sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

O MILITAR BRASILEIRO

 

O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas sociais”. Entrevista especial com Manuel Domingos Neto

Para o professor e pesquisador, autor do livro ‘O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional’ (2021), na história doPor: IHU e Baleia Comunicação | 16 Janeiro 2025

Até a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros eram bastante desorganizados enquanto corporação. Tudo, porém, começa a mudar após o conflito e vão conformando progressivamente a atuação das Forças Armadas até a atualidade, sem jamais passar por uma reforma mais do que necessária. É por isso que, hoje, os militares funcionam como “integrantes de corporações decisivas para a preservação da ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários”, descreve Manuel Domingos Neto, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Quanto às consequências da tentativa de golpe e assassinato do presidente Lula, o pesquisador tem uma postura que não deposita a expectativa da punição apenas no poder judiciário, estendendo-a ao Executivo. “Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação presidencial. O STF hoje é visto como protagonista, mas o Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente da república responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer”, assevera.

“O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular”, provoca.



Manuel Domingos Neto (Foto: Felipe L. Gonçalves/Brasil247)

Manuel Domingos Neto graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, é Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, e doutor em História pela mesma universidade. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor, entre outros, de O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021)

Confira a entrevista.

IHU – O que são os militares no Brasil e para que servem?

Manuel Domingos Neto – Persistem o que sempre foram desde a criação do Estado brasileiro: integrantes de corporações decisivas para a preservação da ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários. A Independência foi escorada no poder hegemônico da Inglaterra, que prevaleceu até a ascensão dos Estados no fim da Segunda Guerra.

É desastrosa a posição de Lula de abdicar de sua condição de comandante supremo das Forças Armadas  – Manuel Domingos Neto

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IHU – Em dezembro, foi desbaratado o golpe de estado com tentativa assassinato de autoridades, entre elas o presidente Lula, planejado por militares de alta patente. Quais desdobramentos devem ocorrer em relação ao caso?

Manuel Domingos Neto – Decorrerá algum tempo até que fique totalmente esclarecida a trama golpista. Não posso afirmar com tranquilidade que as articulações decisivas ocorreram em dezembro de 2022. No máximo, diria que, nessa época, já estava configurada a inviabilidade do golpe: o conjunto das corporações não se mostrou disposto a quebrar a institucionalidade. Seria um choque muito grande. Difícil imaginar os golpistas se mantendo no poder.

Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação presidencial. Hoje, o STF é visto como protagonista, mas o Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente da República responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer.

Se o político não comanda o militar, ele passa a ser comandado – Manuel Domingos Neto

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IHU – Em entrevista recente, o senhor menciona a “síndrome pós-Guerra do Paraguai”. Do que se trata? Com ela ajuda a explicar a postura dos militares?

Manuel Domingos Neto – É no retorno da Guerra do Paraguai que os militares se perceberam atores políticos decisivos. Antes, as corporações, particularmente o Exército, não detinham capacidade orgânica de controle sociopolítico. Havia a Guarda Nacional, muito capilar. Os quartéis do Exército eram unidades frágeis, dispersas, mal instruídas, dependentes de potentados locais. Depois da Guerra do Paraguai, os comandantes sentiram-se em condições de impor a autonomia das corporações.

Cabe alterar o artigo 142 da Constituição – Manuel Domingos Neto

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IHU – Como construir politicamente uma nova defesa nacional? O que significa a noção de “nova defesa nacional”?

Manuel Domingos Neto – A concepção de uma nova Defesa Nacional deve exprimir um projeto de autonomia nacional alicerçado na união dos brasileiros. O primeiro passo neste sentido é acabar com o distúrbio de personalidade funcional que acomete as corporações: não sabem se devem se preparar para o confronto com o estrangeiro ou para garantir a segurança pública. Cabe alterar o artigo 142 da Constituição.

O grande alicerce de uma nova Defesa deve ser a coesão nacional. Isso implica sepultar de vez a ideia de “inimigo interno”, presente desde a Constituição de 1824 e exacerbada na Guerra Fria. A Defesa de que dispomos é lastreada no grande esquema militar ocidental comandado por Washington. O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas sociais.

