quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A GRANDE ALEGRIA

MOEMA FRANCA


Segue abaixo a crônica deste domingo, que NÃO foi publicada pela Revista Muito, do jornal A Tarde, por razões até agora inexplicadas, mas nada difíceis de presumir e tão inacreditavelmente previsíveis que chegam a anestesiar os sentidos. Oficialmente haverá, com certeza, explicações burocrático-empresariais mais palatáveis para as mentes domesticadas por opção.
Diante disso, decidi encerrar a minha colaboração literária com a revista. Em breve, procurarei um novo meio para divulgar as crônicas, além deste aqui.
Deixo o post público - fiquem à vontade para compartilhar e apresentar aos Podres Poderes as táticas do século XXI contra o silenciamento.
É especialmente triste para mim, que escolhi essa formação, velar o cadáver do jornalismo baiano. (E para que não surjam mal-entendidos: temos bons jornalistas - o que não temos são jornais à sua altura).
Acompanha a crônica a ilustração que o querido Bruno Aziz generosamente me ofereceu e cuja força simbólica acabou ganhando múltiplas matizes com o acontecido.
Viva o (im)poder da literatura!
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A Grande Alegria
O mês de janeiro se comprime entre uma mentira perfeita, o ano novo em folha, o recomeço de tudo, mais uma chance de acertar, e a ilusão todo-poderosa do carnaval - promessa de agonia e êxtase. Em breve Salvador assumirá oficialmente, por alguns dias, a sua sublime vocação de epicentro do caos. Na preparação da festa, aos poucos a cidade se deforma, escancarando seus dentes-andaimes sobre as avenidas, os lábios excessivamente inchados, obra de algum cirurgião plástico urbano que promete uma beleza fugaz e omite o preço a pagar.
Os fantasmas das árvores mutiladas, seus galhos retorcidos, sem copa, decoram a cidade com esculturas involuntárias da aflição. Este ano promete ser quente. Quando tudo estiver pronto, chegará o Folião para ocupar o quarto de um hotel lotado, esperando ter cumprida a promessa de Felicidade Industrial dos abadás e camarotes. Consciente ou não, encenará o eterno espetáculo simbólico da escravidão, corda, cordeiros e tapumes concretizando a metáfora de uma mentalidade patologicamente segregacionista. Ouvirá na TV comentadores repetirem à exaustão, do alto dos camarotes, o bordão da "festa da democracia" e, diante de tantos sorrisos, é provável que não consiga duvidar.
Mas, observando de perto, talvez ele se dê conta de que a Grande Alegria tem um sorriso congelado no rosto de olhos opacos. Não tem a força revigorante de uma ilusão ou uma boa mentira. Vai perceber então que é impossível comprar o carnaval. Porque existe nele uma potência que só pode ser encontrada no transe do vendedor ambulante ao ouvir a sua música favorita fazendo pulsar no peito os alto-falantes, enquanto é obrigado a comercializar apenas uma marca de cerveja numa caixa de isopor, dormindo cinco dias seguidos numa cama de papelão improvisada na rua. O espírito da festa resiste no passeio orgulhoso do pai que leva a filha pequena para "ver a rua" pela primeira vez, todos os riscos, todos os encantamentos, nas senhorinhas de sombrinha colorida balançando-se contra os muros dos prédios para ver um trio elétrico passar. Essa alegria não pede permissão, não paga ingresso e se arranca à unha. O mistério de carnaval que vale a pena desvendar ano após ano mora no encontro com uma cidade que raramente se vê, no alento dessa desordem, na dança de um homem sem pernas apoiado no ombro de dois desconhecidos na Praça Castro Alves. Para os ouvidos atentos, a chave do enigma de vez em quando ecoa no meio da multidão: tem que dançar a dança ao som da dor que faz balançar o chão.

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