Baixa de Lisboa: liquidação total
É a grande montra de Portugal para os milhões de turistas que cá chegam,
mas tem 121 lojas fechadas. Os prédios devolutos transformam-se
em hotéis e o comércio resume-se a restaurantes e venda de lembranças.
Radiografia do Expresso às ruas da Baixa Pombalina,
candidata a Património da Humanidade
Em 2023, numa semana de abril, a Baixa de Lisboa perdeu 261 anos de história. Mais duas lojas centenárias encerraram. No total de 380 lojas, quase um terço tem as portas fechadas. A zona da cidade que chegou a ser o grande centro comercial do país entrou em declínio no virar do milénio, encontrou solução no turismo e especializou-se nele. O novo comércio mascara-se de antigo, mas a diversidade é só uma aparência. Hoje, Lisboa poderia ser uma cidade qualquer
13 de julho de 2023
José Ribeiro ainda
guarda o barómetro-padrão que o avô usava em 1951, quando a Óptica Jomil abriu.
“Tecnologia alemã, dupla caixa de vácuo, mantive-o sempre afinado”. A pressão
atmosférica é uma variável importante para os optometristas. Hoje, consulta-se
no telemóvel. A vitrine onde está guardado é a original, a mesma onde os óculos
que ali se vendem estão trancados para que ninguém os experimente sem estar
devidamente acompanhado.
Esta loja de óculos,
na Rua Áurea, na Baixa de Lisboa, funciona à antiga e o serviço é
personalizado. “Quantas ainda trabalham assim hoje em dia?”, questiona José. Ao
lado do barómetro-padrão estão caixas com água de rosas para lavar os olhos.
Muitas das peças que ali estão já não se usam, mas, através delas, os clientes
podem saber como se fazia antigamente. “Isto é que vale a pena preservar.” O
empresário refere-se à identidade que desaparece da cidade de Lisboa sempre que
estabelecimentos como o dele encerram para darem lugar a novos hotéis ou
restaurantes.
Numa semana de abril,
a Baixa de Lisboa perdeu 261 anos de história: a Casa Senna e a Sapataria e
Chapelaria Lord, fundadas em 1834 e 1951, respetivamente, fecharam. A primeira
chegou a fornecer os jogos da Casa Real, nos últimos tempos da monarquia
portuguesa, assim como as primeiras chuteiras do Sporting.
Fotografia da Casa Senna anterior a
1920. Por cima da porta principal podia ler-se: "Bilhares e seus
acessórios. Jogos Diversos"
O encerramento da
loja é um desgosto que carrega José Mendes Pinto, sócio desde 1982. A relação
com o antigo proprietário do prédio, onde a Casa Senna se dividia em duas
lojas, era boa. Os problemas vieram depois. “Foi o neto que iniciou o
litígio. Primeiro, tirou-nos o escritório que tínhamos no andar de cima.
Depois, em 2018, meteu uma ação de despejo para as lojas. Perdeu nas três
instâncias porque já estávamos em vias de entrar para o programa Lojas com
História”, diz o lojista.
A Câmara Municipal de
Lisboa chegou a pôr o carimbo na loja mais antiga, de 1834, mas a segunda, que
era arrendada desde 1996, não reuniu critérios para ser distinguida e acabou
por ser encerrada. “Não nos conseguiu despejar de uma maneira, despejou de
outra”, lamenta Mendes Pinto, que agora opera a loja a partir de Massamá, a
cerca de 20 km do local onde foi fundada a Casa Senna.
O programa Lojas com
História, criado em 2015 pela autarquia de Lisboa, não conseguiu evitar o
desfecho. Este programa é a única política pública em vigor que tenta travar a
homogeneização do comércio da cidade através do congelamento das rendas dos
estabelecimentos distinguidos e da proteção dos contratos. "A
Baixa que temos hoje não é a que tínhamos há 30 anos", refere Diogo
Moura, vereador da Cultura.
