segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

POR CAMINHOS DE ONTEM, COMO HOJE

FLORISVALDO MATOS


Acordei hoje, num domingo de calor sob céu mormacento, após uma tarde e noite de três eventos cordiais e afetivos - almoço anual de confraternização do que resta da turma de formados na UFBA em Direito, deparando-me com a melancólica percepção que, de 71, apenas 26 respiram; lançamento do livro de um amigo baiano apaulistado (Roniwalter Jatobá), sob um toldo camarada de cerveja e vinho, na Confraria do França, e, por fim, o aniversário de uma estimada cunhada -, recordando um poema que escrevi, faz algum tempo, subitamente impelido por dois versos do simbolista francês Jules Laforgue (1860-1887), que me puseram a meditar sobre como teria sido o mundo (o céu, a terra, as águas), no tempo em que o homem ainda não existia. A vida é também a forma de descobrir e inventar caminhos. E, na certeza de que caminhos se fazem ao andar, como garante o espanhol Antonio Machado, me vi subitamente transitando por essa espécie de senda onírica - sozinho no mundo, sem mais ninguém... Vai abaixo o texto, que consta de meu novo livro, cujo lançamento coincidentemente ainda sonho para este mês, apropriado para ser ouvido ao som de um saxofonista de Jazz-fusion, como o do argentino Gato Barbieri, nesta gravação intitulada "El Sublime", ilustrado com pintura de Paul Cézanne (1839-1906). Bom domingo para todos.

VISÕES DE ÉDEN SÚBITO CONTEMPLADO
"Tout est vain, - et, là-haut, voyez, la Lune rêve
Aussi froide qu´aux temps où l´Homme n´était pas."*
Jules Laforgue (1860-1887)
"Toda existência é ocasional regresso..."
Ernâni Rosas (1886-1954)
..."Circunvagante, a onda escura avançava
Ubíqua, rumo da terra, tocada de ventos músicos."
“Hino Homérico a Apolo Délio” (Ordep Serra, tradutor)
"Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.
Robert Frost (1874-1963)
Sonho-me aventureiro de outros sonhos.
De pés firmes, me apalpo e, calmo, sigo.
Abrisse uma cortina, não seria
de escuro firmamento o panorama.
Fontes murmuram, fresca brisa sopra.
Suspira o mar. Eu, soltos olhos ávidos,
vislumbro encostas e sobre elas abro
um caminho ondulante e pedregoso.
No silêncio, nas extensões desertas,
meus olhos tensos captam o que vibra.
Há o sol, o vento, rochas, lagos, rios;
bem perto ou longe, indecifrável fauna,
bosques de árvores densas, impassíveis,
de mãos nunca tocadas nem palpadas;
leito rico adiante de lama e argila,
e o mar, sereno, casto e palrador;
oceano nenhum de lava e ferrugem;
planícies de cascalho e rubra areia.
Assento os olhos em cipós trançados:
nada de Neandertais de ignotas fauces,
pisando crosta de solúvel ferro,
sinais de caça, faina, habitação.
Verdejo-me no sonho. Em rocha sento-me
de cimo que rodeiam ventos brandos;
vestindo-me de ar puro, paz e selva,
o céu, um pálio alto de azul intenso,
por onde o sol navega assiduamente,
gestando madrugadas e crepúsculos,
que um dia dirão de ouro, bronze e sangue,
nuvens reverberando luz constante;
adiante o mar, sonoro e ininterrupto,
saudando orla de areia minudente.
Tempo de não viver, só de existir;
rastro humano nenhum. De cima, a lua,
solene e vigilante quanto fria,
guarda o que passou, passa e passará.
Ninando a noite que parece dormitar,
ela, no alto, ainda paira (primeiro e único
sinal de amor no mundo) e, cá em baixo,
eu, na felicidade de estar só.
Só, na frígida noite que declina,
desvelo o tempo em que o homem não existe.
No céu a lua sonha; embaixo, apenas
obscuros rastros, calma e solidão.
Na certeza que os fados me reservam,
vou para um princípio que não tem fim
e, após ida colecionando assombros,
volto para um fim que não tem princípio.
Comigo o que alfarrábios me negaram:
pedra, metal, madeira, barro ou som,
tudo o que a mim agrada e fantasia.
Por pântanos transito e me pergunto
o que me faz estar nessas paragens,
no instante mesmo em que acorda o mito.
Sei que um dia isto nunca será descrito,
nunca visto será, nunca explicado.
Nunca, se nem mesmo há o pensamento,
o tempo numeroso, calendários,
as sensações, as convenções, os números;
signos, crenças, a exata ciência, os códigos,
vivências, falas, preces e caminhos;
nada que, vindo do homem, será do homem?
Solfeja o mar. No cadenciar das ondas,
versos compõe com sílabas de espuma.
Quero um instante na caverna entrar;
talvez lá pare e me ponha a desenhar,
escrever e narrar, com pau e pedra,
o que agora mais vejo à minha frente
passar, correr, saltar, morder, zumbir,
uivar, berrar, zurrar, bramar, cantar.
Por águas e ares vou, pelas clareiras,
para a sombra que seja, ou para o nada.
O corpo me convida a repousar.
Deito. Levanto e indago em derredor
se haverá sempre essa noite e esse dia.
Miro a rua liberto de vaidades.
Da janela, a manhã me justifica,
imaginando o que pensou Laforgue,
na sua perfeição antropomórfica,
em noite de gelado Carnaval.
SSA/BA, 14/02 (sábado de Carnaval);11/03/2015
Florisvaldo Mattos, "Estuário dos dias e outros poemas" (no prelo).
*Tudo é vão, - e, lá no alto, vede, a Lua sonha
Tão fria como no tempo em que o Homem não existia.
(LAFORGUE, trad. nossa)

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