O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas sociais”. Entrevista especial com Manuel Domingos Neto
Para o professor e pesquisador, autor do livro ‘O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional’ (2021), na história doPor: IHU e Baleia Comunicação | 16 Janeiro 2025
Até a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros eram
bastante desorganizados enquanto corporação. Tudo, porém, começa a mudar após o
conflito e vão conformando progressivamente a atuação das Forças Armadas até
a atualidade, sem jamais passar por uma reforma mais do que necessária. É por
isso que, hoje, os militares funcionam como “integrantes de
corporações decisivas para a preservação da ordem social herdada da
colonização. Como instrumentos para afirmação da soberania nacional,
foram agentes secundários”, descreve Manuel Domingos Neto, em
entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Quanto às consequências da tentativa de golpe e assassinato do
presidente Lula, o pesquisador tem uma postura que não deposita a
expectativa da punição apenas no poder judiciário, estendendo-a ao Executivo.
“Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação
presidencial. O STF hoje é visto como protagonista, mas o
Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O
presidente da república responde pelo comando supremo das Forças
Armadas. Não exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo
que ainda pode acontecer”, assevera.
“O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular”, provoca.
Manuel Domingos Neto (Foto: Felipe L.
Gonçalves/Brasil247)
Manuel Domingos Neto graduou-se
em História pela Universidade de Paris VI, é Mestre em Sociedade e Economia na
América Latina, pela Universidade de Paris III, e doutor em História
pela mesma universidade. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa,
superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí,
estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal
do Ceará e da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente
do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É
autor, entre outros, de O que fazer com o militar? Anotações para uma
nova defesa nacional (2021)
Confira a entrevista.
IHU – O que são os militares no Brasil e para que servem?
Manuel Domingos Neto – Persistem o que sempre foram
desde a criação do Estado brasileiro: integrantes de corporações decisivas para
a preservação da ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para
afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários. A Independência foi
escorada no poder hegemônico da Inglaterra, que prevaleceu até a
ascensão dos Estados no fim da Segunda Guerra.
É desastrosa a posição de Lula de abdicar de sua condição de comandante
supremo das Forças Armadas – Manuel Domingos Neto
IHU – Em dezembro, foi desbaratado o golpe de estado com
tentativa assassinato de autoridades, entre elas o presidente Lula, planejado
por militares de alta patente. Quais desdobramentos devem ocorrer em relação ao
caso?
Manuel Domingos Neto – Decorrerá algum tempo até que
fique totalmente esclarecida a trama golpista. Não posso afirmar com
tranquilidade que as articulações decisivas ocorreram em dezembro de 2022. No
máximo, diria que, nessa época, já estava configurada a inviabilidade
do golpe: o conjunto das corporações não se mostrou disposto a quebrar a
institucionalidade. Seria um choque muito grande. Difícil imaginar os golpistas
se mantendo no poder.
Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da
orientação presidencial. Hoje, o STF é visto como
protagonista, mas o Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos,
tem sua responsabilidade. O presidente da República responde
pelo comando supremo das Forças Armadas. Não
exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode
acontecer.
Se o político não comanda o militar, ele passa a ser
comandado – Manuel Domingos Neto
IHU – Em entrevista recente, o senhor menciona a “síndrome pós-Guerra do
Paraguai”. Do que se trata? Com ela ajuda a explicar a postura dos militares?
Manuel Domingos Neto – É no retorno da Guerra
do Paraguai que os militares se perceberam atores políticos decisivos.
Antes, as corporações, particularmente o Exército, não detinham
capacidade orgânica de controle sociopolítico. Havia a Guarda Nacional,
muito capilar. Os quartéis do Exército eram unidades frágeis,
dispersas, mal instruídas, dependentes de potentados locais. Depois da Guerra
do Paraguai, os comandantes sentiram-se em condições de impor a autonomia
das corporações.
Cabe alterar o artigo 142 da Constituição – Manuel Domingos
Neto
IHU – Como construir politicamente uma nova defesa nacional? O que
significa a noção de “nova defesa nacional”?
Manuel Domingos Neto – A concepção de uma nova Defesa Nacional deve
exprimir um projeto de autonomia nacional alicerçado na união dos brasileiros.
O primeiro passo neste sentido é acabar com o distúrbio de personalidade
funcional que acomete as corporações: não sabem se devem se preparar para o
confronto com o estrangeiro ou para garantir a segurança pública. Cabe alterar
o artigo 142 da Constituição.
O grande alicerce de uma nova Defesa deve ser a coesão
nacional. Isso implica sepultar de vez a ideia de “inimigo interno”, presente
desde a Constituição de 1824 e exacerbada na Guerra
Fria. A Defesa de que dispomos é lastreada no grande esquema militar
ocidental comandado por Washington. O militar brasileiro sempre
esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas
sociais.
Outros aspectos fundamentais de uma nova Defesa Nacional seriam
a integração sul-americana, o desenvolvimento de capacidade própria para a
produção de armas e equipamentos e a reforma militar. Alguns se referem à
reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam mudança de comandantes,
revisão do currículo das escolas... Confundem causas e consequências.
Alguns se referem à reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam
mudança de comandantes, revisão do currículo das escolas... Confundem causas e
consequências – Manuel Domingos Neto
IHU – Com relação às atribuições dos militares, que mudança
constitucional precisa ser feita e como realizá-la diante de um Congresso
majoritariamente fisiológico e conservador?
