sexta-feira, 1 de setembro de 2023

UMA LUTA DESIGUAL

MÃE BERNADETE E BINHO DO QUILOMBO LUTAVAM CONTRA EMPRESA DE FILHO DE EX-GOVERNADOR DA BAHIA ANTES DE SEREM MORTOS

Mãe Bernadete foi assassinada com 22 tiros em agosto, quase seis anos após seu filho também ser executado. Os dois lutavam contra a instalação de um aterro da empresa Naturalle, do filho de Paulo Souto.

André Uzêda

CINCO ANOS, 11 MESES E 28 DIAS separam o assassinato de Mãe Bernadete Pacífico, ialorixá e líder do quilombo Pitanga dos Palmares, da execução do seu filho, Flávio Gabriel Pacífico, mais conhecido como Binho do Quilombo – ambos foram mortos dentro do território onde viviam. Antes, haviam se engajado em uma série de lutas contra especulação imobiliária, grilagem de terra e, sobretudo, para impedir a instalação de um aterro de resíduos de construção civil próximo ao quilombo, localizado em Simões Filho, região metropolitana de Salvador.

Mãe Bernadete, 72 anos, estava em casa assistindo televisão com seus três netos. Era noite do dia 17 de agosto deste ano, uma quinta-feira. Dois homens chegaram em uma moto, trancaram os netos em um quarto e a executaram com 22 tiros, sendo 12 no rosto. Durante toda a ação, permaneceram de capacete para não serem identificados. 

Na manhã do dia 19 de setembro de 2017, uma terça-feira, Binho do Quilombo, 36 anos, estava em seu carro saindo de casa quando foi abordado por homens armados. Eles dispararam 12 tiros contra ele e fugiram. O caso começou a ser investigado pela Polícia Civil da Bahia e, em 2020, foi transferido para a Polícia Federal.

Binho do Quilombo liderava uma luta contra a empresa Naturalle, que em 2016 havia recebido uma licença municipal para ocupar o terreno de 163 hectares e construir o aterro. O proprietário é o empresário Vitor Loureiro Souto – filho de Paulo Souto, do União Brasil, ex-governador da Bahia por dois mandatos: de 1995 a 1998 e 2003 a 2007. Souto foi uma das principais figuras no grupo liderado pelo ex-senador Antonio Carlos Magalhães, que comandou a política do estado por quase 40 anos, até morrer em 2007.   

Dezesseis dias antes de ser executado, Binho participou de um evento na Universidade Federal da Bahia e denunciou os problemas da instalação do aterro próximo ao território quilombola. O evento foi organizado com o intuito de somar forças para embargar a obra.

“Vou chamar de lixão porque eles não tiveram a ética de explicar o que era aterro para as comunidades, mas tiveram a soberania e a esperteza de ir nas comunidades tentar jogar um contra o outro e dizer: ‘olha, vai ter 100 empregos’, porque estamos vulneráveis a empregos. Mas eu não quero vender meu aipim fedendo a lixo, não. Perto de um lixão, não. Eu não quero vender meu artesanato próximo a um lixão”, disse na ocasião, como é possível ver em vídeo gravado à época.

“Não tenho nada contra a Naturalle, contra a tal empresa, apenas o comportamento, que se vê que é um comportamento que não enxerga ao povo que está ao seu redor. Ela errou nisso aí e eu tenho esse consentimento, entendeu?”, completou o líder quilombola.




Binho do Quilombo em evento na Universidade Federal da Bahia, 16 dias antes de ser assassinado.

Em 2016, Binho foi candidato a vereador em Simões Filho, pelo PSD. Fez uma campanha modesta – recebendo uma única doação de R$ 77,59 – e até conquistou um resultado razoável: 451 votos. O vereador eleito com menos votos na cidade obteve 745. A sua plataforma política foi baseada na defesa do território para as populações tradicionais e na denúncia da instalação do aterro de inertess na área.

