terça-feira, 23 de maio de 2023

O COSTUME DE QUEIMAR VIUVAS

 Como a Índia conseguiu acabar com o costume antigo de queimar viúvas vivas na fogueira


Por Soutik Biswas, BBC


Em dezembro de 1829, o primeiro governador-geral da Índia sob o domínio britânico, Lorde William Bentinck, proibiu o sati — a antiga prática hindu que levava as viúvas a se imolar na pira funerária do marido.

Bentinck, que na época era governador de Bengala, no norte da Índia, buscou a opinião de 49 oficiais superiores do Exército e de cinco juízes, e se convenceu de que havia chegado a hora de "limpar uma mancha horrível sob o regime britânico".

Seu decreto afirmava que o sati era "revoltante para os sentimentos da natureza humana" e chocava muitos hindus, além de ser "ilegal e perverso".


Dizia ainda que as pessoas condenadas por "auxiliar e incentivar" que uma viúva hindu fosse queimada viva, "fosse o sacrifício voluntário da parte dela ou não", seriam acusadas de homicídio culposo.

O decreto dava aos tribunais o poder de impor a pena de morte às pessoas condenadas pelo uso da força ou por ajudarem a queimar viva uma viúva "que tivesse sido inebriada e não pudesse exercer sua livre vontade".


A lei de Bentinck era ainda mais rigorosa do que uma forma mais gradual de erradicar a prática sugerida pelos principais reformistas indianos que faziam campanha contra o sati.


Após a legislação, 300 eminentes hindus, liderados pelo rajá Rammohun Roy, agradeceram a Bentinck por "nos resgatar para sempre do estigma atribuído até então à nossa personalidade como assassinos deliberados de mulheres".

Já os hindus ortodoxos recuaram e apresentaram uma petição a Bentinck. Citando acadêmicos e escrituras, eles questionaram a decisão, afirmando que o sati não era um "ato obrigatório com base na religião".


Mas Bentinck não cedeu. Os signatários da petição foram ao Conselho Privado, que era o tribunal de última instância nas colônias britânicas. E, em 1832, o Conselho manteve a regulamentação, afirmando que o sati era uma "flagrante ofensa contra a sociedade".

Quadro do explorador francês Pierre Sonnerat (1748-1814) retrata o costume do sati na Índia — Foto: SCIENCE & SOCIETY PICTURE LIBRARY / GETTY IMAGES

Quadro do explorador francês Pierre Sonnerat (1748-1814) retrata o costume do sati na Índia — Foto: SCIENCE & SOCIETY PICTURE LIBRARY / GETTY IMAGES

"A combatividade declarada da regulamentação de 1829 talvez tenha sido o único caso, ao longo de 190 anos de regime colonial britânico, em que uma legislação social foi outorgada sem oferecer nenhuma concessão aos sentimentos ortodoxos", afirma Manoj Mitta, autor do livro Caste Pride ("Orgulho da casta", em tradução livre), no qual analisa a história legal das castas na Índia.


Mitta também escreve que "muito antes de Gandhi notoriamente impor uma pressão moral ao império britânico, Bentinck exerceu a mesma força contra os preconceitos de casta e gênero intrínsecos ao sati".


"Ao criminalizar este costume nativo que tanto havia corroído o colonizado, o colonizador ganhou um ponto moral", afirma o autor.


Mas a lei de Bentinck seria atenuada em 1837 por outro britânico, Thomas Macaulay, autor do Código Penal Indiano. No texto de Macaulay, se alguém pudesse provar de ter acendido a pira por instigação da viúva, poderia ser absolvido.


Em uma anotação, ele afirmou que as mulheres que se queimam vivas poderiam ser motivadas por "forte senso de dever religioso, às vezes por um forte senso de honra".


Mitta descobriu que a "posição compreensiva" de Macaulay sobre o sati ecoava o pensamento dos governantes britânicos décadas depois da proibição.


Ele escreve que a anotação dele reapareceu após a revolta de 1857, quando soldados hindus e muçulmanos que serviam na Companhia Britânica das Índias Ocidentais — também conhecidos como sipais — se rebelaram contra a companhia. Eles temiam que os cartuchos das armas pudessem ter sido engraxados com gordura animal proibida por suas religiões.


MAIS:


https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/05/22/como-a-india-conseguiu-acabar-com-o-costume-antigo-de-queimar-viuvas-vivas-na-fogueira.ghtml


Nenhum comentário:

Postar um comentário