Outros aspectos fundamentais de uma nova Defesa Nacional seriam a integração sul-americana, o desenvolvimento de capacidade própria para a produção de armas e equipamentos e a reforma militar. Alguns se referem à reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam mudança de comandantes, revisão do currículo das escolas... Confundem causas e consequências.

Alguns se referem à reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam mudança de comandantes, revisão do currículo das escolas... Confundem causas e consequências – Manuel Domingos Neto

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IHU – Com relação às atribuições dos militares, que mudança constitucional precisa ser feita e como realizá-la diante de um Congresso majoritariamente fisiológico e conservador?

Manuel Domingos Neto – O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular.

O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular – Manuel Domingos Neto

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IHU – Anos atrás, o STF cedeu à pressão de um general por meio de um tuíte. Em 2024, indiciou militares pela tentativa de golpe e assassinato do presidente. Como entender a postura da mais alta corte brasileira? Qual a importância do STF manter uma postura firme em relação aos militares neste momento?

Manuel Domingos Neto – A pressão exercida pelo general Villas-Bôas foi em 2016. Foi um grande golpe. A posição do STF foi vergonhosa. Esse general ainda não foi punido. Penso que a postura do STF mudou durante o governo Bolsonaro porque os ministros se sentiram ameaçados. Compreenderam o risco que corriam. Hoje, o papel do STF é importante, mas limitado. Não estamos diante de um problema legal, judicial, mas diante de um grande desafio político. As forças democráticas brincam com fogo ao deixar o caso nas mãos de juízes.

A pressão exercida pelo general Villas-Bôas foi em 2016. Foi um grande golpe. A posição do STF foi vergonhosa. Esse general ainda não foi punido – Manuel Domingos Neto

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IHU – Como avalia a posição de Lula em relação aos militares?

Manuel Domingos Neto – Pelo que eu disse anteriormente, é desastrosa a posição de Lula de abdicar de sua condição de comandante supremo das Forças Armadas. Pelo bem da soberania e da democracia, o presidente não pode se isentar de suas responsabilidades constitucionais neste momento de avanço da extrema-direita, que atinge de cheio os organismos de força do Estado. Lula precisa comandar. Em vez disso, aceita placidamente ser comandado. Se o político não comanda o militar, ele passa a ser comandado.

As forças democráticas brincam com fogo ao deixar o caso nas mãos de juízes – Manuel Domingos Neto

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IHU – Que episódios históricos mostram que toda vez que o Estado tentou “dialogar” com os militares a sociedade civil saiu perdendo? Por que não é possível ter diálogo com a caserna?

Manuel Domingos Neto – Militar é treinado para receber ordens, não para dialogar feito um político ou um diplomata. No mais, os militares vivem em permanentes contendas corporativas: o marinheiro acha que é mais importante que o soldado terrestre; o aviador se vê como o mais decisivo... Dissertei sobre isso em meu último livro. Só o político pode de fato definir os rumos da Defesa Nacional. Se isso ficar nas mãos das corporações, viveremos patinando neste domínio. Está claro que devemos priorizar a força aeronaval. Mas isso jamais ocorrerá enquanto as corporações detiverem a última palavra quanto aos seus destinos.

Não há exemplos históricos de diálogo com militares. Todos os presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A autonomia corporativa sempre prevaleceu. Nem Vargas mandou efetivamente nos militares. Boa parte das iniciativas do Estado Novo foram propostas por militares, que sentiam a necessidade de modernizar o país.

Só o político pode de fato definir os rumos da Defesa Nacional. Se isso ficar nas mãos das corporações, viveremos patinando neste domínio – Manuel Domingos Neto

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IHU – Mensalmente, o Estado brasileiro gasta R$ 140 mil com salários e pensões a militares que foram indiciados pelo MPF pela morte de Rubens Paiva. O que o caso revela sobre a relação do Estado e de nossa sociedade com os militares?

