sábado, 16 de setembro de 2023

LEGALIDADE CRIMINOSA

 'Você sai com medo da sociedade e ela com medo de você', diz mulher condenada a 6 anos de prisão por tráfico após ser pega com 50 gramas de maconha

Por Fernanda Soares*, Pedro Alves



Roseane Araújo no dia em que deixou a cadeia após ser condenada a seis anos de prisão por tráfico de drogas — Foto: Reprodução/WhatsApp

Roseane Araújo no dia em que deixou a cadeia após ser condenada a seis anos de prisão por tráfico de drogas — Foto: Reprodução/WhatsApp

"Você sai uma ex-presidiária. Você sai com medo da sociedade e ela com medo de você", afirma Roseane Araújo, que deixou a cadeia em 2020 depois de ser condenada a seis anos de prisão por tráfico de drogas. 


Ela portava 50 gramas de maconha que, na época, disse serem para uso pessoal.

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STFinterrompeu o julgamento que decidirá se descriminaliza o porte de maconha para uso pessoal e se diferencia o usuário do traficante com base na quantidade de droga encontrada em posse do indivíduo. Em ambos os casos, a Corte já formou maioria.


A prisão de Roseane Araújo aconteceu em 2013 e ela confessou o porte da droga, afirmando ser para consumo próprio. Ao g1, ela contou que tinha comprado a droga com um amigo e que foi abordada por policiais na volta para casa. Eles encontraram a maconha na bolsa dela e a prenderam em flagrante.

"Eu comprava essa quantia para passar a semana, justamente para não ir em boca de fumo, ser enquadrada, evitar essas situações constrangedoras", disse Roseane, de 33 anos. Na época, ela trabalhava como manicure em um salão de beleza no bairro de Rio Doce, em Olinda.

Conforme mostram os autos do processo, disponíveis no site do Tribunal de Justiça de Pernambuco, não foi encontrado dinheiro com ela. Roseane também contou que já tinha sido detida por porte de maconha em outra ocasião. Entretanto, daquela vez, por não ter, até então, passagens anteriores pela polícia, foi liberada.

A abordagem aconteceu quando ela voltava para a casa da mãe, na comunidade Pantanal, também em Rio Doce. Ela afirma que foi levada pelos militares para a comunidade do Jacarezinho, que fica no limite entre Olinda e Paulista, no Grande Recife.

"O 'enquadro', sem dúvida, aconteceu porque ali próximo tem uma boca de fumo, mas eu sequer comprei lá e não tinha acesso a esse pessoal. [...] Fui agredida, me deram choque e disseram que iriam dar dois tiros em mim se eu não dissesse de onde peguei a maconha", contou.

Roseane disse que, em seguida, foi levada para o Instituo de Medicina Legal (IML), em Santo Amaro, no Centro do Recife, para fazer exame de corpo de delito. Ela contou que estava machucada; "Disseram que eu tinha corrido e cai, nem me examinaram direito", afirmou.

A manicure passou por audiência de custódia e foi levada para a Colônia Penal Feminina do Recife, na Iputinga, na Zona Oeste do Recife. Lá, passou dois anos esperando julgamento. A sentença foi expedida em novembro de 2015: seis anos de prisão e 600 dias-multa pelo crime de tráfico de drogas.

Dos seis anos, dois foram abatidos da pena por terem sido cumpridos enquanto ela aguardava julgamento. Mesmo assim, segundo Roseane, ela passou mais tempo do que o necessário em cárcere. Ela diz não ter pago multa por causa disso. O g1 questionou o Tribunal de Justiça sobre o porquê de ela ter ficado presa por mais tempo do que havia sido condenada, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.

"Foi terrível. Eu tinha acabado de chegar e tudo que eu queria era ir embora, eu tinha uma filha, com menos de 3 anos na época e queria ficar com ela, tinha acabado de alugar uma casa. Além de machucada fisicamente, fiquei frustrada psicologicamente", contou Roseane.

A condenação de Roseane foi assinada pela juíza Ângela Maria Mello. Para proferir a sentença, a magistrada afirmou que, embora a ré dissesse que a maconha era para consumo próprio, os PMs que a prenderam afirmaram que "a droga estava prensada e, pela quantidade da apreensão, poderia ser transformada em cerca de 80 papelotes de maconha, quantidade incompatível para ser considerada como para consumo".


Colônia Penal Feminina do Recife, na Iputinga, na Zona Oeste do Recife — Foto: Reprodução/Google Street View

Roseane também afirmou que, no tempo em que ficou presa, apanhou de outras presas no início da detenção, ficou desnutrida e recebeu poucas visitas, pois a mãe dela adoeceu. Além disso, ela pediu que o pai da filha dela não levasse a criança na cadeia.

"A gente teve toda uma proposta de educação [com a criança] e não queríamos que ela ficasse frustrada, porque era difícil explicar para ela o que tinha acontecido. Ela poderia achar 'minha mãe é criminosa' e a gente não sabia como lidar com isso no momento. Como ela notou a ausência da mãe, teve acompanhamento psicológico e achava que eu estava viajando num navio. Isso me machucava muito", disse.