Na ponta oposta desta
discussão estão os proprietários das lojas e os senhorios fazem-se ouvir contra
a proteção das rendas através da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP):
o presidente Luís Menezes Leitão diz que é uma “medida persecutória” e a
diretora de comunicação, Diana Ralha, conta o outro lado da história do fecho
da Casa Senna. Em representação do dono daquele prédio, a ALP defendeu em
tribunal que, além da antiguidade, “a Casa Senna não tinha nem mobiliário, nem
características, não tinha rigorosamente nada que a caracterizasse como loja
histórica” e que congelar a renda “seria uma violação de todos os princípios da
concorrência”. “Qual é o sentido que faz haver lojas a pagar €20 de
renda no centro de Lisboa?”, questiona Menezes Leitão.
Para a Câmara, a
“salvaguarda do comércio tradicional” é parte fundamental da candidatura da
Baixa Pombalina a Património Imaterial da Humanidade UNESCO, que se consumou em
janeiro deste ano. O documento destaca que "a feição predominantemente
comercial e de serviços da Baixa está, no essencial, conservada", mas
reconhece que há um enfraquecimento das tradições, "característico de
todos os centros históricos europeus".
As lojas centenárias
desaparecem sem deixar rasto, para trás ficam os cadeados à porta e as grades
enferrujadas. Pelos vidros das montras veem-se caixotes e amontoados de cartas
por abrir. A Baixa deixou de ser o grande centro comercial do país, entrou em
declínio entre a década de 90 do século passado e os anos 2000; encontrou o
turismo na primeira década do novo milénio e especializou-se até fazer
desaparecer os estabelecimentos que, até aqui, tinham resistido aos ventos de
mudança. As grandes marcas internacionais, a restauração e os souvenirs
ocupam-lhes o lugar.
No início de 2023, e
ao longo de várias semanas, o Expresso analisou o estado de centenas de lojas
nas principais ruas entre o Terreiro do Paço e a Praça do Rossio. Entre no mapa
e navegue pela Baixa:
Viagem
a uma Lisboa fechada
O
Expresso, com base num levantamento iniciado pela Associação de Dinamização da
Baixa Pombalina (ADBP), analisou o estado de 380 lojas, marcadas com pontos
amarelos no mapa (), nas quatro principais ruas da Baixa de Lisboa — Ouro,
Augusta, Prata e Fanqueiros.
UM TERÇO DAS LOJAS ESTÃO FECHADAS
121
lojas (32%) das quatro principais ruas da Baixa estão encerradas. No
levantamento, feito em março de 2023, contámos 11 lojas fechadas na rua
Augusta; 31, na rua do Ouro; 38, na rua da Prata e 41 na rua dos Fanqueiros —
assinalados no mapa com círculos escuros ().
Fanqueiros
é a rua mais afetada
A
rua dos Fanqueiros é a que tem mais lojas devolutas das quatro ruas: 39% (41
das 104 lojas). O Expresso foi ver o que havia em algumas dessas lojas antes
das portas fecharem ao público.
FANQUEIROS, 240
O
número 240 da rua dos Fanqueiros mantém o letreiro da loja de roupa que lá
existiu até ao início da década passada. A loja de telemóveis e gadgets,
que sucedeu a uma loja de souvenirs, aguentou perto de cinco anos e
resistiu ao primeiro confinamento. Fechou em 2021.
FANQUEIROS, 128
Foi
a Farmácia Pires, de 1874 a 1931, e depois a Farmácia Silva Carvalho. Fechou em
2018, juntamente com as lojas do mesmo prédio que foi posto à venda em 2019. Na
brochura da Cushman & Wakefield, uma das maiores empresas internacionais de
serviços imobiliários comerciais, pode ler-se que tem "projecto de
arquitectura já aprovado para mudança de uso".
FANQUEIROS, 120
A
Triparte, loja de tatuagens, piercings e roupa gótica, já mudou de loja três
vezes pelos mesmos motivos: "O edifício foi vendido para fins de alojamento
local / hotelaria. Os investidores adquirem os imóveis e grande parte das vezes
os locais ficam vazios durante anos, sem quaisquer avanços na construção dos
mesmos".