Manuel Domingos Neto – Não acho que o valor dos salários dos militares seja a questão principal. Sei que isso causa muita indignação, mas o problema mais grave é o volume de tropas inaptas e de quartéis sem serventia para enfrentar eventuais hostilidades estrangeiras. Há centenas de unidades militares que poderiam ser fechadas em proveito de uma Defesa efetivamente capaz.

As compras externas representam também um grande desperdício. Costumo dizer que quem compra armas e equipamentos de potências estrangeiras vende a alma ao diabo. Não tem autonomia para decidir com quem e como lutar. Esbagaça dinheiro público.

Todos os presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A autonomia corporativa sempre prevaleceu – Manuel Domingos Neto

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IHU – O senhor é autor do livro O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021). Pode comentar do que trata a obra e como ela ajuda e compreender a questão da militarização no Brasil?

Manuel Domingos Neto – No livro, tentei explicar simplificadamente as múltiplas e variadas iniciativas necessárias para uma reforma militar. Resumi décadas de estudos e reflexões. Corporações militares são organismos altamente complexos, fruto de experiências milenares. Impossível mexer em organizações deste tipo sem graves consequências. Por exemplo, ao adotar o Novo Arcabouço Fiscal, o governo resolveu alterar a idade para a aposentadoria do militar. Ora, isso alteraria fortemente as regras de promoção hierárquica. Criaria muita confusão deletéria. O governo terminou recuando. Não dá para mexer nas estruturas militares sem estudo especializado prévio.

Minha intenção foi contribuir para melhorar o nível do debate em torno dos militares. Creio que nossas elites políticas são despreparadas nesta matéria. Isso é muito preocupante. Enquanto o político não ditar a Defesa Nacional, estaremos não apenas indefesos neste mundo conturbado, mas a democracia estará correndo risco.

Reprodução da capa da obra de Manuel Domingos Neto

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ANDREW FEINSTEIN

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

COMILANÇA MILITAR

 

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O MAR VORAZ

 

Mar engole povoado no Brasil e moradores falam sobre justiça: ‘Nada cobre o que vivemos lá’

Região desapareceu do mapa em decorrência de impactos causados pela construção de usina hidrelétrica

Povoado Cabeço antes de ser consumido pelo oceano nos anos 1990Povoado Cabeço antes de ser consumido pelo oceano nos anos 1990 – Foto: Jane Tereza/DW/ND

A pedagoga lembrou, à reportagem da agência Deutsche Welle, do dia em que foi acordada pela mãe enquanto o mar invadia a casa em que moravam. Ao descer da cama, Santos percebeu a água salgada já na altura da canela. Aquela não era a primeira vez, nem seria a última em que ela veria casas serem submersas pelo oceano.

Povoado Cabeço desapareceu do mapa em 1990

O povoado de pescadores ficava na região do Baixo São Francisco, em Sergipe, e desapareceu do mapa brasileiro no fim dos anos de 1990. Mais de duas décadas depois de sumir, o povoado e sua população conseguiram uma indenização histórica em relação ao impacto socioambiental das barragens na paisagem nacional.

Os 220 moradores receberam R$ 40 milhões da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), em maio de 2024, após provarem que o Povoado Cabeço foi engolido pelo mar devido à construção da barragem da UHE (Usina Hidrelétrica) de Xingó, em Canindé de São Francisco, na divisa entre Alagoas e Sergipe. A obra  provocou uma erosão costeira na foz do rio, culminando com elevação das águas na região.

Segundo a Deutsche Welle, os moradores lutavam desde 2003 para conquistar a reparação. O processo, aberto na Justiça Federal, terminou com um acordo e garantiu a cada um dos moradores o valor líquido, já retirando os honorários advocatícios, de R$ 153 mil.

O valor é quatro vezes maior do que as indenizações previstas no acordo homologado em novembro, no STF (Supremo Tribunal Federal), pelos danos causados com o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, no ano de 2015.

