sábado, 1 de julho de 2017

O AMIGÃO DO NORBERTO

Dos Santos em Angola e o ocaso da sucessão dinástica na África

Presidente anuncia retirada, uma inovação na reprodução das elites africanas em países autoritários

O presidente de Angola, Jose Eduardo Dos Santos, em 2014.


Depois de três décadas no poder em Angola, o presidente José Eduardo dos Santos acaba de anunciar a sua retirada. Uma decisão inusitada, pois rompe com uma tradição comum a muitos chefes de Estado africanos da sua geração: segurar o poder e ao mesmo tempo tentar emplacar uma sucessão dinástica.

Está claro que o fim do superciclo de desenvolvimento alimentado pelo petróleo colocou em xeque o projeto de poder de Dos Santos

Foi assim com o gabonês Omar Bongo, figura tutelar da política africana na era pós-colonial, que morreu na presidência em 2009. Ele foi sucedido pelo seu filho, Ali Bongo. Está sendo assim no Zimbabwe, onde Robert Mugabe procura deixar o país nas mãos da sua mulher, Grace Mugabe. Na Guiné Equatorial, a pequena tirania familiar chefiada por Teodoro Obiang indicará o filho, Teodorin, figura exuberante mais conhecida pelo seu gosto por festas em Miami, Paris e Salvador do que pelas suas capacidades políticas.
Porém, os últimos anos mostraram que a sucessão dinástica está cada vez mais difícil de ser posta em prática. No Senegal, a tentativa de Abdulaye Wade de transmitir o poder ao seu filho Karim saiu pela culatra. Karim foi detido sob acusações de corrupção e, depois de algum tempo na cadeia, fugiu para o Qatar em junho passado.
A morte traumatizante do líbio Muamar al Kadafi, em 2011, linchado pelas massas, e a humilhação sofrida pela sua família, que teve a sua vida de luxo devassada, foi um sinal vermelho para os autocratas africanos.
Com a ajuda de marqueteiros brasileiros e consultores internacionais, Dos Santos construiu uma sofisticada fachada democrática
Esse pano de fundo parece estar por trás da decisão de Dos Santos. Até pouco tempo atrás, ele era um líder incontestável e a sucessão dinástica parecia inevitável. Graças ao petróleo, que permitiu ao país crescer a um nível chinês desde o final da guerra civil em 2002, Dos Santos ergueu um Estado hegemônico e avassalador. As empreiteiras chinesas desbravaram zonas rurais, desenrolando quilômetros de estradas e dando novo lustre a cidades decrépitas com novos prédios colossais. Empresas como a Odebrecht, verdadeiro ministério informal das obras públicas em Angola, entraram numa diversidade de setores, da recolha do lixo à petroquímica, passando pela extração de diamantes e a gestão de cadeias de supermercado. Através da aliança com o setor privado, Dos Santos conseguiu ampliar e diversificar os serviços de um Estado até lá inexistente.
Com a ajuda de marqueteiros brasileiros e consultores internacionais, Dos Santos construiu uma sofisticada fachada democrática. Através de muita propaganda, processos eleitorais tão suspeitos quanto triunfais, e cooptação de regimes aliados, entre eles Brasil e Portugal, Dos Santos conseguiu a proeza de se tornar um líder aclamado no plano internacional e nacional.
Por trás da fachada, a máquina repressiva, armada no período marxista-leninista, impedia qualquer tentativa de contestação por parte da sociedade civil. Em 2012, a ascensão de Angola, que passou de pior país para se nascer no mundo em 2002 (classificação da UNICEF) a novo Eldorado, parecia indicar uma transformação irreversível.
Tudo mudou com a queda brutal e inesperada do preço do petróleo. O conto de fadas estava intrinsecamente ligado ao superciclo de commodities _mais de 80% do PIB angolano provém da renda petrolífera. A política monetária escapou do controle e, com o dólar nas alturas, o Governo foi incapaz de manter o ritmo das importações, indispensáveis para o funcionamento de um país que, além de petróleo, só produz cerveja e poucas outras coisas. De um dia para o outro, os novos ricos angolanos trocaram o estilo de vida de magnata do Dubai pelo estilo de funcionário público venezuelano.