Antes de ser condenada, ela tentou recorrer da prisão várias vezes por excesso de espera pelo julgamento. Todos os pedidos foram negados pela Justiça.

Na prisão, ela trabalhou como costureira para algumas empresas como parte de um programa de empregabilidade para as detentas. Ela cumpriu toda a pena em regime fechado e saiu da prisão em 2020.

"Fiquei bastante atribulada e me vi sem nada. Você sai uma ex-presidiária. Você sai com medo da sociedade, e a sociedade com medo de você. Tive que viver com mulheres que realmente eram criminosas e precisei aprender a me cuidar", disse.

Segundo a advogada que defendeu Roseane, Christina Agra, apesar de ter trabalhado na prisão e de ter bom comportamento, a ré não teve progressão de regime penal, como prevê a legislação, porque era preciso que algum defensor solicitasse esse direito à Justiça, que não adota a medida de forma espontânea.

A defensora disse que foi contratada para atuar apenas na primeira instância. Como ela não estava mais no caso após a sentença, ninguém recorreu da pena a instâncias superiores da Justiça ou requereu a progressão de regime.

"Considero Roseane mais uma vítima dos que buscam lucrar no mercado do tráfico. Ela não foi pega com balança de precisão, celulares, ou grande valor em dinheiro, nem foi flagrada comercializando a droga a quem quer que fosse. No meu parecer jurídico, se enquadra como usuária. O intuito da atuação estatal não é punir, mas buscar a reinserção dos usuários na sociedade", afirmou a advogada.

g1 perguntou à Justiça o porquê de Roseane ter sido mantida presa sem progressão de pena, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.

Também questionado, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) disse que, segundo a Central de Inquéritos de Olinda, o flagrante de Roseane foi tipificado como tráfico pelo fato dela ser reincidente, já tendo sido presa anteriormente pelo mesmo delito, e pelas circunstâncias da prisão terem "contexto de tráfico, conforme relatos de testemunhas".

O MPPE também disse que:

  • "Embora algumas pessoas trafiquem para custear o próprio vício, a condição de usuária não exclui a de traficante";
  • Roseane não apresentou testemunhas que pudessem comprovar a condição de usuária.
  • A quantidade da droga encontrada com ela, 50 gramas, quando fracionada, dá origem a 100 cigarros que pesam, em média, 0,5g.

Apesar de solta, para Roseane, a liberdade, por um tempo, foi apenas uma utopia. Isso porque ela teve dificuldades para conseguir emprego e, com a pandemia, os problemas aumentaram. Desempregada, ela teve trabalhos temporários como auxiliar de cozinha e como pesquisadora em uma empresa de viagem.


"Emprego era difícil, e me enturmar era difícil até com quem eu conhecia, porque as pessoas que te conhecem sabem que você foi presa, mas não sabem o que aconteceu lá dentro e imaginam as piores coisas", contou.


g1 questionou a Polícia Militar sobre as acusações de agressão feitas por Roseane, mas a corporação não respondeu até a publicação.


'O usuário se torna refém do tráfico'

Roseane afirma que a falta de clareza da legislação é um dos maiores problemas para quem consome a erva. A Lei de Drogas, de 2006, aprovada pelo Congresso, permite a chamada despenalização do porte de drogas para consumo próprio. No entanto, não há na lei uma determinação da quantidade que pode ser caracterizada como tráfico ou porte para consumo.

"Se não pode plantar em casa, tem que buscar em algum lugar, e é nessa busca que tudo pode acontecer", disse.

Roseane também afirma que sente otimismo com a votação da descriminalização do porte de maconha, em vigor no Supremo Tribunal Federal (STF).

"Espero que vejam pelo outro lado da situação, porque a sociedade tem uma visão muito crítica de tudo. O usuário também se torna refém do tráfico, porque não existe outra opção. Entendo o argumento de que acabamos financiando, de um jeito ou de outro, o tráfico, mas também viramos vítimas", disse.

Julgamento do STF


O processo começou em 20 de agosto de 2015 e o STF julga em plenário se o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que proíbe o porte de drogas para uso pessoal, está de acordo com a Constituição ou se viola os princípios de "intimidade" e "vida privada".


No entanto, ele já foi interrompido diversas vezes, a mais recente delas foi no dia 25 de agosto. Os votos apresentados até o momento têm em comum a liberação do porte da maconha para usuários, com propostas diferentes quanto à fixação dos critérios para a caracterização do uso pessoal.


O Supremo vai decidir, de uma só vez:


  • se o porte de maconha para uso pessoal é crime – o placar até agora é de 5 a 1 para que não seja crime;

  • se é possível diferenciar o usuário do traficante com base na quantidade de droga encontrada – o placar é de 6 a 0, e já há maioria para definir uma quantidade-limite.

Ao discutir o assunto, o STF também debate se é necessário estabelecer um critério para definir o que é esse "uso pessoal". Ou seja, se há uma quantidade-limite de droga que separa o usuário do traficante para a Justiça.

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