Mudanças de nomes de avenidas em Salvador trazem discussão sobre memória da cidade
Projetos de alteração de nomes de ruas põem em ladosàs 08:46
Transitar por Salvador é estar em uma avenida em homenagem à freira símbolo da luta pela independência (Av. Joana Angélica), mas também a poucos metros da rua que faz referência ao primeiro governante do regime militar no Brasil (Av. Castelo Branco). É dar um pulinho da Calçada à Barra e passar tanto pela via que recebe o nome de um portugês que enriqueceu com o tráfico de escravos (R. Fernandes Vieira) quanto pela rua daquela que assinou a abolição da escravatura no país (R. Princesa Isabel).
É evidente que escravocratas e ditadores não merecem homenagens como essas, mas, afinal, quando é válido modificar o nome de uma rua ou avenida? Como aconteceu recentemente com a via no bairro da Graça, que foi dormir Rua Flórida e acordou no outro dia Rua Luiz Martins Catharino Gordilho. Ou como a Alameda das Catabas que pode, sem mais nem menos, passar a se chamar Alameda Berverly Hills. Esse tipo de intervenção é uma espécie de reparo histórico ou uma manipulação na memória da população sobre a cidade?
Por enquanto, o que se tem percebido é que projetos como esses passaram a se acumular na Câmara Municipal de Salvador. Um levantamento feito pelo Jornal Metropole apontou que só na atual legislatura, que ainda tem mais de um ano pela frente, 12 propostas para alterar nomes de ruas e avenidas foram apresentadas. O número já é o dobro do registrado nos quatro anos do ciclo legislativo passado.
Quem batiza é o povo
Os moradores da antiga Rua Flórida, por exemplo, não gostaram nada da mudança. Eles alegam que o nome anterior já estava consagrado há mais de 30 anos e que, ainda por cima, uma outra Rua Luiz Martins Catharino Gordilho, localizada no bairro de Cajazeiras, estaria causando confusão na entrega de mercadorias e correspondências.
A mudança do nome da Rua Flórida é resultado de um projeto de lei de autoria do vereador Alberto Braga (Republicanos), para homenagear Luiz Martins Catharino Gordilho, um empresário de uma família rica e tradicional de Salvador, considerado figura crucial para a história do Esporte Clube Vitória.
Mas a reclamação da população nada tem a ver com ele. O que a comunidade questiona é a ausência de diálogo. Afinal, por mais que o projeto tenha tramitado por meses na Câmara, os moradores serão os principais afetados com a mudança e, portanto, precisam ser consultados. Para tentar reverter a situação, eles lançaram um abaixo-assinado que já conta com mais de 1,7 mil assinaturas na internet.
Professor de história, Roberto Pessoa vê esse tipo de alteração, sem a devida comunicação, como uma assassinato à história e uma ofensa ao morador. “O que deve ser feito é a consulta popular, pegar os moradores da rua, mandar um questionário a cada morador, perguntar se concorda ou não. Porque não pode ser trocado de uma hora pra outra. Isso é assassinato da história, é ofender o morador. Só não é pior porque é o povo que determina e não deixa trocar. Tem muitos nomes que mudaram e até hoje continuam sendo chamados como antes”, afirmou Roberto Pessoa.
Foto: Filipe Luiz/Metropress
Sai o paulista e entra o baiano
Nem sempre a comunidade vai ser contra. A via onde estão as Meninas do Brasil (Gordinhas de Ondina) e um dos campus da Universidade Federal da Bahia (Ufba), por exemplo, depois de anos, deixou de se chamar Avenida Adhemar de Barros para receber o nome de Avenida Milton Santos. Isso a custa de muita mobilização popular. Intelectuais, moradores e admiradores do geógrafo baiano chegaram a lançar campanhas nas redes sociais e um abaixo-assinado com mais de seis mil assinaturas em prol da troca. A alteração, inclusive, só deu certo após a movimentação ganhar corpo. Em 2012, já existia uma proposta do então vereador Gilmar Santiago (PT), mas só dez anos depois a mudança foi oficializada com a sanção de um projeto semelhante, de autoria do vereador Augusto Vasconcelos (PCdoB).
A modificação fazia sentido, afinal Milton Santos é um dos intelectuais brasileiros mais renomados internacionalmente e ‘cria’ da Ufba. Um homem negro, de Brotas de Macaúbas, na Bahia, que chegou a vencer o Prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel de Geografia. Já Adhemar de Barros, 20 anos mais velho que Milton, foi governador de São Paulo e um dos conspiradores do movimento que culminou no Golpe de 64. Algumas versões dão conta de que o nome dele foi dado à avenida na década de 1970, no período da chegada da Bandeirantes na Bahia. A intenção, por trás disso, era bajular o então dono da emissora, João Jorge Saad, homenageando Adhemar, que era seu sogro e um dos primeiros sócios da rádio. Mas a verdade é que nem um nem o outro tinha ligação alguma com o estado. A não ser pela expressão “rouba, mas faz”, que foi criada para atacar o ex-governador paulista e tanto se popularizou aqui.
