Elfi Kürten Fenske (pesquisadora, editora e produtora) - Ano XI, 2021.
João Guimarães Rosa
entrevistado por Arnaldo Saraiva
Eis o homem. O homem que em menos de vinte anos, com a sua prosa, o seu estilo, a sua literatura - sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cfr. alguns prêmios Nobel). conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo, não?
Repara no corpo: mau grado as ligeiras ameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, que da língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo, aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão do Itamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentam iludir a sua deles mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar o primeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, não precisa de ter pressa nem precisa de pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.
Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Itabira de Drummond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de contar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, já ele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses...
- Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Hamburgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra.
Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?
- Não. até porque eu ainda não era "escritor" (Sagarana, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contactar com a gente do povo, entre a qual fiz algumas amizades. Gosto muito do português, sobretudo da sua integridade afectiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Guimarães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma "ilha" transmontana.
Mas não chegou a conhecer Aquilino?
- Conheci Aquilino, mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi alguns livros dele, o empregado perguntou-me se eu queria conhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.
Não sabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os "notáveis escritores e poetas" que estavam a "encostar a pena contra a lava" que ia no Brasil "sepultando prosódia e morfologia da língua-mater"? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal...
- Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem (Mais tarde veio a esclarecer-me que se tratava de Brasil-Cultural nº 1. Dez. 1947, em que vem uma pequena nota sobre Sagarana assinada por A. R. A., certamente Antonio Ramos de Almeida). Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira. (Mais tarde veio a esclarecer-me que se tratava de um artigo da revsita Ocidente nº 175, novembro de 1952 - da autoria de João de Castro Osório).
Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns "pontos de contacto nada desprezáveis" entre a sua obra e a de Aquilino.
- Eu gosto de Aquilino, sobretudo da Aventura maravilhosa, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, como infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, Sagarana, foi escrito em 1937.
Um garçom do Itamarati entra com um copo de água (Não tomo café), e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses? (Eu já uma vez lhe javia feito esta pergunta, e ele mostrara-se surpreendido por ser tão "popular" em Portugal, e, sobretudo, por ser "entendido" pelos portugueses. Agora, porém, é ele proprio quem justifica esse "entendimento"):
- Em relação a mim, houve por aqui muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Portugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação directa com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso é que ainda hoje tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas mesmo que eu desejaria fazer era editar uma antologia da alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa minha, uma palavra que uso no Grande Sertão: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a História Trágico-Marítima. Já vê, por aqui, que as minhas "raízes" estão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não será grande a distância "linguística" que me separa dos portugueses.
Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Guimarães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, colectiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado nenhum livro de cavalaria, nem nenhuma novela bucólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no Grande Sertão Veredas...
- Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Bernardim, e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Camilo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler Os Maias; este ano já reli quase todo O Crime do Padre Amaro e parte da Ilustre Casa de Ramires). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal...
... que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como "enveredou" - e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso - pelo campo da "invenção linguística?
Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação lingüística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como "gramado", "aloprar", pertencem à gíria brasileira, ou como "malga", "azinhaga", "azenha" só correm em Portugal - será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um acto religioso. E prova está em que tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido - até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu traduor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas auto-análises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo: gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Corpo de Baile gosto mais do que do original. Ou: Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita. Ou: Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde. Ou: No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos O Pulso, onde freqüentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma excepção...
Evidentemente que a consideração foi muito menos para comigo do que para com o povo de onde venho: mas do que eu, é este, portanto, que deve o agradecimento a Guimarães Rosa. E de desejar seria que o agradecimento fosse o melhor: a atenção ao exemplo, se não à lição. Porque bem precisados andamos de coragem, sensibilidade, orgininalidade, seriedade para que entre nós, e não só, de novo se cumpram as palavras de António Ferreira:
"Floresça, fale, cante, oiça e viva
A portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor."
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Referência de pesquisa
SARAIVA, Arnaldo. Conversas com escritores brasileiros. Porto: ECL, 2000.
(GUIMARÃES Rosa - entrevistado por Arnaldo Saraiva. para o 'Diário de Notícias', de Portugal em 24/11/1966).
Obs.: essa não é a última entrevista concedida pelo autor.
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