algum canto, um recital, mas para a sua decepção, só encontrou bares e maisbares com músicas... além da altura que estava, acho que ela observou que não estava na cidade que tanto ouviu falar lá fora e sim na cidade dos bares.
A terra de tanta gente famosa e de outras que não são famosas, mas que mantém Santo Amaro de pé. Sobral ficou mais arrasada ao ficar frente a frente com a Casa do Samba e a sua decadência e ao lado o Teatro que leva o nome de Dona Canô, mas faz tempo que não funciona...
Trecho do texto "A CIDADE DOS BARES " - Valdir do Carmo, Santo Amaro, Bahia.
A pedido do Bradesco, a juíza Andréa Galhardo Palma autorizou busca e apreensão de e-mails entre executivos e grandes acionistas da empresa – atingindo diretamente o trio 3G, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles.
Também mudou o comitê de auditoria – 3 técnicos, sendo que 2 tinham relações de negócio com as Americanas. Em seu lugar, convidou a Ernest Young para a auditoria independente.
As provas colhidas poderão ser utilizadas também nos Estados Unidos, já que as Americanas tinham ADRs na Bolsa de Nova York. O próximo passo será identificar ativos dos controladores, para ressarcir as vítimas – empregados, fornecedores, detentores de títulos da dívida e bancos.
Seria interessante conferir os imóveis ocupados pelas Americanas. Em janeiro de 2007, a rede adquiriu a Blockbuster – empresa de aluguel de vídeos – por R$ 186,2 milhões.
Em agosto de 2011, os imóveis foram vendidos para a São Carlos Empreendimentos e Participações S.A e a H.T.K.S.P.E. Empreendimentos e Participacoes Ltda – ambas dos controladores das Americanas -, com uma série de controladas debaixo do mesmo guarda-chuva.
Certamente serão alvos dos credores, na próxima etapa dos processos.
A lista de credores
Uma análise da lista de credores da empresa mostra grandes passivos de fabricantes de eletrodomésticos, livrarias e até fabricantes de chocolate. Mas há pouquíssimo passivo com os fundos de investimentos imobiliários abrigados no guarda-chuva da São Carlos.
Segundo levantamentos da repórter Patricia Faermann, do GGN, a HTYSPE Empreendimentos tem apenas R$ 33 mil a receber. É o maior passivo. A Best Center Centro Paulista Empreendimentos tem apenas R$ 2 mil em atraso. A Best Center Vale do Paraíba outros R$ 1,7 mil. A SC Varejo Campina Grande Empreendimentos, R$ 8,6 mil. Todas essas empresas compartilham o mesmo endereço da São Carlos.
Ainda não se sabe o destino das Americanas. Mas o episódio serviu para expor, da forma mais crua possível, o estilo de governança da 3G. E mostrar, de forma didática, os riscos que traz para o país a manutenção, em suas mãos, do controle da Eletrobras.
A empresa é a maior geradora de energia do país. É essencial para garantir não apenas o custo da tarifa residencial e dos pequenos negócios, como o próprio equilíbrio do mercado livre de energia.
Sabendo-se do estilo Lemann, de atrasar pagamentos e manipular balanços para otimizar o pagamento de dividendos e sabendo-se da volatilidade do mercado de energia em episódios de crise climática, o país estaria exposto a um movimento especulativo fatal, manipulado pela 3G.
Uma saída interessante seria a expropriação das ações da 3G na Eletrobras – pelo valor fixado para o aumento de capitais – com o pagamento sendo utilizado para ressarcir seus credores.
Yves Saint Laurent, o costureiro que vestiu as mulheres em luta pela emancipação
A cidade é Paris, o ano é 1966. Na primeira fileira da plateia, em um elegante salão de alta-costura, você assiste a um desfile de moda.
De repente, em meio a um coro de murmúrios e exclamações de surpresa e admiração, entra na passarela uma modelo. Ela não está usando vestido — mas, sim, um terno elegante e impecavelmente cortado, composto por jaqueta e calça.
Se hoje uma mulher de terno deixou de ser motivo para tanto frisson, isso se deve, em grande parte, a um estilista chamado Yves Saint Laurent.
Nascido na Argélia em 1936, filho de pais franceses, Saint Laurent é tido como o homem que vestiu as mulheres em sua luta pela emancipação, além de ter sido também um "democrata" da moda — o primeiro grande nome da alta-costura a abrir sua própria boutique e oferecer versões prêt-à-porter de suas criações exclusivas a preços mais acessíveis.