Ruínas de Gesteira, no distrito de Barra Longa (MG), dois anos após o rompimento da Barragem de FundãoRuínas de Gesteira, no distrito de Barra Longa (MG), dois anos após o rompimento da Barragem de Fundão – Foto: José Cruz/Agência Brasil/ND

Indenização chegou após morte de moradores

O acordo do Cabeço foi proposto pela Chesf, diante da privatização da Eletrobras, então maior acionista da companhia, em 2022. “Temos pessoas que moravam no Povoado Cabeço, nasceram lá e hoje têm 90 e poucos anos. Então, quando pensamos num acordo, pensamos nessas pessoas”, afirmou a advogada Jane Tereza Fonseca, que defendeu os moradores do povoado desde o início da ação, ao lado de outros juristas.

Quando a indenização do Povoado Cabeço chegou, 39 pessoas que entraram com a ação inicialmente já haviam morrido. Outras três morreram entre a decisão e o pagamento. O dinheiro, nestes casos, foi destinado aos herdeiros. De todos indenizados, apenas três ainda não receberam os valores, por questões documentais.

“Esse processo é histórico para todo o pessoal que é impactado com barragem no Brasil, porque ele abriu uma jurisprudência única”, acrescentou Carlos Eduardo Ribeiro, cocriador do Info São Francisco, à Deutsche Welle.

Impacto ambiental da barragem

O Povoado Cabeço possuia cerca de 120 casas e ficava no lado sergipano da foz do São Francisco, na cidade de Brejo Grande. Não se sabe ao certo quando começou o povoamento, mas estima-se que a comunidade se formou em torno de um farol, erguido entre os anos de 1870 e 1873, o único resquício ainda visível da localização original.

Perícias produzidas para a ação na Justiça Federal mostraram que a construção do reservatório de Xingó provocou a redução da vazão do rio, que contribuiu para o aumento da erosão costeira e da salinização da água. A partir de documentos produzidos desde o século 19 até 2015, conseguiu-se mostrar que a erosão costeira foi impulsionada para além da dinâmica natural.

Deste modo, o fluxo de sedimentos depositados no delta do rio diminuiu, o que enfraqueceu a capacidade dele de conter o avanço da maré, deixando o povoado vulnerável. A dinâmica de cheias também foi afetada, limitando a formação de lagoas que alimentavam o plantio de arroz e o uso das águas como berçário de espécies nativas e crustáceos.

Construção do reservatório de Xingó provocou a redução da vazão do rio, que contribuiu para o aumento da erosão costeira e da salinização da água, aponta períciaConstrução do reservatório de Xingó provocou a redução da vazão do rio, que contribuiu para o aumento da erosão costeira e da salinização da água, aponta perícia – Foto: Alice de Souza/DW/ND

O processo mostrou ainda que o estudo de impacto ambiental referente à hidrelétrica de Xingó mediu impactos a até 100 quilômetros de distância da barragem, omitindo os efeitos na foz do rio. Em 2022, a responsabilidade da Chesf foi reconhecida pela 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe.

Antes de fechar o acordo com os moradores do Povoado Cabeço, a Chesf chegou a alegar que havia cumprido todos os procedimentos legais, incluindo a obtenção das licenças ambientais, para a construção da hidrelétrica e que a erosão já existia antes da obra, sendo causada por fatores climáticos e geológicos. A advogada das vítimas ressalta, no entanto, que ficou claro no processo que Xingó foi fundamental para a destruição do povoado Cabeço.

Além da ação individual, há outras duas ações coletivas relacionadas ao Povoado Cabeço. Uma delas é movida pela Associação Comunitária do povoado, pela destituição do povoado e seu patrimônio, como igrejas, escola, delegacia e cemitério. A outra é da Associação de Pescadores, pelo impacto na produção pesqueira. Cada uma delas garantiu R$ 10 milhões, cujo destino será definido em audiência pública a ser realizada no dia 12 de fevereiro do próximo ano.

