Foto: D.Ganzelevitch
Qual é o
ruído mais familiar desta cidade mágica senão o das quatro rodas de dez mil
malas arrastadas pelas ruas por belgas, colombianos e coreanos desde a alvorada
até tarde na noite? As praças funcionam como imensos receptivos de hotéis de
uma, duas, três, quatro ou cinco estrelas.
São
fabulosos palácios góticos, barrocos e neoclássicos, oferecidos em fatias ou
por inteiro, são casinhas mais modestas divididas em quarto e sala. Quem é
daqui se todos se vestem da mesma forma? A diversidade na similitude. Eles vêm
dos cinco continentes, riem, se emocionam e se espantam em cem idiomas.
De noite,
nas janelas enfeitadas por pesadas cortinas de antigos veludos adamascados,
brilham lustres de Murano. Cúpulas e torres de igrejas são iluminadas em eternos
rituais. De dia cantam os sinos.
Realizo um
desejo de adolescente, perambulando por Veneza, enquanto meus pais, convidados,
se enfurnavam no festival de cinema. Morar nesta cidade irreal onde os passeios
são cais e as avenidas, rios; onde carro particular, ônibus, caminhão de
mudança e taxi são e sempre serão barcos, era sonho nem tão secreto.
Nossa toca se esconde numa rua estreita e
silenciosa do Canaregio, longe do tsunami de turistas que tudo fotografam e
nada veem. Aqui não tem loja de suvenirs nem pizza quilométrica. Tem a padaria
onde compro pão, a loja de verduras e frutas com as melhores peras e uvas da
Itália e a banca de peixes à beira do canal que, neste fim de ano, transborda e
nos obriga a andar de botas. Almoçamos com Vivaldi, seppie con polenta e
Scarlatti, jantamos com zuppa de pesce, Tintoretto e Veronese, sonhamos com Carpaccio,
Ticiano e tiramissu, e na Piazza San Marco, tomamos chocolate quente no Florian.
A orquestra – piano de cauda, violino, acordeão e contrabaixo – toca “Por una
cabeça” e com os últimos raios do sol, brilham os ouros dos mosaicos do Duomo.
No fim do
dia, após exaustivas visitas a tesouros bizantinos, medievais e setecentistas,
sentamos no terraço do boteco vizinho para beber um sprite, que virou bebida nacional.
Observamos as gaivotas pousadas na beira do canal a catar alguma migalha de pão,
um peixe distraído, antes de desaparecerem nas nuvens do anoitecer.
Veneza é
decadente, dizem. Mas, observando os Guardi e os Caneletto da Ca d´Oro, nota-se
que, já no século XVIII, o surreal arquipélago era decadente. Bem na frente do
Palácio ducal, acampavam vendedores de peixe, legumes e frutas debaixo de panos
sujos e rotos. Nos canais, improváveis embarcações serviam de moradia a
famílias inteiras. Os aristocratas passeavam mascarados no meio da plebe. Mas
quem pode afirmar que malandros não se aproveitavam também do anonimato?
Veneza será esplendorosamente
decadente ainda por alguns séculos.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, sábado30 novembro 2024
Très beau texte.
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