sábado, 28 de setembro de 2024

MILAGRE NO CONSULTÓRIO!

ATENÇÃO!  

UMA VEZ NÃO É COSTUME.

 


Aconteceu neste último mês de julho, em Salvador. Tinha marcado consulta para as 8:20 com um médico anestesista. Enão é que fui recebido pelo médico em sua sala às 8:20, “hora de relógio”?! Não me controlei. Comovido, agradeci, confessando que era a primeira vez, em 49 anos, em Salvador, que um médico não me deixava esperar entre meia hora e hora e meia.Sorriu, revelando a informação de uma paciente: no Canadá também o horário agendado é escrupulosamente respeitado. Em Portugal, na França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica etc., raramente um paciente espera mais de cinco minutos. Em contrapartida, quem chegou atrasado terá que remarcar a consulta.

Em meio século perdi semanas de minha vida nas salas de espera de hospitais hostis e clínicas cínicas. Esperando a cardiologista, li Autoimperialismode Benjamin Moser por inteiro (125 páginas). Me atendeu com o celular colado ao ouvido. Na segunda consulta, consegui ler 48 páginas de The Orientalist de Tom Reiss: ela chegou atrasada 40 minutos... e com o celular grudado no cabelo.

Em 2013, o negócio sendo mais complicado, dois urologistas me permitiram ler os dois livros de Juan RulfoeEstas estórias de Guimarães Rosa (231 difíceis páginas). Urologista nunca diz bom dia e só olha seu lado coroa. O lado cara, sua cara, nunca. Durante as longas esperas de radioterapia, mergulhei na Comédie Humaine de Honoré de Balzac. Li de cabo a rabo. Ultimamente, embarcando em novas torturantes esperas, TV sempre ligada nos programas mais cretinos do hemisfério sul, tentei navegar através das 1358 tediosas páginas de 2666 do chileno Roberto Bolaño. Mas, depois da página 605–sem ilustrações–cheguei à conclusão de quea ficção raramente me empolga. Prefiro história e biografias. Ilustrações sempre bem-vindas. Outra conclusão: a dos professores, hoje com aura em declínio devido à sensação de conhecimento escrevendo palavras-chave nos buscadores de“sites”, bloqueando-sede modo automático o saber dos mestres. Mentiras repetidas formando crenças; desprezo por valores morais ; distúrbios de comportamento e dores psíquicas; idolatria das massas por “influencers” de caráter torpe; adesão a ideologias totalitárias e preconceitos rançosos de etnia, classe social, gênero e orientação sexual: são muitos os males aescapar ao abrir o jarro a curiosa Pandora contemporânea, em movimento online para offline de alta periculosidade. A proposta em gestação, pelo governo federal, une as redes pública e particular, recuperando-se não apenas o poder da caneta, do papel, da borracha e do livro impresso, mas principalmente a batuta relação médico/paciente é uma relação de força, de carcereiro a encarcerado. O doutor, poderoso, atendendo com folga do atraso, se coloca declaradamente acima do inferiorizado doente. Fiel retrato de nossa sociedade herdeira da casa grande e senzala.

Acabo de ler, na página A5 de meu jornal preferido, uma animadora notícia: “Médico terá que declarar elo com empresas”. Será que deixarei de assistir, impotente mas inconformado, ao desfile rotineiro de representantes de produtos farmacêuticos entrando no consultório, sem mesmo bater à porta, no exato momento em que este seu escrevinhador ia ser finalmente chamado para sentar frente à frente e confessar um interminável rosário de dores, mal-estares e incômodos em várias partes do corpo? Serei a cobaia dos remédios apresentados minutos antes ao preço de uma lata de caviar iraniano Beluga.

Ah! Quanta saudade de meu anestesista! Vou ter que inventar outra doença.

 

Dimitri Ganzelevitch

A Tarde / 28/09/2024

 

Um comentário:

  1. Esses doutores são todos eleitores da direita. Os mesmos que você tentaria eleger se você tivesse um título de eleitor. Na próxima vez você pega uma revista Caras, sempre presente nas salas de espera dos semideuses esculapeanos. Ou então compre um leitor de texto tipo Kindle Paperwhite. Mas os meus eBooks você pode baixar até no seu celular. haha Bom fim de semana, velho amigo.

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