segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

SÓ JESUS NA CAUSA!

Salvador tem 1,6 mil denúncias por barulho de igrejas


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CORREIO acompanhou a Semop e gravou som alto em algumas das 91 autuações
Em Mateus, capítulo 6, a bíblia reproduz o que seria um conselho de Jesus: “Quando for orar, entre no seu quarto e, fechando a porta, ore ao seu Pai em secreto”. Pelo visto, nem todos os que creem seguem esses ensinamentos. As 1.644 denúncias contra som alto emitido por igrejas, registradas em 2017 na Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), são a maior prova disso. As reclamações resultaram em 91 notificações ou multas até a última quarta-feira, quando o CORREIO acompanhou uma das operações da prefeitura. Amém!
Passava das 19h45 quando, em uma das ruas do bairro de Dom Avelar, a igreja Caminho da Glória fazia um barulho infernal. O microfone nas alturas amplificava o louvor, o bumbo da bateria fazia o chão tremer, o baixo batia forte nos tímpanos. Tá repreendido! No caso, repreendido pela prefeitura. O chefe de vistoria sonora da Semop, Roberval Soeiro, sacou o chamado decibelímetro, o aparelho que marca o volume do som em decibéis. A dois metros dos limites do estabelecimento para fora, o marcador bateu 84 pontos, 14 acima do permitido.
Aí foi só sacar a caneta e notificar a igreja, que funciona no local há um ano. O pastor Diego Varilas mostrou que entendeu o recado. “Ainda estamos terminando a vedação. Assim como a gente não quer que um bar ou um pagode nos incomode, a gente também não pode incomodar. Vamos nos adequar às leis do homem”, prometeu Diego, em uma postura para ser glorificada de pé.
Enquanto isso, porém, uma mulher continuava a cantar em voz muito alta, com microfone em punho, acompanhada pelos instrumentos musicais e as palmas dos fiéis, sem que o som fosse abaixado em momento algum, mesmo com a presença dos prepostos da Semop. Só Jesus na causa. “A maioria (das igrejas) não tem isolamento acústico. A voz na hora do louvor já costuma ser elevada. Eles ainda utilizam instrumentos amplificados e isso ainda se soma às palmas. Incomoda demais”, acredita o chefe de vistoria da Semop.
Igreja Caminho da Glória, em Dom Avelar, também foi notificada. Pastor prometeu se adequar (Foto: Betto Jr./CORREIO)
Não muito longe dali, no bairro da Mata Escura, a Igreja Deus é Amor também foi flagrada praticando poluição sonora.  Só que em volume ainda mais alto. Segundo a Semop, com a pregação de uma pastora, as palmas e os gritos dos fiéis e o som de um violão amplificado, o decibelímetro chegou a apontar 90 pontos, apesar de a fotografia do CORREIO ter sido feita quando ele marcava 75 decibéis. Da mesma forma, acima do nível permitido.
A barulheira, digna de castigo aos ímpios, é justificada pelo pastor Roque Brito. “Você começa a louvar a Deus e se empolga. É igual quando você ouve uma música. Muitos gostam de reggae, de rock. Nós gostamos de adorar a Deus”. Mas, o pastor promete dar um jeito no problema. “A partir de hoje, o que o irmão aqui puder fazer para não prejudicar ninguém, eu vou fazer. Não estamos aqui para prejudicar, mas abençoar”.
Do outro lado da rua, a baiana de acarajé Dalila Silva, 20 anos, já pensou em mudar de ponto por conta do barulho, que vem não só da Deus é Amor, mas também de outra igreja ao lado, mas que naquele dia não fazia tanto barulho. “É uma falta de equilíbrio deles. Um tormento! A gente não consegue nem atender os clientes”. O vizinho da casa ao lado da igreja, o rodoviário Fábio da Cruz, 36 anos, diz que tudo não passa de uma forma de chamar atenção para atrair “ovelhas”. “É uma igreja perto da outra. Quem grita mais atrai mais fiéis”, diz Fábio.
Baiana de acarajé, Dalila Silva disse que sofre com o barulho de duas igrejas na Mata Escura: 'Mal consigo ouvir os clientes' (Foto: Betto Jr/CORREIO)
Trio elétrico
Em alguns casos, orar com o som nas alturas parece não ser suficiente para algumas igrejas. No último domingo, na Rua Direta da Mata Escura, a reportagem do CORREIO deu de cara com um trio elétrico, de onde partiam não músicas de Carnaval, mas cânticos e louvores. Contamos apenas 28 pessoas acompanhando o culto naquele momento. E, certamente, um número muito maior de moradores indignados.
Uma delas, além de ter de suportar o trio naquele domingo, diz sofrer diariamente com duas igrejas, uma de cada lado de um pequeno condomínio de casas, onde ela mora. “Estou com uma criança recém nascida e um filho operado. Estou cercada. A igreja do lado direito fica até às 2h da manhã fazendo culto. A gente trabalha a semana inteira e, na hora de descansar, não pode. A mesma coisa fim de semana”, reclama, sem se identificar.
O evento com o trio elétrico foi organizado por várias igrejas da região. “Há reclamação quando há excesso. Trabalhei na Sucom, sei como é isso. Eu até já mandei dar uma baixada”, disse o pastor Paulo Jorge Batista, presidente e fundador da Igreja de Jesus Cristo, um dos responsáveis pelo evento. O repórter até tentou entrevista-lo em meio à barulheira.
Na oportunidade, o pastor garantiu que tinha autorização da prefeitura para realizar o evento com sonorização do trio elétrico. Márcia Cardim, coordenadora de poluição sonora da Semop, porém, disse que não partiu do órgão qualquer autorização para se utilizar trio elétrico em evento religioso no último domingo. “Pelo que vi no seu vídeo, o trio estava parado. Aí a poluição é ainda maior”, disse o chefe de vistoria, Roberval Soeiro.
