Boipeba: a luta do povos contra os “barões do litoral”
Projeto turístico-imobiliário José Marinho e Armínio Fraga, que devastará paraíso baiano, pode ser apenas o começo. População denuncia que uma “corrida pela terra” começou na região — e ameaça ainda mais bioma e territórios originários
Publicado 14/09/2023 às 18:36 - Atualizado 14/09/2023 às 18:37
Comunidades tradicionais e ambientes naturais em terra e mar podem ser os mais prejudicados pela construção de um projeto turístico-imobiliário privado na ilha de Boipeba. A empreitada pode azeitar a especulação de terras e a aprovação de licenças similares no litoral da Bahia.
O empreendimento Ponta dos Castelhanos foi licenciado em março pelo governo baiano numa fazenda que toma quase 20% de Boipeba, ou 1.651 hectares (ha). A ilha é uma das porções mais preservadas da Mata Atlântica e abriga povoados tradicionais de quilombolas, pescadores e extrativistas.
“Em mais de 500 anos de ocupação houve uma devastação sem precedentes da Mata Atlântica, mas ela foi mantida pela ocupação tradicional do litoral sul da Bahia”, afirma Eduardo Barcelos, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF Baiano), ligado ao Ministério da Educação.
Uma de suas guardiãs é Rosângela Maria da Paixão Santos, a Dolinha. Ela cresceu catando mariscos e pescando com a família, atividades mantidas pelos filhos e marido. Hoje todos manejam uma barraca na praia do Bainema, em Boipeba, buscada por turistas brasileiros e do exterior.
“Sempre sobrevivi do mangue. O mangue era a minha firma [empresa onde trabalhava], vive aqui no meu coração. Eu aprendi a respeitar o ser humano, aprendi a respeitar a natureza e a trazer para casa o alimento, tudo através do mangue. Ele é um ‘ser’ muito importante”, declara Dolinha.
As ilhas de Tinharé e Boipeba abrigam a maior faixa contínua de restinga arbórea do litoral do Baixo Sul baiano e cerca de 36 mil ha de manguezais, que protegem o clima e garantem a renovação da vida marinha, mesmo de espécies que interessam à pesca comercial.
Todavia, a Bahia é um dos líderes nacionais em casos de violência no campo e no desmate da Mata Atlântica. Restam apenas 196 mil ha dos 770 mil ha originais no litoral do Baixo Sul do estado. A redução é superior a 70% na vegetação nativa da região. Os dados são do IF Baiano.
Latifúndios costeiros
Barcelos, do IF Baiano, avalia que a decaída ecológica da região é ligada a uma “corrida pela terra” para a formação de “latifúndios costeiros”. Seus levantamentos apontam que 16 mil ha do território são concentrados em 18 imóveis. Isso ocorre muitas vezes pela privatização de terras públicas, conta.
“A experiência brasileira mostra que onde esses empreendimentos chegaram, o solo foi fatiado, a Mata Atlântica foi devastada, comunidades foram divididas, expulsas e submetidas à insegurança alimentar [pela privação de fontes de renda e alimentos]”, destaca o pesquisador.
O cenário que se acerca de Boipeba assusta quem tem a vida calejada pela discriminação histórica que o Brasil impõe a populações negras e indígenas, a quem não tem dinheiro ou padrinhos políticos para lhe proteger. É o caso do quilombola Benedito da Paixão Santos, o Bio.
“Fui escravo demais dos outros e hoje graças a Deus eu trabalho para mim mesmo, com a pesca e o turismo. Sempre estou aqui para apresentar o de melhor, tanto pra minha comunidades e pros amigos que visitam a nossa ilha”, ressalta. Mas as perspectivas para essas pessoas não são animadoras.
Os especialistas ouvidos por ((o))eco avaliam que uma consolidação do Ponta dos Castelhanos estimulará iniciativas semelhantes em outras áreas preservadas do litoral. O projeto foi licenciado em março deste ano pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia.