Os moradores que integram o Vale do Itamboatá, onde fica o quilombo Pitanga dos Palmares e outras comunidades tradicionais da região, criaram o movimento ‘Nossas Águas, Nossa Terra, Nossa Gente’ para impedir a instalação do empreendimento. Eles ingressaram em março de 2017 com uma representação no Ministério Público Estadual e Federal – que, conjuntamente, abriram um inquérito civil para apurar o caso. Nós pedimos acesso a esse inquérito, o que não foi concedido nem pelo MP-BA e nem pelo MPF . O movimento também criou um abaixo-assinado virtual para colher assinaturas contra a instalação do aterro.

Quilombo fica dentro de área de proteção ambiental

O Vale do Itamboatá fica em uma Área de Proteção Ambiental, a APA Joanes Ipitanga, que preserva uma área de Mata Atlântica. Em um estudo técnico assinado por um biólogo contratado para medir os impactos ambientais do empreendimento, somente na área do aterro, foram encontradas 30 famílias botânicas de 53 espécies diferentes. Lá, estão localizadas também comunidades tradicionais, ribeirinhas e quilombolas, e também o aquífero São Sebastião – uma importante bacia do Recôncavo Baiano que abastece Salvador, cidades no entorno, além de ser aproveitado no uso industrial. 

O local fica próximo de duas importantes áreas econômicas do estado: o Polo Petroquímico de Camaçari e a Refinaria de Mataripe, que durante o governo Bolsonaro foi vendida para o conglomerado árabe Mubadala. É também cobiçado pela especulação imobiliária para construção de condomínios que possam abrigar trabalhadores da indústria. 

A Naturalle teve um interesse estratégico no aterro de inertes. O projeto previu ainda uma área destinada para descarte de resíduos domésticos e hospitalares para atender as cidades de Catu, Camaçari, Mata de São João, Pojuca e Simões Filho. Ao todo, seriam descartados 482 toneladas de resíduos domésticos por dia e sete toneladas de resíduos hospitalares. O lucro estimado do aterro é de R$ 20 milhões por ano.

Em abril de 2018, após pressão do movimento ‘Nossas Águas, Nossa Terra, Nossa Gente’ e pela comoção com a morte de Binho do Quilombo, o Inema – órgão ambiental da Bahia – chegou a negar a licença para instalação do aterro. A empresa entrou com pedido de reconsideração e obteve, em 2019, a licença ambiental. Em dezembro de 2020, veio a autorização, garantindo a instalação do empreendimento. 

O movimento social entrou com um mandado de segurança para impedir a obra – que, por enquanto, segue funcionando.

Procurada, a Naturalle disse que se solidariza com “os familiares e amigos de Flávio Gabriel e Dona Bernadete” e que nutre “a esperança de que as autoridades policiais cumpram o seu papel e desvende esses assassinatos”. A empresa também informou que não é mais proprietária do aterro e que quem agora administra o espaço é a Recycle Waste Energy, segundo eles uma empresa “especializada em aterros sanitários”. Apesar disso, o site da Naturalle informa que a empresa “possui” um aterro de inertes em Simões Filho.

Binho do Quilombo em audiência pública se posicionou abertamente contra o aterro da empresa Naturalle. Foto: Movimento ‘Nossas Águas, Nossa Terra, Nossa Gente’

Mãe Bernadete também lutava contra o aterro

Depois da morte de Binho, Mãe Bernadete passou a militar publicamente para tentar descobrir quem matou seu filho e assumiu a bandeira contra a implantação do aterro. Em um vídeo gravado durante uma audiência no Ministério Público Federal, em junho do ano passado, ela diz está “enfrentando ameaças dia e noite” e que seu filho morreu lutando contra “aquele maldito lixão da Naturalle”. 

No vídeo, ela ainda cobra o MPF pela investigação da Polícia Federal sobre o assassinato de Binho do Quilombo. “O assassinato do meu filho foi federalizado e não temos resposta. É um absurdo isso, gente. Mas não pense que estamos parados não, viu?… É uma grande vergonha. Meu filho lutou pelo povo dele. Morreu lutando. Foi no dia que ele tava indo para resolver um problema da Naturalle. Ele morreu lutando. E nós não temos resposta”, disse. 

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