35%
das lojas da rua da Prata estão fechadas
O
ambiente de clausura é agravado pelas obras na rua, depois de uma parte do
sistema de drenagem ter desabado com as cheias de dezembro de 2022. 38 das 108
lojas desta rua estão encerradas.
PRATA, 293
A
Joalharia Barbosa e Esteves foi fundada em 1890 e operou na rua da Prata até
fechar, em 2018. Foi classificada como Monumento de Interesse Público em 2020,
mas abriu dois anos depois, durante alguns meses, como loja de souvenirs.
Na fachada ainda é visível o letreiro a néon de uma remodelação do espaço de
1927, com projeto dos arquitetos Cottinelli Telmo e Luís Cunha, considerada
"muito arrojada pelo uso de materiais modernos para além das fórmulas mais
convencionais, nomeadamente, pintura a alumínio, placas lisas de mármore
colorido, painéis de espelho e ferragens niqueladas", pode ler-se no texto
da classificação do imóvel, publicado em Diário da República.
PRATA, 281
A
Club Balão fechou a porta do número 281, da rua da Prata, em 2020. O lojista,
indignado pela venda do prédio e pelo consequente despejo, substituiu os
habituais autocolantes promocionais da marca de roupa masculina por outros, com
palavras de protesto: "Prédio vendido | INQUILINO FURIIIIOSO". A Club
Balão mantém um outro espaço comercial no Rossio.
PRATA, 275 — 279
No
mesmo prédio da Club Balão havia a Casa da Borracha, uma loja de desporto e
artigos de menáge de borracha, que fechou em 2016. Durante cinco anos foi a
Blue Kids, uma marca portuguesa de roupa de criança com várias lojas no país,
que funcionou nos números 275 a 279 da rua da Prata. A loja da Baixa está
fechada desde 2021.
PRATA, 243
Foi
a boutique Zeva, uma loja de roupa feminina. O espaço fechou em 2018. Desde
então foi arrendada, com contratos de 12 meses, pelo menos duas vezes, mas
continua devoluta. O prédio tem afixado a placa do pedido de licenciamento de
uma obra na CML.
PRATA, 211-213
Maria
Karin - Noivas, mais uma loja que fechou há anos e continua vazia. Na mesma rua
há pelo menos mais uma loja de vestidos de noiva e cerimónia, a Peter Ziegler,
devoluta há mais de cinco anos.
PRATA, 85
A
joalharia Baptista fechou antes da pandemia e a loja continua vaga. O
Recenseamento Comercial de Lisboa mostra que Metade das ourivesarias,
joalharias e relojoarias fecharam entre 2010, quando havia 17 destas lojas
nesta rua, e 2023 — o Expresso contou apenas oito com as portas abertas.
PRATA, 79
Esta
loja de artesanato fechou em plena pandemia, em julho de 2020, e assim está há
três anos. As lojas de souvenirs são o ramo de negócio que
mais cresceu na Baixa. Só nas quatro artérias de maior circulação, o Expresso
contou 48 lojas, 21 delas estão na rua da Prata. Em 2002, eram 24, no total
dessas quatro ruas.
PRATA, 62
Há
15 restaurantes e cafetarias abertos na rua da Prata, mas a Croissanteria
Prata, inaugurada nos anos 80, está fechada desde 2020. Ao lado tem a loja das
Queijadas Finas de Sintra, que ocupa o espaço deixado vago pela fecho da
Fábrica das Enguias.
Rua
Augusta, a mais movimentada e a mais turística
É a rua que tem mais movimento comercial e a que tem menos portas fechadas. Ainda assim, são 11 as lojas que não estão abertas ao público em 2023.
AUGUSTA, 41
Foi
loja da "Adidas", entre 2015 e 2018, e antes vendia artigos de
decoração e mobiliário como loja "Viva". Está fechada há mais de
cinco anos e tem montra para uma das esquinas com mais movimento da Baixa —
cruzamento da rua de São Julião com a rua Augusta.