Doutora em Biologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Cacilda Rocha alerta que eliminar florestas, restingas e mangues da Mata Atlântica prejudicará ambientes preservados em terra, costa e mar, bem como as populações que deles sobrevivem.
“Isso agravará processos erosivos e das chuvas nesses terrenos arenosos. E isso tudo pode ser carreado para o ambiente marinho da ilha, onde temos recifes com 16 espécies de corais”, descreve a cientista e moradora da ilha de Boipeba.
Licença contestada
A licença inicial do Inema ao projeto prevê obras em menos de 2% da área da fazenda e desmate de 3 ha (0,17%) dos 1.651 ha comprados em 2008 pela Mangaba Cultivo de Coco. O grupo tem sócios como José Roberto Marinho, herdeiro da Rede Globo, e Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Mas, cálculos do IF Baiano apontam que a ocupação será de ao menos 347 ha. Serão 201 ha de loteamentos, outros 88 ha para pousadas, 22 ha da pista de pouso e 36 ha para residências. O consumo de água das estruturas será cinco vezes maior que o da comunidade de Cova da Onça, no sul de Boipeba.
“O projeto impactará matas, restingas geológicas, áreas de recarga de água, campos de mangaba [fruta nativa], de mussununga e manguezais”, avisa Eduardo Barcelos, do IF Baiano.
Conforme o cientista, a licença estadual dribla diretrizes federais para conservar a biodiversidade e não pesa impactos cumulativos de outros projetos na segurança alimentar das comunidades tradicionais, que pescam, catam alimentos e operam turismo, inclusive na área do projeto.
Matriarca do samba de raíz em Boipeba, Jenice Santos pede muita cautela antes que moradores e autoridades públicas dêem sinal verde definitivo ao empreendimento. “Fica esperto, abre o olho e pare para analisar, que é para depois não chorar”, avisa.
“Eu sou nativa de Boipeba, vivi muitos anos pescando, tirando polvo, metendo o braço no buraco do caranguejo, pescando naquele rio do Catu. Então como é que hoje eu vou aceitar que as pessoas vêm de fora querer poluir um lugar tão bonito”, reclama.
Patrimônio federal
A licença do governo baiano ao projeto Ponta dos Castelhanos foi abalada no início de abril, quando a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) suspendeu a transferência de titularidade das terras federais à Mangaba Cultivo de Coco. O repasse ocorreu no governo de Jair Bolsonaro, em abril de 2022.
O bloqueio vale por 90 dias. Até lá, a empresa não pode realizar “qualquer obra ou benfeitoria” no “resort”, determina o governo federal, e a SPU emitirá um parecer definitivo sobre o imóvel. Se for confirmado como patrimônio da União, a licença do Inema pode ser derrubada.
“A licença perde completamente a validade. A partir de estudos, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União já fizeram essa indicação. Infelizmente o Inema não seguiu essa orientação”, lamenta o deputado estadual Hilton Coelho (PSOL-BA).
Ao mesmo tempo, uma ação do MPF questiona os prejuízos do empreendimento às comunidades locais, que têm preferência no uso das terras da União. “A área não é propriedade particular, ela é pública. Ela é muito pública”, diz o procurador federal Ramiro Rockenbach.
“Não podemos permitir neste país nenhum tipo de fraude, nenhum tipo de grilagem de terra pública. É proibido que se faça um regime de ocupação quando uma área tem interesse ambiental, quando uma área é ocupada por comunidades tradicionais”, salienta.
Professor de Direito na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e membro do Conselho Gestor da APA Tinharé-Boipeba, Leonardo Fiusa denuncia que grandes empresas, latifundiários, especuladores de terras e até agentes de governos tomam terras públicas no litoral baiano.
“É uma avalanche de empreendimentos, de cercamentos e de desmatamentos afetando o modo de vida das famílias tradicionais e o meio ambiente”, destaca o pesquisador, também membro do Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia (OBSUL).
