sábado, 16 de setembro de 2023

CAIXA CULTURAL

 



Em 2006 fui convidado a expor parte de minha coleção na Caixa Cultural de Salvador.
A tentativa foi um desastre.
Neste momento um amigo meu está passando pela mesma experiência.
Assim que resolvi publicar esta velha carta.
Sempre atual

CARTA A UM HOMEM CULTO
Meu caro Luís.
Foi bom lhe encontrar, mesmo que por poucos instantes. Temos tantos pontos comuns!...
Roubando um pouco de seu tempo, gostaria de dissecar, aqui, meu desentendimento com a Caixa Cultural. Não para me justificar – não tenho nem motivo nem idade para isso – mas para tentar definir uma relação endemicamente desequilibrada entre artistas, intelectuais, colecionadores e o mecenato empresarial, já que a CEF, mesmo sendo coisa pública (re-publica), age na área de apoio financeiro a Cultura.
O que é uma ótima proposta.
Infelizmente, tal proposta consegue ser deturpada por atitudes levianas e desrespeitosas.
Durante almoço na minha residência (Ana Zalcbergas, diretora local da CC, o museólogo-antropólogo Raul Lody e eu) em Novembro passado, surgiu a idéia - não formulada por mim - de apresentar parte de minha coleção na antiga Casa de Orações dos Jesuítas, rua Carlos Gomes, hoje sede da Caixa Cultural.
Aceitei a proposta, mesmo relutando em elaborar pedido formal acompanhado de orçamento. É praxe? Pois nem sempre deveria.
No meu caso, considero que deveria ser convidado. Questão de protocolo.
Durante várias reuniões, Raul Lody, Cláudio Oliveira Mendes, vice-presidente da Associação Cultural Viva Salvador e eu elaboramos um projeto de exposição e consequente estimativa de apoio financeiro.
Depois de muita discussão, chegamos à conclusão de que aproximadamente 10% de minha coleção (150 peças) seriam expostas nos vários espaços do casarão. Cada sala com um tema. “O Homem de Barro”, “África, áfricas”, “Amigos”, “Outra Bahia”, “Barracas de festas de largo”, “Ler para Viver”, “Máscara, sonho de liberdade” etc, sem esquecer o conjunto “Recuperados, Desviados e Reciclados” que o Ministério Francês de Cultura convidara em 2003 no Musée du Montparnasse, em Paris, e que depois seria hospedado pelo Ministério Marroquino da Cultura em Rabat, ambos com surpreendente êxito de público, conforme atesta meu livro de ouro.
Após pedir ajuda técnica e orçamentária a Maria Helena Pereira da Silva, reconhecida programadora visual e a outros profissionais, em 28 de Dezembro, entreguei o dossiê com proposta definitiva.
Quanto ao orçamento, dentro da faixa escolhida de R$100.000,00, não seria ultrapassada a modesta verba de R$78.000,00. Modesta, sim, porque incluía não somente apresentação de objetos e quadros, alguns raros e preciosos, mas também projeções simultâneas de vídeos, sonorização, música ao vivo, ceia baiana, participação dos vendedores de cafezinho, donos de barracas de festas de largo etc.
É bom também evidenciar que a total ausência de suporte técnico neste centro cultural, sejam painéis, vitrines ou bases, encarece qualquer veleidade de exposição.
Para chegar a esta quantia, sempre escolhemos as soluções mais razoáveis, dentro de critérios qualitativos incontornáveis. E, como você deve supor, nunca acrescentando as tais “gordurinhas” já que os três responsáveis pretendem envelhecer sob o idealista e raro signo da Ética.
A resposta foi longa a chegar. Dois dias antes do carnaval.
E não mais teria a exclusividade do espaço, obrigando minha exposição a dividir paredes com desconhecido fotógrafo. Recusei, argumentando necessidade da totalidade do centro cultural e evitar decorrentes equívocos de leitura.
Nova espera, novas datas. Meu pedido fora finalmente aceito.
A exposição seria para princípios de Outubro.
Porque então, a pesar das novas condições, desisti da exposição?
*O orçamento contraproposto pela Caixa seria amputado em uns 30%, limitado a meros R$58.000,00! E mais:
* Não havia verba para fotografias nem programação visual (e muito menos para revisão)!
