Salvador – Crônica de uma expressividade urbana, entre o antigo e o moderno.
A fotografia aérea de Salvador em 1959 exibe uma cidade enraizada por seus vales ainda com predomínio do verde e áreas cobertas por dunas na região de Itapuã. Infelizmente grande parte do verde e boa parte das dunas não existe mais.
Em 1959 a Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador, tinha ares de uma modernização marcante acentuando pouco a pouco novos marcos ao lado dos antigos conjuntos de casarios e igrejas existentes. Ao mesmo tempo a voraz sede pelo novo, juntamente com o descaso e interesses vigentes, ajudou a desmantelar antigos resquícios arquitetônicos na urbe, repleta de sobrados no centro antigo e cidade baixa, solares imponentes como o Amado Bahia na Ribeira (inaugurado em 1904), e palacetes no Campo Grande, Vitória e Graça, como o Martins Catharino (1912), muitos arruinados e demolidos nas décadas seguintes. Suas ruas, vielas, avenidas, travessas e ladeiras, ganharam décadas depois a companhia de construções com um novo rigor estético, contrastando com o colonial, neoclássico e eclético de suas fachadas. Nesse afã por uma modernidade, na tentativa de acompanhar o progresso da região sudeste, e sanar os atrasos que atormentavam as mentes das elites politicas e econômicas da Bahia, muito foi demolido e grande parte do que foi construído enterrou elementos significativos da memória urbana.
Ao passo que novas avenidas rasgaram os vales, como a Centenário em 1949 no governo Otavio Mangabeira (1947 – 1951), seguindo os planos de Mario Leal Ferreira e o EPUCS, novos ícones arquitetônicos como a Fonte Nova (inaugurada em 1951), Edifício Caramuru (1946) no Comércio – esse ainda com vários casarões das primeiras décadas do XX – e o Hotel da Bahia, projeto do arquiteto baiano Diógenes Rebouças e Paulo Antunes Ribeiro (inaugurado simbolicamente em 1951), surgiam como expressividade de uma Salvador moderna que ainda dialogavam com certo equilíbrio com seu entorno antigo.
Nos anos seguintes com o expressivo crescimento de Salvador novos contornos passam a ser delimitados. O centro, já sufocado, mas ainda referência comercial, política, e claro, religiosa, ícone com suas seculares construções, algumas demolidas, como a Sé em 1933 e a Igreja de São Pedro Velha para construção da Avenida Sete de Setembro em 1913 (Governo J.J. Seabra), e os prédios símbolos do poder como o palácio do governo, Rio Branco, e o palácio da Aclamação, residência do governador na época (até o final da década de 60), ainda eram referências administrativas e políticas, símbolos pulsantes juntamente com os comércios dessa parte da cidade.
Seguindo a ótica de expansão e modernização urbana ao lado de uma política de “modernização conservadora” como lembra o cientista político Paulo Fábio Dantas, Antônio Carlos Magalhães (ACM), na época prefeito de Salvador em 1967, em seguida governador em 1971, iniciou um extenso projeto de abertura de avenidas nos vales, como o Vale do Canela em 1974 e Barris em 1975, dando continuidade a ideia de Leal Ferreira e o EPUCS. A Cidade, ainda concentrada no antigo centro, passa nos anos posteriores a ter novos polos econômicos, residenciais e de lazer. Uma atenção significativa é voltada para a preservação do Centro Histórico, ações marcantes para todo o conjunto de casarios e igrejas, e o sítio é declarado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1985. A Avenida Paralela, tão criticada na época de sua construção (década de 70), iria se tornar uma das principais vias de escoamento para essa “nova” cidade que estava se desenvolvendo juntamente com o Centro Administrativo da Bahia, cravado no meio da mata. Ao lado dessa modernização e expansão populacional, com a mais de 640.000 mil habitantes na década de 60 e mais de 1.000.000 em 70, Salvador da Bahia unia elementos seculares, símbolos de suas tradições e recortes de uma Bahia antiga, decadente em seus palacetes, como lembra Kátia Mattoso em “Bahia uma província do Império”, e “destronada”, segundo Rinaldo César Leite em “A rainha destronada”. Caminhava bailando ao lado de novos traços modernos que aos poucos contornavam os espaços que estavam sendo construídos e outros modificados.
Nesse ritmo de crescimento, assim como em outras grandes cidades do Brasil, a volúpia pelo moderno juntamente com as perspectivas seguidas na época, mostravam sinais do caótico na locomotiva das transformações urbanas de Salvador. Aos poucos as áreas verdes foram sendo progressivamente devastadas, sucumbidas áreas históricas, zonas de dunas, rios e nascentes. Da vastidão verde que cobria boa parte do território soteropolitano em 1959, em 2013 data da segunda imagem, observamos ilhas de vegetação constantemente ameaçada por projetos que levam o nome de Green, Hortos e Parcs, ícones em aço e concreto, “paraísos” ladeados pelo caos urbano, e uma extensão de ocupações das mais variadas cobrindo grande parte do território do miolo em direção aos limites da Cidade. Centenas de palacetes e sobrados, de importante valor arquitetônico, retratos impregnados da história do povo da Bahia e das influências da época em que foram erguidos, dos seus residentes e das mãos que os construiu, foram demolidos e substituídos por prédios que tentaram ressaltar a dita modernidade do imobiliário soteropolitano, cortinas de concreto como no Corredor da Vitória. Das dunas, um sopro de ignorância, levou e continua levando, boa parte dessas areias que já encantaram Caymmi e Vinicius de Moraes. Engolidos, aterrados e poluídos, a maioria dos rios que já cortaram Salvador, alguns já poluídos nas primeiras décadas do XX, como apontou Teodoro Sampaio em uma época em que a cidade tinha em média 250.000 habitantes, hoje são córregos saturados de dejetos e cobertos por vias que em nada faz lembrar as descrições antigas de uma Salvador reconhecida por suas águas e "mil" fontes.
A comparação de uma fotografia aérea de Salvador em 1959, com uma de 2013, e outra em seus 468 anos de fundação, evidencia que temos muito o que aprender, analisar, planejar e tentar solucionar os problemas ainda existentes, buscando um equilíbrio entre crescimento e preservação. Pensar uma Cidade da Bahia com mais sensibilidade ambiental e consciência histórica, levando em consideração seus símbolos, a realidade do seu povo e seu entorno. Essa análise iconográfica evidencia uma miscelânea de ações, com inevitáveis permanências, alterações e perdas, que podem se intensificar se não observarmos a poesia que ainda resta na expressividade dos contornos da velha e moderna Salvador, essa ainda protegida por Todos os Santos.
Rafael Dantas.
*Historiador pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisador voltado ao estudo das transformações urbanas e arquitetônicas na iconografia da Cidade do Salvador no século XX.
Primeira imagem: Integração de várias aerofotos feita pelo Historiador Rubens Antonio. E imagem de satélite do Google.
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