Vidas em jogo
Ao mesmo tempo em que ameaça distribuir prejuízos socioambientais, o Ponta dos Castelhanos é visto como uma possibilidade de mudança de vida por moradores de Boipeba, negligenciados por políticas públicas para geração de empregos e renda, de saúde e de educação.
A esperança é mais forte no povoado de São Sebastião, ou Cova da Onça, rodeado pela fazenda onde pode ser implantado o projeto. “Muitos alunos desistem de estudar porque não tem perspectiva de futuro”, lamenta a pedagoga Taiane Magalhães.
“As dificuldades que a gente vem enfrentando fizeram a gente acordar e correr atrás do empreendimento, mas ao mesmo tempo em que queremos o desenvolvimento para nossas comunidades, queremos que [o projeto] ocorra de forma sustentável e com nossos direitos respeitados”, diz.
O avanço de empreendimentos privados no litoral sul baiano ocorre também num cenário de criminalidade crescente. Narcotraficantes já monitoram a circulação de pessoas e veículos nas vias de terra e areia nas ilhas de Tinharé e de Boipeba.
Uma fonte que não será identificada para sua segurança confirmou a ((o))eco pressões crescentes de marginais sobre as populações tradicionais. “Isso já está acontecendo, já está muito forte, até impondo uma ‘lei do silêncio’ nas comunidades”, revela. A situação é assumida pelo poder público.
“Temos três polos empregatícios em Cairu. Primeiro é o turismo, graças ao Morro de São Paulo, segundo é a Prefeitura e o terceiro é o crime organizado”, reconheceu o vereador Vereador Diego Meireles (DEM), presidente da Câmara Municipal de Cairu, onde estão as ilhas.
Panorama do extremo sul da ilha de Boipeba,
onde está a comunidade de São Sebastião,
ou Cova da Onça.
Vídeo: Fellipe Abreu/Mongabay Brasil/O Eco
Outro lado
As fontes desta reportagem foram ouvidas por ((o))eco, em parceria com Mongabay Brasil, em Boipeba e numa audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia, em 18 de abril. José Roberto Marinho e Armínio Fraga não se pronunciaram. A posição da Mangaba Cultivo de Coco foi recebida por email e pode ser conferida abaixo.
O projeto atende a todos os requisitos legais e regulamentares, e o Inema definiu 59 condicionantes que buscam evitar qualquer inadequação ou prejuízo ambiental. Dentre elas, está previsto que, entre os 69 lotes do projeto, dois deles serão destinados à comunidade para a construção de um Centro de Cultura e Capacitação (CECC), campo de futebol, equipamento esportivo e estação de tratamento de resíduos. Tais condicionantes garantem ainda o livre acesso para atividades extrativistas, respeitando o limite do manguezal. Além disso, a comunidade terá ganhos imediatos, como um projeto integrado de saneamento básico e infraestrutura pública comunitária, preservação de fauna e flora, programas de educação ambiental, implementação de um programa de gerenciamento dos resíduos da comunidade de Cova da Onça, que contará com coleta seletiva e uma usina de tratamento de lixo. Isso sem falar em um programa de capacitação e na geração de empregos diretos para uma parte da população que, ao longo dos anos, permanece em situação vulnerável.
O projeto não prevê a construção de nenhum campo de golfe. As construções serão eventualmente realizadas em menos de 2% da área total, com supressão vegetal em apenas 0,17% (e sua devida compensação determinada pela Lei 11.428 de 2006) de 1.651 hectares adquiridos pelo grupo em 2008, o que garante a preservação naturalmente da APA das Ilhas de Tinharé-Boipeba. Para além do cumprimento das condicionantes e medidas compensatórias, o projeto ocupará uma área menor do que determinam as regras de zoneamento da APA Tinharé Boipeba, oferecendo poucos lotes, entre 20 e 80 mil metros quadrados cada, para evitar um alto adensamento. Ressalte-se que esses terrenos previstos para a construção são compostos essencialmente por coqueirais. Ao contrário do que tem sido também divulgado, será garantido o acesso das comunidades a todos os caminhos relacionados com a pesca e coleta de mangaba e mariscos. Esses caminhos serão inclusive melhorados, para que fique ainda mais fácil, por exemplo, alcançar o Rio Catu, os portos do Almendeiro Grande, da Ribanceira, do Coqueiro e do Campo do Jogador. Não haverá muros nem cercas.