Em uma edição dedicada a Saint Laurent, o programa The Forum, do Serviço Mundial da BBC, reuniu três profissionais do mundo fashion para falar sobre a vida e a obra daquele que foi, para muitos, um revolucionário da moda.Pule Matérias recomendadas e continue lendo
Fim do Matérias recomendadas
Os entrevistados — Olivier Flaviano, ex-diretor do Museu Yves Saint Laurent, em Paris; Emilie Hammen, professora de história da moda no Institut Français de la Mode, em Paris; e o estilista Charles Sébline, um dos últimos assistentes de Saint Laurent, que trabalhou com ele durante seis anos — contam histórias e tentam definir o estilo e a maneira como ele pensava a moda.
Os três iniciam o bate-papo dizendo quais são suas peças favoritas do estilista.
Leia, a seguir, este e outros trechos da conversa.
Um terno, um vestido e um casaco — três obras-primas
Curiosamente, os franceses usam uma palavra inglesa, smoking, para dar nome ao terno, que os ingleses chamam de suit.
Segundo uma teoria, o termo smoking adotado pelos franceses teria sua origem na era vitoriana, quando surgiu, entre homens ingleses, a moda de vestir uma jaqueta específica para fumar— a chamada smoking jacket.
Emilie Hammen diz que se pudesse escolher uma peça de Saint Laurent para vestir, escolheria uma das versões do smoking que ele criava com maestria.
"Foi uma de suas criações pioneiras em 1966, uma peça que ele reinterpretou ao longo de toda a sua carreira", explica.
"Enquanto mulher, jovem e profissional, escolho Le Smoking."
Com seu terno incrivelmente ousado (para a época), Saint Laurent começava a imprimir sua marca na história da moda.
A peça favorita de Olivier Flaviano, por outro lado, nos leva para quase meio século depois, para o momento em que o estilista se despede da carreira.
A última coleção de Saint Laurent foi lançada em 2002, coincidindo com uma retrospectiva da obra do estilista no centro cultural parisiense George Pompidou.
A coleção de primavera/verão incluía uma série de vestidos de chiffon de seda. Flaviano diz que escolheria um deles.
"Acho que representam aquilo que Saint Laurent procurara sua vida inteira", ele analisa.
"Essa linha pura, simples. Ele costumava dizer que o que ele realmente queria encontrar era um jeito de criar um vestido que fosse nada e tudo ao mesmo tempo."
Já a peça favorita de Charles Sébline, ex-assistente do estilista, foi lançada na primavera/verão de 1971.
"Eu escolheria uma peça de uma de suas coleções inspiradas na década de 1940, intitulada Libération, que causou escândalo e recebeu péssimas críticas", conta Sébline.
"Era extraordinária, muito revolucionária. Eu escolheria um casaco com penas de avestruz em múltiplas cores que ele exibiu tendo como acessório um turbante de veludo preto."
"Adoro essa peça porque ela é lúdica e moderna, mas ao mesmo tempo revela uma incrível habilidade e savoir-faire."
"Adoro a forma como ele consegue equilibrar as duas coisas: ele rompe com a sisudez da alta-costura, mas ao mesmo tempo respeita essa tradição. É uma peça linda, poderia ser vestida hoje", diz Sébline.
Da Argélia para a Maison Dior, em Paris: 'Um dia vou trabalhar aqui'
Yves Saint Laurent descobriu cedo sua vocação. Adolescente, apaixonado por moda e teatro, vivendo na Argélia durante a colonização francesa, ele comprava revistas de moda importadas da metrópole — e logo começou a costurar para a mãe e as duas irmãs.
Em 1953, aos 17 anos, ganhou o terceiro prêmio em uma competição de moda organizada por uma entidade internacional que promovia o uso de lã.
Costureiros famosos, como Hubert de Givenchy e Christian Dior estavam entre os jurados. Para receber o prêmio, ele viajou com a mãe para Paris. Nessa viagem, conheceu alguém que, dois anos mais tarde, teria um papel crucial em sua carreira: o então editor-chefe da revista Vogue francesa, Michel de Brunhoff.
Saint Laurent era ambicioso e sabia o que queria. Charles Sébline conta que, em seu período trabalhando no ateliê de alta-costura do estilista, ouviu da diretora da casa uma história reveladora. Em visita a Paris, passeando pela Avenue Montaigne com a mãe, o jovem Saint Laurent teria apontado para um prédio e dito: "Um dia vou desenhar roupas ali". O prédio era nada mais, nada menos do que a Maison Dior, responsável por quase 50% das exportações de alta-costura da França.