*Os três escritores convidados (Ordep Serra, Ildásio Tavares e Raul Lody), para os quais eu reservara a módica soma de R$500,00 cada um, deveriam se contentar com R$800,00 para os três.
Descontando as diferentes taxas, quanto iriam receber? O suficiente para comprar amendoins. E quando, dentro de 30 dias? Provavelmente.
Considerei isto uma afronta para intelectuais de evidente relevância a nível nacional.
Para finalizar, alem de atravessar uma gincana de burocracias kafkianas, ainda tinha que extrair desta derretida verba:
*O aluguel do estacionamento,
*Etiquetas para fechar os envelopes,
*Senhas para o público,
*Coquetel de hotel de luxo,
*Banners para as sucursais
*e outras exigências, ultrapassando assim um gasto total de R$6.000,00.
Como interpretar esta “oferta”? Três hipóteses: Ou a CEF tem uma lista secreta de fornecedores muito abaixo dos preços do mercado, ou somos incompetentes, ou simplesmente desonestos.
Você decide.
Mais humilhante foi ouvir que, para complementar este orçamento enxugado, eu seria autorizado (!) a pedir outros patrocínios!
Imagine um homem de 70 anos de chapéu na mão, pedindo ajuda a supermercados, restaurantes e boutiques para expor parte de sua coleção em centro cultural de banco, isto é, sem a mínima finalidade mercantil!
E, diga-se de passagem, sem a menor necessidade de reconhecimento público...
Você acha que é forma de tratar os que fomentam cultura, criando, pesquisando, produzindo reflexão, mobilizando a opinião pública sobre a importância da memória, das artes, motivando a participação social?!
Somos vítimas de uma sociedade que prioriza o Material em detrimento do Pensamento, que valoriza a Conta Bancária em vez de reverenciar a Cultura.
Só pro memória: Minhas exposições (de espírito fundamentalmente brasileiro e popular) em Paris e Rabat foram inteiramente financiadas pelos ministérios daqueles países: Embalagem, Transporte, Seguro, Catálogo, Convites, Coquetéis de inauguração, mais duas viagens (França e Marrocos) ida e volta, hotel e alimentação durante dez dias para cada vez.
Porque será que temos sempre que olhar para cima quando pretendemos apoio para realizações que beneficiam a sociedade inteira, mesmo os que delas não participam diretamente?
Você, que estudou em dois continentes durante anos, que passou privações para conseguir seus diplomas, você é menos importante na escala humana e social que um diretor de banco ou um político? Claro que não!
Estamos entrando, mesmo em paises ditos “em via de desenvolvimento”, na era pós-industrial, onde a Ciência e a Cultura terão muito mais relevância que os malabarismos e arrogâncias da Economia e da Indústria. Está na hora de esta gente acordar.
Acho-me tão essencial à sociedade quanto qualquer um destes senhores engravatados.
Não lhes devo nada, muito pelo contrário.
Megalomania? Arrogância? Não.
Simplesmente, exijo respeito ao meu trabalho, a estes mais de cinqüenta anos de procuras, viagens, estudos, estas longas horas em museus, centros culturais, reservas naturais, galerias e sítios arqueológicos por quatro continentes, participações em congressos e seminários, às vezes até organizados por mim, de artigos defendendo minhas posturas, meus pontos de vista. De meus apoios a programas sociais, resgates de culturas ameaçadas, artistas ignorados.
Não posso admitir ser tratado como um moleque aproveitador das instituições. Elas é que se aproveitam de mim, de você (Vide o descalabro da Fundação Moinho Santista), de todos os que vivem na sombra, na humildade, dinamizando as revoluções civilisatórias e fazendo avançar a sociedade naquilo que ela tem de melhor e de mais perene.
Achei importante você saber de detalhes desta desastrosa tentativa de tornar público um trabalho de mais de meio-século.
Claro que pode dispor desta carta como melhor entender.
Eu mesmo me reservo o direito de divulgá-la, pois está na hora de, nos “agitadores culturais”, exigirmos respeito para com as nossas propostas de vida.
Salvador, Outubro 2006.
Um grande abraço,
Dimitri Ganzelevitch

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