Pelas nossas estimativas, considerando os ajustes realizados no projeto inicial, serão gerados aproximadamente 1500 empregos, na alta estação, e cerca de 700, na baixa estação.
A área está localizada em terreno de Marinha, que são considerados bens da União (Art. 20, VII, CRFB/88). Foi pleiteado, em 2007, pelo antigo proprietário, o aforamento gratuito, conforme Artigo 64 do Decreto-lei número 9760/1946, que trata as questões de transferência de domínio útil. Há, inclusive, documentação que considera essa área privada. Existe farto registro de sua cadeia sucessória. Compramos o terreno em 2008 e, como legítimos proprietários, ocupamos legalmente essa área e continuamos pagando a taxa de ocupação (Artigo 127 do Decreto-lei 9760/1946), que já vinha sendo paga regularmente há muitos anos. Diversos documentos asseguram a posse do imóvel Fazenda Ponta dos Castelhanos pelos sócios da Mangaba Cultivo de Coco LTDA. Inicialmente, adquiriu-se direito de ocupação do antigo titular ainda em 2008, conforme escritura pública de compra e venda devidamente registrada em Cartório de Registro de Imóveis de Taperoá (BA). Além disso, há, ainda, a adequada Certidão de Autorização para Transferência (CAT), documento expedido pela própria SPU. Acrescente-se que o pedido de transferência teve todos os seus trâmites administrativos encerrados em 2022, quando passou a constar como titular um dos sócios.
Constatamos, por meio de diálogos e escutas junto às comunidades locais, que uma ampla maioria da população da Ilha de Boipeba é favorável ao desenvolvimento sustentável da região. Essa posição foi inclusive referendada por uma abaixo assinado realizado pela comunidade de Cova da Onça em 2019, com mais de 300 assinaturas. O projeto vai promover uma importante transformação social, com melhoria da qualidade de vida em comunidades com as quais foi estabelecido um diálogo intenso. Desde o início das tratativas com o Inema, em 2010, a Mangaba participou de diversas audiências públicas com essas comunidades, visando esclarecer as informações do projeto e os impactos socioambientais positivos para a região, bem como assegurar a mitigação e a devida ação compensatória relativa a quaisquer intervenções no território, para implementação do projeto. Antes de ser aprovado pelo Inema, o projeto foi submetido à manifestação de diversos órgãos, como o IPHAN, Fundação Palmares, Superintendência do Patrimônio da União (SPU), Prefeitura de Cairu e Ministério Público estadual. Além de todas as audiências públicas realizadas ao longo dos anos, ocorreram em 2014, por exemplo, sete reuniões com as comunidades: Barra dos Carvalhos (9/9); Fazenda Cova da Onça (10/9); Sede do município de Cairu (10/9, uma reunião; e em 16/9 outras duas reuniões); Cova da Onça (17/9); Barra dos Carvalhos (23/9).
A empresa Mangaba Cultivo de Coco sempre primou pelo cumprimento irrestrito da legislação e do devido processo legal em relação ao projeto Fazenda Ponta dos Castelhanos. Com base nessas diretrizes a empresa buscará fazer os esclarecimentos necessários e demonstrar a regularidade da ocupação da área pela Mangaba, esperando que tudo seja resolvido o mais rápido possível, em observância ao direito de todos. Vamos aguardar o trâmite legal, fazendo todos os esclarecimentos necessários em audiências públicas, bem como aos órgãos fiscalizadores, às comunidades e aos poderes institucionais do governo federal, estadual e do município de Cairu.
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