AUGUSTA, 58
Na
montra pode ler-se "Fabricada em Portugal desde 1957". As malhas
Achega estavam na rua Augusta desde os anos 70. Fechou em 2022. "O
senhorio quis vender o prédio e mandou-nos embora", diz uma representante
da marca. A Achega tem mais duas lojas sobreviventes na Baixa, uma na rua dos
Fanqueiros, outra na rua da Prata.
AUGUSTA, 206
Foi
um dos primeiros balcões que fecharam na execução da reestruturação do Montepio
iniciada em outubro de 2020. O plano bianual anunciava o encerramento de 80
balcões desta associação mutualista em todo o país. O fecho das agências
bancárias, na sequência da transição digital dos serviços, é um dos fatores
apontados pelos lojistas para o esvaziamento da Baixa por parte dos clientes
portugueses.
Rua
Áurea sem ouro
É
a segunda rua da Baixa mais afetada pelo fecho de lojas — das 84 lojas com
entrada pela rua do Ouro, 31 estão com a porta fechada (37%).
OURO, 267
O
Apostolado Litúrgico funcionava no número 267 da rua do Ouro desde 2006. O
prédio tranformou-se em Boutique Hotel e, na loja ao lado, abriu uma
multinacional. As novas condições para o arrendamento, apresentadas pelo
senhorio, levaram as Irmãs Pias Discipulas a recusarem a renegociação do
contrato e a mudarem-se para uma loja na rua da Estefânia. O espaço da Baixa
continua vago desde janeiro de 2021.
Na Baixa era onde se
encontrava a vanguarda do comércio, as coisas que não se vendiam em mais lado
algum em Portugal, as lojas só de rolhas para garrafas, as iguarias do café e
do chá, as garrafeiras únicas, o equipamento de esgrima, as peles e os grandes
salões de tecidos que competiam com os de Paris e Milão.
Há 20 anos, a rua
Augusta ou o Terreiro do Paço eram estradas e parques de estacionamento. Se,
entretanto, perderam os carros e ganharam pessoas, foram também entregues às
esplanadas de estabelecimentos privados, onde se paga para usufruir de um banco
à sombra. Perdeu-se a diversidade do comércio, os restaurantes e as lojas de
lembranças duplicaram; outros negócios, menos alavancados pelo crescimento do
turismo, caíram para menos de metade.
Lojas
da Baixa por área de negócio
A Ótica Jomil fica ao
lado da ourivesaria Sarmento. Tem 153 anos e incomoda muita gente, diz o dono,
por ser uma loja grande. Rodrigo Sarmento orgulha-se de ainda ali estar contra
todas as probabilidades. É a sua vitória. Nas traseiras, tem um museu onde vai
guardando as peças mais importantes e os frontais das outras joalharias, relojoarias
e ourivesarias que vão fechando na Baixa, lápides de um ofício que deu nome a
duas das principais artérias da cidade (rua do Ouro e rua da Prata) e que agora
desaparecem.
José e Rodrigo
conhecem-se desde sempre. Cresceram ali, na esquina da rua Áurea, virada para o
elevador de Santa Justa. Têm os carimbos das Lojas com História na porta, o que
significa que as rendas estão congeladas e os contratos blindados contra a
pressão imobiliária. Esse balão de oxigénio só vai durar até 2027. Depois, caso
a lei deixe de os proteger, ficam entregues ao mercado.
“Os sobrinhos da
antiga proprietária não quiseram vender o imóvel aos lojistas porque havia quem
desse mais. Foi aí que entrou o fundo de investimento. Desde que essa entidade
comprou o imóvel, tiveram sempre como objetivo primeiro tirar-nos daqui”, acusa
José Ribeiro, da Jomil: “Ofereceram valores baixíssimos para sairmos os
dois em conjunto. Como não acedemos, tentaram dividir para reinar. Fizeram-me
uma proposta para ir para outra loja, noutra parte da cidade”. Rodrigo
Sarmento ainda chegou a ver o primeiro projeto do fundo imobiliário para o
imóvel. “Previa o encerramento e a mudança estrutural de todas as lojas do
prédio” para nascer o que seria um hotel. Já este ano, o jornal lisboeta
"A Mensagem" fez o levantamento e concluiu que a abertura de cinco
hotéis na Baixa teve como consequência o encerramento de 20 lojas.