Anos mais tarde, em junho de 1955, vivendo na capital francesa, Saint Laurent enviaria ao editor da Vogue uma coleção de esboços. Impressionado com a qualidade dos desenhos, De Brunhoff os teria mostrado a Christian Dior. É assim que YSL concretiza seu plano e começa a trabalhar para a grife francesa mais importante da época.
Mas para entendermos o efeito transformador que o estilista teve no mundo da moda, é preciso explicar como era esse universo antes dele surgir.
O mundo da alta-costura antes de Saint-Laurent
Após a Segunda Guerra Mundial, o setor da alta-costura renasce e vive uma de suas fases áureas. Estilistas resgatam o esplendor, a beleza e opulência característicos do período entre as duas guerras, com uso generoso de tecidos e bordados.
Mulheres de uma certa posição social não compram roupas prontas — elas vestem modelos exclusivos criados para elas nos ateliês de grandes costureiros. Ou seja, vestem haute couture, termo francês para alta-costura. Mas o que é alta-costura?
"A alta-costura é um jeito de criar moda que surgiu em Paris em meados do século 19", explica Emilie Hammen.
"Nesse período, ocorre um reposicionamento do papel e imagem da pessoa que cria moda. O criador de moda se estabelece como um artista da moda, e é por isso que, mais tarde, a alta-costura passa a ser considerada uma forma de arte."
Ela prossegue:
"A alta-costura surge, então, da junção entre o mundo criativo das belas artes e as técnicas de costura manuais."
Para ser percebida como arte, no entanto, a alta-costura requeria certos rituais.
"Isso é algo que os grandes costureiros sempre fizeram questão de preservar", diz ela.
"Primeiro, você ia (ao ateliê) para que fossem tiradas as suas medidas. Algumas semanas depois, você retornava para fazer a primeira prova. Depois, você retornava tantas vezes quantas fossem necessárias para que essa grande obra fosse aperfeiçoada."
Na França, no final da década de 1940 e início dos anos 1950, o circuito da alta-costura é dominado por figuras como Christian Dior e Cristóbal Balenciaga, entre outros.
Entra em cena Yves Saint Laurent. Ele começa a trabalhar na Maison Dior no verão de 1955 e, dois anos depois, é promovido a assistente de Christian Dior. Em 1957, no entanto, Dior morre inesperadamente, vítima de um ataque cardíaco. Saint Laurent, aos 21 anos, é alçado ao posto de sucessor do grande costureiro.
Aos poucos, o estilo de Saint Laurent começa a se destacar da tradição estabelecida por Dior.
Para Charles Sébline, isso fica evidente na última coleção do estilista para a Maison Dior, a coleção Beatnik, lançada em 1960.
"Nessa coleção, você começa a ver um dos traços característicos do estilo de Saint Laurent, que é a influência da (moda da) rua."
"Havia nessa coleção uma peça chamada Chicago, uma jaqueta de (pele de) crocodilo com detalhes em vison. É revolucionária. Acho que essa é a primeira coleção verdadeiramente dele, e ele cria essa coleção ainda na Maison Dior."
"Ironicamente, foi justamente a modernidade dessa coleção que teria provocado sua demissão", conta Sébline.
É também nesse período que Saint Laurent conhece o homem que seria seu companheiro de vida e sócio, tido por muitos como um dos pilares do sucesso comercial do estilista: Pierre Bergé.
Em 1960, Saint Laurent é convocado para lutar contra a Argélia, que travava uma guerra de independência para se libertar do domínio francês. Ele não resiste aos campos de treinamento — sofre uma crise nervosa e vai parar no hospital. Demitido da Maison Dior, ainda na cama do hospital, ele propõe a Bergé que os dois abram juntos um ateliê de alta-costura, e que Bergé seja o administrador.
"Bergé era um gênio por sua habilidade de se adaptar a qualquer situação", diz Sébline.
"E sempre encontrava um jeito de criar espaço para a criatividade de Saint Laurent. Eram opostos que se complementavam."
Vestidas para a batalha — como a moda de Saint Laurent deu poder às mulheres
Livre para criar, Saint Laurent se estabelece no mundo da moda. Emilie Hammen tenta definir a visão e o estilo por trás de suas criações.