Aprovação divina
Mas, qual a explicação para tanto barulho? Porque as igrejas precisam elevar a palavra de Deus em tantos decibéis? Bom, pelo que identificamos, muitos se sentem no direito de colocar o som alto porque sua atividade, diferente de um bar ou casa de show, teria a aprovação divina. “Os pastores gritam de uma forma que é revoltante. Pra que isso, meu Deus?”, pergunta a coordenadora de poluição sonora da Semop, Marcia Cardim.
“Eles acham que só quem causa incômodo são os bares. Acham que louvar a Deus não incomoda. Isso é um erro”, afirma Roberval Soeiro. “Será que eles acham que só gritando Deus vai escutar?”, pergunta. “Será que eles acham que Deus é surdo. Essa é a única explicação”, faz a mesma interrogação Cleide Santos, 37 anos, moradora do Engenho Velho da Federação, um dos bairros de onde partem mais denúncias.
Somente na rua Apolinário Santana, no Engenho Velho, há pelo menos cinco igrejas. “Já conversei com o pastor aí, mas não adianta. Meu marido levantou da cama e, do jeito que tava, foi para a porta da igreja. Eles começam 6h da manhã. À noite também. Para quem trabalha e quer descansar é complicado. Domingo a gente que dormir um pouco mais, né”, diz Cleide, que, além de vizinha da igreja, é sobrinha da obreira. “Essa filha de Deus é minha sobrinha. Ela pega no pé da gente. Já falei com o pastor”.
Os religiosos respondem. Na verdade, comparam com outras fontes de poluição sonora. “Não é puxando a sardinha para a minha fé, mas se fosse um pagode, um axé, aquelas músicas que vai até o chão, o povo não tava reclamando. Mas na hora de ouvir a palavra ninguém quer”, disse uma obreira da Igreja Internacional da Graça de Deus, no Engenho Velho da Federação. Na porta, sobre uma mesa, o folheto da igreja indica cultos a partir das 6h às segundas, quartas e domingos. “Ainda acham que não fazemos vigília”, diz a obreira. O pastor da igreja não foi encontrado.
Reincidentes
Alguns casos são tão recorrentes que a Semop, sozinha, não consegue resolver. Tem que pedir ajuda a outras instâncias, como o Ministério Público. Normalmente, são casos particulares, como o de uma igreja no bairro da Liberdade. Trata-se de um culto caseiro, realizado todos os dias. O local não tem alvará para funcionar como igreja. “Por ser uma residência, o proprietário da casa se sente no direito de colocar uma caixa de som nas alturas, incomodando os moradores e desafiando as autoridades”, afirma Roberval.
O CORREIO foi desaconselhado a ir no local por ser área de tráfico de drogas. “Essa é a igreja que mais tenho denúncia. Estamos com um problema seríssimo. Ela não é a única igreja que vamos fiscalizar e as pessoas dizem que é residência. Como pode uma residência fazer cultos todos os dias? Estamos com um probléma sério com esses imóveis residenciais transformados em igrejas”, revela Márcia Cardim.
Perda auditiva
O barulho das igrejas pode até incomodar os vizinhos, mas essa não é a consequência mais grave para os cultos com o som nas alturas. O principal prejuízo é na saúde. “Eles ligam aquelas guitarras e baterias nas caixas de som, elevam o volume do microfone, dentro de cubículos. O som se acumula ali dentro, é terrível”, afirma a coordenadora da Semop. “Os maiores prejudicados são eles. Muitas vezes as crianças, colocadas na frente do palco ou do altar, são as que mais sofrem”. “Se essas pessoas fizerem uma audiometria, vai ser constatada uma perda auditiva considerável”, confirma o chefe de vistoria sonora. “É um problema de saúde pública. Abala a audição, mas também o sistema nervoso”, destaca Roberval. Deus tá ouvindo!
Igrejas ocupam o 5º lugar das reclamações de poluição sonora
A equipe da Semop, formada por 45 pessoas, tem 29 fiscais para atender às ocorrências de poluição sonora em Salvador. Até aqui, em 2017, elas somaram 43.487 denúncias. As igrejas ficaram em 5º lugar no ranking das dez fontes mais denunciadas. À frente estão apenas veículos (13.947 denúncias), residências (10.585 denúncias), bares / restaurantes / boates (6.156 denúncias) e  áreas públicas (1.896 denúncias). O decibelímetro marca o volume de decibéis que uma fonte sonora emite. Os limites máximos permitidos variam de acordo com os horários:  
Entre 7h e 22h – O máximo permitido é de 70 decibéis a dois metros dos limites do imóvel onde se encontra a fonte emissora e de 60 decibéis dentro do imóvel do reclamante
Entre 22h e 7h – Máximo permitido é de 60 decibéis a dois metros dos limites do imóvel onde se encontra a fonte emissora e de 55 decibéis dentro do imóvel do reclamante  
Punições
  • Primeira visita: notificação para que desative a atividade poluidora, que só pode voltar a ser realizada com a autorização do órgão competente após aprovar o isolamento acústico
  • Reincidência: Caso descumpra a notificação, a igreja pode ser autuada. No caso de uma autuação reincidente, a fonte sonora pode ser embargada e os equipamentos apreendidos.
  • Perda de alvará: Caso não atenda ao embargo, a igreja pode ser interditada e chegar até à cassação do alvará do estabelecimento se ele existir.

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