RUY ESPINHEIRA FILHO
Penso que foi Paulo Mendes Campos quem falou que os bares morrem numa quarta-feira. Não, não creio, foi ele mesmo, chegou a sair, pela Editora Ática, coletânea com o título de os bares morrem numa quarta-feira. Tenho quase tudo que o PMC escreveu em crônica, mas não as crônicas completas, que não saiu em edição. Saiu, sim, a poesia completa, que comprei de imediato.
Gosto dele como cronista e poeta, sabendo de memória uns versos admiráveis do poema “Infância”: “A besta era serena e atendia/
pelo suave nome de Suzana./ Em nossas mãos à tarde ela comia/ o sal e a palha da ternura humana./ O cavalo Joaquim era vermelho/ com duas rosas brancas no abdômen. / À noite o vi comer um girassol./ Era um cavalo estranho feito um homem.” O poema é longo, com outras partes excelentes, mas sempre achei que estes oito versos já falariam muito bem dos deslumbramentos de uma infância. Li este poema muito jovem e foi nele que primeiro vi a palavra “abdômen”, pois só conhecia “abdome”. Fui ao dicionário
para checar e melhorei a minha adolescente cultura.
Os autores boêmios acabam falando da boemia – e isto PMC foi dos melhores. Se às vezes a coisa pesa, outras nos faz cair em alumbramento. Como a história que Vinicius de Moraes conta em crônica. Estava nos EUA, encontra sua amiga Carmen
Miranda num bar, ficam conversando – e então lhes aparece uma mulher alta e belíssima, uma dessas que alguns chamam de “condomínio”, tal a amplidão da beleza. E a mulher chegou, conhecia Carmen, que a apresentou ao poeta. E ali conversaram um
tempo e a mulher chamou Vinicius para dançar. E ele, cavalheiro, foi, já bastante deslumbrado.
Dançaram umas duas ou três músicas, a beleza detonou seu uísque e se despediu. Impressionado, o poeta perguntou a Carmen quem era ela. E a resposta: uma novata que está tentando qualquer coisa no cinema, se chama, deixe-me, ver... Ah, sim: Ava Gardner. Não digo que Vinicius caiu das nuvens, porque, na verdade, isso nunca lhe aconteceu, sempre nelas viveu sua vida inteira. Agora, ter dançado com Ava Gardner... Pronto, já ganhara mais do que o Prêmio Nobel. Com aquelas danças o poeta humilhou, sim, os demais boêmios do Brasil, mas parece mesmo que quem melhor escreveu sobre boemia foi PMC, embora alguns, como Antonio Maria e Carlinhos Oliveira, tenham bebido mais do que ele.
Quanto a mim, penso que os bares não morrem numa quarta-feira – morrem a todo instante, como sei por experiência própria. De quantos bares recordo que não existem mais? Bem alto número. No mais, dos grandes boêmios conheci pessoalmente Carlinhos Oliveira e Rubem Braga, mas não o PMC. Mário da Silva Brito tentou cavar um encontro, mas, quando cheguei ao Rio, o homem estava viajando. Uma pena.
(A Tarde, 07/09/2023, p. 3. Opinião)
INFÂNCIA
Paulo Mendes Campos
Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sanguínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,
Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.
O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.
A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.
Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.
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