"Um traço que dominará sua carreira é a forma como ele vê as mulheres. Ele não estava interessado em criar uma imagem idealizada da mulher, algo que Dior, como um pintor do século 18, teria feito. Ele era mais pragmático. Era como se ele se perguntasse: Como é que vou vestir essas mulheres?"
E vai além: "Como é que você veste mulheres jovens, que no início da década de 1960 vão ter acesso a mais oportunidades profissionais?"
"Estamos falando de um guarda-roupa completo, com terno, casaco, blusas — que ele reinventará durante toda a sua vida."
Alguns estilistas buscam uma nova estética a cada nova estação, segundo Hammen — Saint-Laurent, não.
"Para Yves Saint-Laurent, não se tratava de renunciar a tudo o que ele havia feito na coleção anterior. Para ele, a ideia era continuar trabalhando nessas peças icônicas, que ele vai reinterpretar coleção após coleção, década após década."
Flaviano lembra uma frase famosa do estilista:
"Saint-Laurent dizia: A moda desaparece, mas o estilo é eterno."
"As peças icônicas que Emilie (Hammen) mencionou definem o estilo de Yves Saint Laurent, e esse é o estilo que acompanhará as mulheres em sua emancipação."
Aqui, Flaviano toca em uma questão recorrente em discussões sobre a obra do estilista: podemos dizer que ele era um feminista?
Seu companheiro, Pierre Bergé, costumava dizer que Coco Chanel tinha dado às mulheres a liberdade, mas Saint Laurent tinha dado a elas o poder.
Flaviano, no entanto, não acha que se tratava de feminismo.
"Eu não diria que ele era um feminista, mas ele acompanhou as mulheres em sua emancipação", afirma.
"Quando você observa as roupas emblemáticas que definiram os dez primeiros anos da carreira de Saint Laurent, o que é interessante é que são roupas utilitárias. O macacão é a roupa do aviador, o trench coat é a roupa do Exército britânico, a pea jacket é a roupa dos marinheiros."
Além de utilitárias, ele continua, são roupas masculinas que Saint Laurent adapta para o corpo da mulher "para expressar sua feminilidade, mas também para dar a ela, junto a aqueles códigos, o poder".
"Difícil estabelecer quem veio primeiro, o smoking de Yves Saint Laurent ou a segunda onda feminista", analisa Emilie Hammen.
"Mas é verdade que os objetos que ele criava geravam imagens muito fortes, imagens de moda, e não precisamos demonstrar o impacto que imagens de moda podem ter na construção da identidade feminina."
"E embora ele não seja o único responsável por essas grandes mudanças, nas batalhas pelos direitos das mulheres travadas na França na década de 1970, ele com certeza contribuiu para o discurso visual que levou a essas grandes mudanças", ela acrescenta.
Hammen está falando do efeito simbólico da moda sobre o imaginário coletivo daquela época. Flaviano tenta expressar de forma mais concreta o mecanismo pelo qual, na visão dele, a moda de Saint Laurent transferiu poder às mulheres:
"O smoking era vestido por homens que, depois do jantar, se retiravam para a sala de fumar e ali fumavam charutos e falavam de política e economia. Então, criar um smoking para as mulheres significava, claro, dar a elas esses códigos, mas também permitir a elas que fumassem, usassem calças e, junto a isso, falassem de política e economia."
Rive Gauche — Yves Saint Laurent inventa a moda prêt-à-porter
Uma outra forma pela qual Saint Laurent imprime sua marca na história da moda é abrindo uma boutique e criando sua primeira coleção prêt-à-porter (que pode ser traduzida como "pronta para vestir").
"O nome dessa nova linha, Rive Gauche, que vai existir paralelamente à linha de alta-costura, sugere uma conexão com a geografia da moda em Paris", explica Hammen.
Rive Gauche, em francês, quer dizer margem esquerda. E é à esquerda do Rio Sena, na Rue de Tournon, em Paris, que o estilista abrirá sua loja.
Já a alta-costura, acrescenta Hammen, tinha sido fundada à direita do rio.
"A Maison Dior, por exemplo, fica na Avenue Montaigne, na margem direita", diz ela.
"Ao escolher a margem esquerda, onde estão as universidades e os cafés, Saint Laurent está enviando uma mensagem. Ele está redefinindo a prática, a criação e o consumo da moda."
Agora, em vez de fazer incontáveis provas de roupa, as mulheres pegavam as peças na prateleira.