Só este ano, 17 ativistas foram condenados à prisão sob a acusação fantasiosa de conspirarem contra o regime
A velocidade com que as condições se degradaram provocou uma reação inédita da sociedade civil, obrigando o Estado a regressar aos seus reflexos autoritários. Só este ano, 17 ativistas foram condenados à prisão sob a acusação fantasiosa de conspirarem contra o regime, e centenas de seguidores da seita A Luz do Mundo foram massacrados pela polícia no Huambo, região centro de Angola.
Está claro que o fim do superciclo de desenvolvimento alimentado pelo petróleo colocou em xeque o projeto de poder de Dos Santos. O regime angolano está condenado a reinventar-se. E não poderá contar com a ajuda da família que monopolizou o poder nas ultimas três décadas.
A saída prematura permitirá a Dos Santos se apresentar como um democrata que respeitou as regras do jogo institucional, e não como um autocrata que comandou o país durante 37 anos. Esse simbolismo garantirá que o seu legado não seja violentamente contestado se o pais se deparar com uma situação explosiva num futuro próximo.
Tal cenário aumenta as chances da família Dos Santos de sobreviver sem o controle do aparelho estatal. À imagem dos oligarcas russos da era Boris Yeltsin, os oligarcas angolanos começaram a separar as suas fortunas pessoais do destino do regime que os permitiu acumular a riqueza.
Nos últimos anos, Isabel dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, investiu fortemente em Portugal, adquirindo posições estratégicas em empresas de petróleo, telecomunicações e turismo, entre muitos outros setores. A princesa Isabel, considerada a mulher mais poderosa da África pela Forbes, é a face mais visível de um movimento que envolve toda a elite angolana que enriqueceu fabulosamente no Governo Dos Santos. Em meados deste ano, Isabel Dos Santos assumiu a presidência da petroleira Sonangol de modo a assegurar a presença da família dentro da empresa mais importante do país durante a transição política.
Ao longo do próximo ano, a retirada de Dos Santos será apresentada como um importante passo na construção da democracia em Angola. O seu sucessor designado, João Lourenço, parece reunir todas as condições necessárias: tem bom trânsito entre os militares, a máquina partidária e os parceiros internacionais - a sua mulher, Ana Dias Lourenço, é diretora do Banco Mundial. A sua eleição para presidente no segundo semestre do próximo ano é um dado adquirido.
Se tudo sair como planejado, o modo como Dos Santos decidiu se afastar do poder deverá ser interpretado como uma inovação na reprodução das elites africanas em países autoritários. As exigências renovadas da sociedade civil obrigaram essas elites a buscar formas de sobreviver sem o controle total da máquina pública.
Ao invés de lutar com todos os meios pelo controle de um Estado confrontado a uma crise sistêmica, e acabar como a família Mugabe, ostracizada pelo mundo ocidental, a família Dos Santos preferiu assegurar a sua perenidade através da privatização dos seus ganhos. Hoje, no Reino Unido, ninguém questiona muito a origem dos fundos dos oligarcas russos que ajudam a bancar universidades, galerias de arte, e clubes de futebol. São geralmente considerados como respeitáveis filantropos.
A família Dos Santos vai entregar um Estado com uma infraestrutura reabilitada, uma identidade nacional consolidada e um monopólio da violência que torna improvável um regresso à luta armada. Quanto ao futuro do país, ela o observará na tranquilidade das suas suítes particulares no Ritz de Lisboa.
Mathias Alencastro, 32, estudou Angola durante o seu mestrado, na Sorbonne, e o seu doutorado, na Universidade de Oxford.

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