Foto: Filipe Luiz/Metropress
Troca o ditador pelo povo
A proposta de retirar o nome de Adhemar de Barros ganhou força também de um movimento que vem se fortalecendo no país para rebatizar os logradouros que recebem o nome de ditadores e pessoas ligadas à escravidão ou ao período do regime militar. Em São Paulo, por exemplo, a própria prefeitura chegou a lançar, em 2014, o projeto Ruas de Memória, para rebatizar 22 vias na cidade que levavam o nome de personalidades e datas relacionadas à ditadura. Em Salvador, o projeto do vereador Marcelo Maia (PMN) tenta seguir esse caminho. A proposta, ainda em tramitação na Câmara, sugere que a Avenida Castelo Branco passe a se chamar Avenida Clementino Rodrigues. Enquanto um foi articulador do Golpe de 64 e o primeiro governante da ditadura militar, o outro é Riachão, um dos ícones do samba da Bahia.
Por outro lado, há também propostas que, no final, acabam só causando barulho mesmo. É o caso da Alameda das Catabas, que nos últimos dias ficou conhecida como Alameda Beverly Hills. A fama repentina foi motivada por um projeto de lei do vereador Téo Sena (PSDB), que sugeriu mudar o nome da rua e homenagear a cidade situada na Califórnia, nos Estados Unidos. Segundo o parlamentar, a proposta é do presidente da associação de moradores, que alegava ser a nomenclatura compatível com a elegância da alameda.
“A ideia dele é porque o nome Catabas é o mesmo de vários prédios, em vários locais da área, e sempre tem confusão no Uber, no ônibus, no táxi. Uma série de dificuldades. Além de tudo, nesta rua, estão sendo construídos seis prédios. Então ele, como presidente da associação, deu a sugestão de fazer isso. Eu não imaginei que fosse dar tanto problema. Ele queria dar um nome sofisticado. Infelizmente, não agradou”, argumentou Senna ao Metro1. Os moradores podem até ter achado graça da situação, mas não concordaram. Eles dizem que querem mesmo é que a rua receba mais cuidado do poder público.
Para construir memória
Não que mudar o nome de uma rua seja uma função irrelevante ou que não mostre cuidado por parte dos vereadores. Claro, existem projetos mais importantes, mas os nomes das ruas também afetam o dia a dia da população. A questão, no entanto, é: por que modificar algo já consolidado na história de uma capital como Salvador se existem tantos outros espaços ainda sem nomenclatura na cidade? Só de 2017 para cá, foram 78 projetos para nomear e tornar oficial logradouros ainda não reconhecidos na capital baiana.
Entre as 12 propostas de mudanças de nomenclatura, algo em comum chama atenção: todas eram vias localizadas em bairros centrais, com exceção de apenas uma, a Rua Baixa do Santo Antônio, em São Gonçalo do Retiro. A resposta é clara: a nomeação das principais ruas da cidade atua como construção de memória, ferramenta de poder e de fortalecimento de ideologia. Um trajeto simples mostra isso: basta passar pela Av. Professor Magalhães Neto, pegar a Av. Antônio Carlos Magalhães e seguir para a Av. Luís Eduardo Magalhães. Será que se as ruas de Salvador não fossem tomadas pelo sobrenome os Magalhães permaneceriam com tanta força no imaginário das próximas gerações?
A própria Avenida Luís Viana Filho é, para alguns, mais um exemplo. O apelido Paralela, claro, tem relação com a disposição das vias, mas, há quem diga que o senador Antonio Carlos Magalhães chegou a dar uma forcinha para que ele pegasse entre os soteropolitanos. O nome oficial da avenida era evitado na TV Bahia, emissora de propriedade do senador. A ideia era tentar apagar o nome de Luís Viana, que na época havia se afastado de ACM.
Não foi à toa também a polêmica envolvendo a placa de Marielle Franco no Rio de Janeiro. A estrutura instalada em frente à Câmara Municipal da capital carioca, em homenagem à vereadora assassinada em 2018, foi retirada e quebrada por parlamentares bolsonaristas em uma disputa de narrativa e ideologias.
COMENTÁRIO DO BLOGUEIRO. - O bairro de Santo Antônio, no centro histórico de Salvador que o diga.
Por exemplo: Quem mora na Rua Direita de Santo Antônio, 177. Mas se alguém mandar uma carta para a Rua Joaquim Távora, 56 talvez também chegará.
Mas o número de cartas, avisos e encomendas que se perdem com esta confusão, só a prefeitura para continuar ignorando...
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