Os impactos afetivos da migração forçada

Quando os imóveis do Povoado Cabeço foram engolidos pelo mar, parte dos moradores passou a ocupar casas em um conjunto habitacional de uma zona mais afastada da costa, conhecida como Saramém. Contudo, foram disponibilizadas apenas 80 casas, o que não contemplava todas as famílias. Ficou a cargo da própria comunidade a adaptação, sem considerar os efeitos psicossociais da mudança.

Lá, apesar de passarem a ter água encanada e energia elétrica, o que não existia no povoado, os moradores alegam terem sido destituídos dos seus modos de vida e da harmonia anterior. “Eu não tenho o lugar que eu morei na infância porque o mar engoliu. Não tenho um lugar para eu voltar e dizer: ‘aqui eu fiz isso’, entendeu?”, afirma Santos.

Frequentador da região há pelo menos 40 anos, o doutor em Sociologia pela UFS (Universidade Federal de Sergipe), Wellington Bomfim, pesquisou os impactos e migração da comunidade do Povoado Cabeço para o Saramém. “A mudança mais significativa para os moradores foi o fato de terem que deixar a região para outro lugar, a um quilômetro da foz, onde criou-se uma comunidade com pessoas de outras localidades”, diz.

Segundo ele, a sociabilidade foi impactada, pois até a década de 1980 o Povoado Cabeço era uma comunidade tutelada pela Marinha, que definia inclusive quem poderia construir as casas lá. “Geralmente eram pessoas das famílias que estavam ali. Então, pessoas de fora dificilmente viravam moradores. Havia uma organização interna, um conselho formado por moradores mais antigos”, explica Bomfim.

Moradores precisaram deixar o local após invasão do mar Moradores precisaram deixar o Povoado Cabeço após invasão do mar – Foto: Jane Tereza/DW/ND

Legado de apagamento das barragens hidrelétricas

O laudo pericial que responsabilizou a Chesf diz que Xingó foi o último elemento, de uma cascata de barragens no rio São Francisco, que levou ao desaparecimento do Povoado Cabeço. Considerado um dos mais importantes cursos d’água brasileiros, o rio é um exemplo de como as barragens trouxeram danos socioambientais que ainda permanecem.

Um relatório produzido pelo então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana estima que em 40 anos 1 milhão de brasileiros foram expulsos das suas terras para a construção de 2 mil barragens. No país, há barragens para geração de eletricidade, como as localizadas no rio São Francisco; abastecimento de água; acumulação de rejeitos industriais, como as que romperam em Mariana e Brumadinho; e para usos múltiplos.

Hoje existem 27,8 mil cadastradas na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), sendo que 14% delas de alto risco em caso de ruptura. Do total de barragens, 1,3 mil são hidrelétricas e 71 estão na bacia hidrográfica do São Francisco.

Ocupando 8% do território nacional e atravessando sete estados, o São Francisco é sede de oito das doze hidrelétricas que a Chesf mantém no Nordeste. O rio vem sofrendo intervenções que comprometeram a sua intensidade de vazão desde 1913, com a construção da usina Angiquinho, em Alagoas, a primeira hidrelétrica da região.

“Barragens podem criar desaparecimentos de lugares que vão ser alagados ou lugares que vão desaparecer por secar, como alguns no Baixo São Francisco. Antes, nesses lugares você tinha tudo, agora precisa comprar tudo, até água”, afirma Ribeiro.

Para Jandilma Santos, depois de duas décadas de espera, a indenização aos antigos moradores do Povoado Cabeço é apenas um consolo. “Nada que essa indenização ou a Chesf ou esse acordo fizesse poderia cobrir, tapar ou sarar nossa mente, nosso coração e tudo que a gente viveu lá.”

Em nota, a Eletrobras afirmou que tem buscado a conciliação em diversos processos desde a privatização, contexto em que se deu o acordo com os ex-moradores do Povoado Cabeço. A empresa afirmou que as oito usinas que mantém no curso do São Francisco são responsáveis, juntas, por uma potência instalada de 9.971,501 MW. “Todas as diretrizes dos órgãos ambientais são respeitadas pela empresa, monitorando e mitigando eventuais impactos, de acordo com as regras e legislações em vigor”, afirmou.