"Ele foi o primeiro mestre da alta-costura a abrir uma boutique", diz Flaviano.
"Ele costumava dizer que seria muito triste se a moda fosse apenas para os clientes ricos."
Outra coisa que ele dizia, lembra Charles Sébline, é que queria ter sido o criador da calça jeans.
"Isso mostra o quanto ele queria vestir as ruas, ser relevante. Daí a importância da Rive Gauche."
"Para Yves Saint Laurent, a alta-costura era um laboratório em que ele fazia seus experimentos criativos. E a linha prêt-à-porter era onde muitas das ideias testadas na alta-costura desaguavam e eram recriadas em escala industrial. Dessa forma, ficavam mais acessíveis para a mulher que trabalhava", acrescenta Hammen.
A marca YSL — pioneirismo no marketing da moda
Saint Laurent e seu parceiro Pierre Bergé foram pioneiros também na forma como promoveram sua marca. Há, inclusive, quem veja um certo cinismo nas estratégias usadas pela dupla para persuadir o público a comprar o estilo de vida incrivelmente glamouroso que a marca YSL representava.
A esses críticos, Emilie Hammen diz o seguinte:
"A arte da moda é algo complexo. Você não constrói um nome como costureiro apenas criando belas roupas", argumenta.
"Fazer uma roupa é uma coisa, ser um homem de negócios talentoso é outra."
Para ela, a forma como Bergé construiu uma imagem em torno do estilista e da Maison Yves Saint Laurent é muito interessante.
"Os bastidores de um ateliê de moda exercem um grande fascínio, e Bergé percebeu isso. Ele tinha muita consciência de seu papel, como condutor dessa narrativa."
Yves Saint Laurent apareceu nu na campanha de lançamento de seu perfume para homens. E seu apelo era reforçado também por sua associação com mulheres famosas — entre elas, a atriz francesa Catherine Deneuve.
"Deneuve era a número 1. Parte da genialidade de Saint Laurent e Bergé foi sua associação com essa importante e icônica atriz francesa. Essa mulher loura, incrivelmente linda. Eles fizeram um casamento que durou 40 anos."
Yves Saint Laurent — o homem e seu legado
Ao discutir o legado de Yves Saint Laurent para a moda e para as mulheres em particular, Olivier Flaviano cita uma frase do companheiro do costureiro.
"Bergé costumava dizer, basta olhar para as mulheres nas ruas e você vai ver o maravilhoso legado de Yves Saint Laurent. Toda mulher, mesmo sem saber, deve alguma coisa a Yves Saint Laurent. Por usar calça comprida, por usar um trench coat."
Na opinião de Emilie Hammen, o legado do grande mestre também está presente no mundo da arte.
"O vestido Mondrian pertence à história da arte assim como à história da moda, é um 'momento pop art', essa atitude de pegar uma obra de arte icônica e colocá-la nessa commodity que é um vestido — embora seja um vestido de alta-costura", diz.
Ela inclui, na mesma categoria, a coleção Ballet Russe, de 1976, em que Saint Laurent reinterpreta a arte folclórica russa.
"São dois momentos em que Yves Saint Laurent elabora um diálogo complexo e fascinante entre as duas (arte e moda)."
Mas muitos talvez se perguntem: e Saint Laurent como pessoa? Como ele era? Charles Sébline conta sobre a experiência de ter trabalhado com o grande estilista.
"Não falava muito, mas quando falava, era sempre com bondade. Assisti-lo trabalhar era extraordinário. A atmosfera no estúdio era maravilhosa."
Uma vez, lembra Sébline, os dois estavam trabalhando sozinhos no ateliê, e Saint-Laurent estava consultando, como referência, o álbum de fotos de uma coleção que havia criado em 1971. O costureiro olhava uma foto em particular.
"Eram suspensórios de zircônia sobre um tronco nu, por baixo de um smoking preto. É um visual muito icônico."
"Ele colocou o álbum (de fotos) em cima da minha mesa e perguntou: 'O que você acha?' Mas eu acho que ele era tímido demais para ouvir a resposta", comenta Sébline.
"Então, ele foi para o corredor. Depois voltou e perguntou: 'O que você acha?' E eu falei: 'É extraordinário, é de tirar o fôlego'. E é um visual que foi reinterpretado por tantos outros designers."
"Ele tinha essa forma de criar uma relação muito tocante, e era incrivelmente apaixonado pelo que fazia. Mesmo nos últimos anos de sua carreira, tinha controle completo sobre sua arte."