ATENÇÃO!
UMA VEZ NÃO É COSTUME.
Aconteceu neste último mês de julho,
em Salvador. Tinha marcado consulta para as 8:20 com um médico anestesista.
Enão é que fui recebido pelo médico em sua sala às 8:20, “hora de relógio”?!
Não me controlei. Comovido, agradeci, confessando que era a primeira vez, em 49
anos, em Salvador, que um médico não me deixava esperar entre meia hora e hora
e meia.Sorriu, revelando a informação de uma paciente: no Canadá também o
horário agendado é escrupulosamente respeitado. Em Portugal, na França,
Inglaterra, Alemanha, Bélgica etc., raramente um paciente espera mais de cinco
minutos. Em contrapartida, quem chegou atrasado terá que remarcar a consulta.
Em meio século perdi semanas de minha
vida nas salas de espera de hospitais hostis e clínicas cínicas. Esperando a
cardiologista, li Autoimperialismode Benjamin Moser por inteiro (125 páginas).
Me atendeu com o celular colado ao ouvido. Na segunda consulta, consegui ler 48
páginas de The Orientalist de Tom Reiss: ela chegou atrasada 40 minutos... e
com o celular grudado no cabelo.
Em 2013, o negócio sendo mais
complicado, dois urologistas me permitiram ler os dois livros de Juan
RulfoeEstas estórias de Guimarães Rosa (231 difíceis páginas). Urologista nunca
diz bom dia e só olha seu lado coroa. O lado cara, sua cara, nunca. Durante as
longas esperas de radioterapia, mergulhei na Comédie Humaine de Honoré de
Balzac. Li de cabo a rabo. Ultimamente, embarcando em novas torturantes
esperas, TV sempre ligada nos programas mais cretinos do hemisfério sul, tentei
navegar através das 1358 tediosas páginas de 2666 do chileno Roberto Bolaño.
Mas, depois da página 605–sem ilustrações–cheguei à conclusão de quea ficção
raramente me empolga. Prefiro história e biografias. Ilustrações sempre
bem-vindas. Outra conclusão: a dos professores, hoje com aura em declínio
devido à sensação de conhecimento escrevendo palavras-chave nos buscadores
de“sites”, bloqueando-sede modo automático o saber dos mestres. Mentiras
repetidas formando crenças; desprezo por valores morais ; distúrbios de
comportamento e dores psíquicas; idolatria das massas por “influencers” de
caráter torpe; adesão a ideologias totalitárias e preconceitos rançosos de
etnia, classe social, gênero e orientação sexual: são muitos os males aescapar
ao abrir o jarro a curiosa Pandora contemporânea, em movimento online para
offline de alta periculosidade. A proposta em gestação, pelo governo federal,
une as redes pública e particular, recuperando-se não apenas o poder da caneta,
do papel, da borracha e do livro impresso, mas principalmente a batuta relação
médico/paciente é uma relação de força, de carcereiro a encarcerado. O doutor,
poderoso, atendendo com folga do atraso, se coloca declaradamente acima do
inferiorizado doente. Fiel retrato de nossa sociedade herdeira da casa grande e
senzala.
Acabo de ler, na página A5 de meu
jornal preferido, uma animadora notícia: “Médico terá que declarar elo com
empresas”. Será que deixarei de assistir, impotente mas inconformado, ao
desfile rotineiro de representantes de produtos farmacêuticos entrando no
consultório, sem mesmo bater à porta, no exato momento em que este seu
escrevinhador ia ser finalmente chamado para sentar frente à frente e confessar
um interminável rosário de dores, mal-estares e incômodos em várias partes do
corpo? Serei a cobaia dos remédios apresentados minutos antes ao preço de uma
lata de caviar iraniano Beluga.
Ah! Quanta saudade de meu
anestesista! Vou ter que inventar outra doença.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde / 28/09/2024
Esses doutores são todos eleitores da direita. Os mesmos que você tentaria eleger se você tivesse um título de eleitor. Na próxima vez você pega uma revista Caras, sempre presente nas salas de espera dos semideuses esculapeanos. Ou então compre um leitor de texto tipo Kindle Paperwhite. Mas os meus eBooks você pode baixar até no seu celular. haha Bom fim de semana, velho amigo.
ResponderExcluir