Quase nove horas da noite. Uma chuva fina reveste as ruas de verniz prateado. Grandes guarda-chuvas protegem os apressados que se dirigem ao teatro São Carlos.
No hall de entrada, ao
retirar os abrigos, luzem os longos vestidos e faíscam as jóias. Os homens de
smoking tentaram individualizar o negro uniforme com uma borboleta, um colete,
um cinto colorido. Ousadias.
Esta não é uma noite de gala
qualquer.
Cada um sabe que estar aqui,
hoje, no mais belo teatro de Lisboa, é um privilégio raro.
Na sala – como é linda a
sala, com seus ouros sobre fundo bege, seus apliques cristalinos, suas
poltronas de veludo, os delicados afrescos do forro! – na sala, os espectadores
vão sentando com a ajuda dos lanterninhas apressados, braço carregando pesados
programas. Estes, nunca se venderam tanto!
Alguns homens, em vez de
sentar, ficaram em pé, voltados para a entrada, para ver quem está chegando.
Fazem, com a mão, um sinal para os conhecidos. Elas observam, com binóculos,
quem está ocupando os camarotes. Até o presidente da república marcou presença,
com todas suas condecorações e familiares, no camarote oficial, acima da
entrada, com direito ao brasão nacional.
Na fossa, os músicos afinam
seus instrumentos, sem deixar escapar algum acordo que lembre a obra da noite,
nem sequer o mínimo pedacinho de ária.
Na exata hora anunciada,
chega o regente. Aplausos.
Os burburinhos cessam. Nos
bastidores, batem as três rituais pancadas.
A orquestra inicia a abertura
de “
Lentamente levanta-se a
cortina com suas pesadas fileiras de galões e pompons.
O baile do palacete da Dama
das Camélias já começou. Os convidados enchem o palco. Confessemos que, apesar
da sedutora música de Verdi, a banalidade dos figurinos e do cenário, a
mediocridade da direção dos figurantes e coristas não levantam o entusiasmo de
um público de habitués e blasés. No ar, uma tensão evidente. Umas
centenas de fanáticos do bel-canto estão sentados na beira do assento, busto
inclinado para frente.
De repente, é como uma
explosão, uma irrupção vulcânica. Alta, fina e elegante, a soprano acaba de
entrar. A partir deste momento, nada será como dantes.
Majestosa? Não. Imperial.
Nos seus imensos vestidos de
decote generoso, ela vai dominar a famosa ópera romântica muito acima das mais
loucas expectativas. Sua voz, pura como aço temperado, é oferenda celeste,
domina as notas mais altas sem perder fôlego nem força e se transforma em rico
brocado nos momentos mais sombrios. Nunca Verdi assim foi cantado. A demi-mondaine vive trágica e sofre, sorrindo,
debaixo de nossos olhos. A sala inteira irá chorar a sua longa agonia, enquanto
o Alfredo Kraus, magnífico tenor-amante, parte para casar com outra. Será uma
das últimas apresentações de Maria Callas. Poucas vezes terá cantado com tal
gênio, as gravações da época estão aqui para provar que não menti.
O palco e a sala, durante
umas duas horas, serão submetidos à mais alta tensão. Ninguém se permite o
mínimo comentário senão uma ou outra incontrolável exclamação de entusiasmo.
Nas mesmas tábuas, onde já vimos Birgit Nilsson, Renata Tebaldi, Victoria de
los Angeles, Elizabeth Schwaskobf, sem falar dos Tito Gobbi, Boris Christoff e
outros, ninguém, nunca, será comparável a esta divina grega.
Estamos hipnotizados,
subjugados, entendendo finalmente o verdadeiro significado da expressão
“monstro sagrado”.
Dimitri Ganzelevitch Salvador, 9 de outubro de 2008.
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