Manuel Domingos Neto – O presidente da
República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo
brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta
a soberania e a democracia. Mesmo setores
conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando
nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de
esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições
avançadas sem pressão popular.
O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições
avançadas sem pressão popular – Manuel Domingos Neto
IHU – Anos atrás, o STF cedeu à pressão de um general por meio de um
tuíte. Em 2024, indiciou militares pela tentativa de golpe e assassinato do
presidente. Como entender a postura da mais alta corte brasileira? Qual a
importância do STF manter uma postura firme em relação aos militares neste
momento?
Manuel Domingos Neto – A pressão exercida pelo
general Villas-Bôas foi em 2016. Foi um grande golpe. A
posição do STF foi vergonhosa. Esse general ainda não foi
punido. Penso que a postura do STF mudou durante o governo
Bolsonaro porque os ministros se sentiram ameaçados. Compreenderam o
risco que corriam. Hoje, o papel do STF é importante, mas limitado. Não estamos
diante de um problema legal, judicial, mas diante de um grande desafio
político. As forças democráticas brincam
com fogo ao deixar o caso nas mãos de juízes.
A pressão exercida pelo general Villas-Bôas foi em 2016. Foi um grande
golpe. A posição do STF foi vergonhosa. Esse general ainda não foi
punido – Manuel Domingos Neto
IHU – Como avalia a posição de Lula em relação aos militares?
Manuel Domingos Neto – Pelo que eu disse
anteriormente, é desastrosa a posição de Lula de abdicar de
sua condição de comandante supremo das Forças Armadas. Pelo bem
da soberania e da democracia, o presidente não
pode se isentar de suas responsabilidades constitucionais neste momento de
avanço da extrema-direita, que atinge de cheio os organismos de força do
Estado. Lula precisa comandar. Em vez disso, aceita
placidamente ser comandado. Se o político não comanda o militar, ele passa
a ser comandado.
As forças democráticas brincam com fogo ao deixar o caso nas mãos de
juízes – Manuel Domingos Neto
IHU – Que episódios históricos mostram que toda vez que o Estado tentou
“dialogar” com os militares a sociedade civil saiu perdendo? Por que não é
possível ter diálogo com a caserna?
Manuel Domingos Neto – Militar é treinado
para receber ordens, não para dialogar feito um político ou um diplomata. No
mais, os militares vivem em permanentes contendas corporativas: o marinheiro
acha que é mais importante que o soldado terrestre; o aviador se vê como o mais
decisivo... Dissertei sobre isso em meu último livro. Só o político pode de
fato definir os rumos da Defesa Nacional. Se isso ficar nas mãos
das corporações, viveremos patinando neste domínio. Está claro que devemos
priorizar a força aeronaval. Mas isso jamais ocorrerá enquanto as corporações
detiverem a última palavra quanto aos seus destinos.
Não há exemplos históricos de diálogo com militares. Todos os
presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A autonomia
corporativa sempre prevaleceu. Nem Vargas mandou
efetivamente nos militares. Boa parte das iniciativas do Estado Novo foram
propostas por militares, que sentiam a necessidade de modernizar o país.
Só o político pode de fato definir os rumos da Defesa Nacional. Se isso
ficar nas mãos das corporações, viveremos patinando neste
domínio – Manuel Domingos Neto
IHU – Mensalmente, o Estado brasileiro gasta R$ 140 mil com salários e pensões a militares que
foram indiciados pelo MPF pela morte de Rubens Paiva. O que o caso revela sobre
a relação do Estado e de nossa sociedade com os militares?
Manuel Domingos Neto – Não acho que o valor dos
salários dos militares seja a questão principal. Sei que isso causa muita
indignação, mas o problema mais grave é o volume de tropas inaptas e
de quartéis sem serventia para enfrentar eventuais
hostilidades estrangeiras. Há centenas de unidades militares que poderiam ser
fechadas em proveito de uma Defesa efetivamente capaz.
As compras externas
representam também um grande desperdício. Costumo dizer que quem compra armas e
equipamentos de potências estrangeiras vende a alma ao diabo. Não tem autonomia
para decidir com quem e como lutar. Esbagaça dinheiro público.
Todos os presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A
autonomia corporativa sempre prevaleceu – Manuel Domingos Neto
IHU – O senhor é autor do livro O que fazer com o militar?
Anotações para uma nova defesa nacional (2021). Pode comentar do que
trata a obra e como ela ajuda e compreender a questão da militarização no
Brasil?
Manuel Domingos Neto – No livro, tentei explicar
simplificadamente as múltiplas e variadas iniciativas necessárias para
uma reforma militar. Resumi décadas de estudos e reflexões.
Corporações militares são organismos altamente complexos, fruto de experiências
milenares. Impossível mexer em organizações deste tipo sem graves
consequências. Por exemplo, ao adotar o Novo Arcabouço Fiscal, o
governo resolveu alterar a idade para a aposentadoria do militar.
Ora, isso alteraria fortemente as regras de promoção hierárquica. Criaria muita
confusão deletéria. O governo terminou recuando. Não dá para mexer nas
estruturas militares sem estudo especializado prévio.
Minha intenção foi contribuir para melhorar o nível do debate em torno
dos militares. Creio que nossas elites políticas são
despreparadas nesta matéria. Isso é muito preocupante. Enquanto o político não
ditar a Defesa Nacional, estaremos não apenas indefesos neste mundo
conturbado, mas a democracia estará correndo risco.
Reprodução da capa da obra de Manuel Domingos Neto
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