domingo, 31 de dezembro de 2017

PAREI DE COMER CARNE VERMELHA



Por Marion Minerbo
Olá, Ana Lisa, sobre o que gostaria de conversar hoje?
Olá, Marion, veja só que loucura! Ontem, mais uma amiga me disse que virou vegetariana. Sou praticamente a única carnívora da minha turma (risos)! Tem aqueles que só pararam de comer carne vermelha; outros que comem leite e ovos, mas nenhuma carne; e também os mais radicais, que não comem nada de origem animal. Nem mel. Perguntei para ela por que tomou essa decisão. Deu vários motivos. “Me sinto melhor quando não como carne”. “É desumano fazer isso com os animais”. “É uma forma de preservar o planeta”.
Fora os vegetarianos, tenho amigos que só comem orgânicos. E outros que estão na noia do clean eating: controlam tudo o que comem para evitar comidas “do mal”: lactose, glúten e nem sei mais o quê. Tem uma que chegou ao extremo da ortorexia, uma variante da anorexia. Lembrei da nossa conversa em agosto sobre como está todo mundo curtindo cozinhar, e sobre o delicioso sintoma da “gourmetização da vida”. [link aqui]. Meus amigos, ao contrário, parecem estar se privando do prazer de comer! O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?
Bem observado, Ana Lisa. É isso mesmo, a comida pode ser usada como solução sintomática e ter sentidos diferentes em cada caso. A gourmetização da vida pode ser entendida como solução para o sofrimento psíquico ligado à falta de transcendência numa cultura excessivamente materialista. Surgem, então, a comida-arte e a comida-sagrado. Mas as várias formas de auto-restrição alimentar também revelam algo sobre o sofrimento psíquico produzido pela nossa cultura.
Vamos deixar a dieta orgânica e o clean eating para outro dia e falar só sobre o veganismo.
Ok. A primeira ideia que me ocorre é que se privar de carne é uma maneira de dizer “não” aos excessos ligados à sociedade de consumo. Tanto que não faz sentido ser vegetariano nas classes sociais desfavorecidas.
É verdade! Quando minha irmã, que trabalhou num projeto social em Milagres, uma cidadezinha no meio do Maranhão, disse que não comia carne, as pessoas não entenderam. Como alguém, podendo comer, iria abrir mão da “mistura”?
Pois é. Isso me faz lembrar de uma conversa que tivemos sobre Jeans rasgado, em setembro. Por que alguém, podendo ter um jeans inteiro, prefere comprar um rasgado? Acho que esses fenômenos, embora tão diferentes, revelam algo de muito parecido sobre o mundo em que vivemos.
Você sempre diz que, para implantar um modo de vida hegemônico, a cultura precisa amputar certos setores da realidade. Me explicou que o sofrimento existencial em cada época e lugar tem a ver justamente com isso. Andei conversando sobre isso com duas amigas psicólogas, a Luciana e a Isabel Botter, e elas acham que nesse caso o que está sendo amputado é exatamente a falta.
Elas têm toda razão. O que a sociedade de consumo, da abundância, do excesso, não tolera, é justamente a falta, a escassez, a privação. E isto por uma boa razão: para sobreviver, a cultura do consumo precisa detectar nichos de mercado, criar demandas, para então supri-las. O que ela amputou para se tornar hegemônica é a experiência da falta. O que faz falta é a própria falta!
(risos)
Pode parecer, mas não é um jogo de palavras! Psiquicamente, precisamos não ter todos os nossos desejos satisfeitos. Precisamos de alguma escassez. Se a nossa cultura eliminou a falta, ela precisará ser produzida. Não é à toa que surgem aqui e ali life styles mais ou menos desapegados, minimalistas. O veganismo é um exercício de desapego em relação ao que a carne sempre representou na sociedade ocidental: a abundância.
Minha irmã vegetariana não compra mais roupa. Tanto ela como suas amigas se desapegaram das marcas, não querem mais comprar, consumir. Fazem bazares de troca. Cada uma leva o que não usa mais e elas trocam entre si. Mas por que a falta faz falta?
Porque o desejo depende da falta! Quando sentimos falta de alguma coisa, sofremos. E contanto que não falte o básico, – o que já seria da ordem do traumático, e não da falta – é esse sofrimento que nos move. Quando temos tudo, tudo é possível, tudo está ao alcance da mão, mata-se o desejo. Surge, então, outro tipo de sofrimento: não há mais o que desejar! O tédio é muito pior do que a falta!
Por que?
Porque, no limite, é o próprio desejo de viver que morre. Estar vivo é desejar o que ainda não somos, o que ainda não temos, os projetos que ainda não realizamos. Enfim, é desejar atingir o que a psicanálise chama de Ideal do Eu.
Ah, eu estudei isso em Freud. Pelo que entendi, é tudo o que perseguimos na ilusão de que, quando a gente “chegar lá”, não sentiremos falta de mais nada, e então seremos felizes.
Isso mesmo. Só que é uma ilusão necessária. Exceto quando a gente cria ideais francamente impossíveis – mas aí já estamos no terreno da psicopatologia! – a gente até chega perto de “lá”. Mas, se formos saudáveis, o desejo volta a pulsar, ganha forma através de novos Ideais do Eu, e nos impulsiona atrás de novos objetivos.
Entendi. Meus amigos argumentam que se sentem mais leves quando não comem carne, que é desumano matar animais e que estão contribuindo para salvar o planeta. Tudo isso é verdade, mas estamos no plano das motivações conscientes. O que a psicanálise acrescenta é a interpretação do que estaria determinando esse comportamento coletivo em nível inconsciente.
E com isso volto para o jeans rasgado. Quando conversamos sobre isso, ficou “faltando” (risos) uma ideia que só me veio agora. Essa peça de roupa um tanto bizarra fala de um paradoxo com que nos deparamos na sociedade de consumo. O jeans rasgado “diz” que a pessoa não tem dinheiro para comprar outro. Só que aqui a falta não é vivida “na carne” (risos), como quando alguém se priva realmente, e com algum sofrimento, de um bom hambúrguer. Ele é consumido como signo da falta. Ele mostra a falta sem que a gente tenha que sofrê-la de verdade.
Será que quem só pode ter uma única calça, usaria jeans rasgado?
Pois é! Quem não tem dinheiro para comprar carne seria vegetariano? O paradoxo é que na cultura do consumo podemos comprar uma dúzia de jeans rasgados para exibir o signo da escassez!
Eu não sinto necessidade, nem de me privar de um hambúrguer, nem de usar jeans rasgado. Será que sou um ET? (risos)  
(risos) Talvez! Ou você está mais em contato com o que te falta, não precisa criar substitutos para essa experiência.
Nossa, muito louco tudo isso!

3 comentários:

  1. Exatamente! Essa médica psicanalista tem umas boas sacadas.

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  2. Excelente!Mas faltou um ponto sobre o jeans rasgado: a sensualidade. Uma mulher descia a escada rolante do shopping. Grandes furos num jeans rasgado deixavam mostras de coxas que atraíam olhares masculinos e femininos que o jeans fechado não atrairiam.

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