Os vestígios
À porta dos números 195 e 197 da rua Augusta, numa das lojas da cadeia
Manteigaria, várias pessoas provam pela primeira vez um pastel de nata. Por
cima da porta, há uma palavra cravada na madeira ornamentada:
“Camiseiro”. É um vestígio da antiga camisaria Pitta, a mais antiga da
Península Ibérica, fundada em 1887. Fechou em 2018 e as máquinas de costura
deram lugar aos balcões. A montra, de influência anglófona com traços de
revivalismo romântico, uma inovação para a época, foi mantida por opção de quem
ocupa agora o espaço. Deixou de ser a camisaria Pitta, passou a ser
mais uma das muitas lojas onde se podem comer pastéis de nata na Rua Augusta.
Quem está todos os dias no batente assistiu nas últimas décadas ao
divórcio dos portugueses com a Baixa. Foi o incêndio do Chiado e foram os
centros comerciais, as Amoreiras, o El Corte Inglés e o Colombo. Pedro
Guimarães, docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
(IGOT), confirma: “A perda da dimensão funcional da Baixa tem uma grande carga
simbólica e há muito saudosismo associado a isso”. Guilherme Pereira,
sociólogo, completa: “Com a expansão da cidade, muitos portugueses saíram do
centro para a periferia. A Baixa já tinha assistido a muitas transformações,
não tinha era assistido à substituição por vagas de gente que vem de fora”.
Um dos efeitos colaterais do brutal aumento de turistas na Baixa e
consequente pressão urbanística tornou-se evidente num levantamento feito pela
Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP) e pelo Expresso: 32%
das lojas daquela zona do centro de Lisboa, muitas destas centenárias, estão
fechadas.
As grades fechadas e grafitadas dão à rua da Prata um ar sombrio. É uma
lembrança do declínio que o centro da cidade sofreu no virar do milénio. Os
prédios do último quarteirão, mesmo antes de chegar à Praça da Figueira, estão
devolutos. Pelo menos um deles pertence à Santa Casa da Misericórdia e tem,
desde 2014, uma tela na fachada a anunciar a sua reabilitação. Os edifícios ora
estão devolutos, ora são convertidos em hotéis ou habitação de luxo.
“É preciso não diabolizar o turismo”, defende Pedro Guimarães. “Às vezes
caímos nessa tentação, mas é preciso não esquecer que o turismo é um
dos motores da nossa economia e que a capital foi sujeita a uma reabilitação
sem precedentes graças isso mesmo.” Algumas das montras decrépitas são
o preço a pagar pela renovação dos edifícios, muitos deles já em obras, outros
embrenhados em longos processos de licenciamento, em fase de compra, venda ou
revenda. "São empreitadas para as quais é preciso ter os prédios vazios e
que resultam, muitas vezes, no despejo ou deslocação de arrendatários do
comércio", explica o presidente da ADBP, Vasco de Mello. A Baixa sórdida,
vazia e perigosa dos anos 90 e 2000, relembra Luís Menezes Leitão, estaria hoje
exatamente na mesma “se não fosse o investimento”. De 2013 a 2022, foram
licenciados para obras de requalificação 382 edifícios na freguesia de Santa
Maria Maior.
Quem ali cresceu e trabalhou a vida inteira diz que essa renovação se
está a fazer a custo da memória e da identidade de uma zona que conta de tantas
formas o passado do país. Num levantamento da Baixa feito em 2016, o sociólogo
Guilherme Pereira diz que “muitos ocupantes, nacionais ou estrangeiros”
desconhecem o património e precisam de acompanhamento no momento em que
investem na Baixa. Por exemplo, numa nova loja de kebabs, no número 4 da rua
Condes de Monsanto, “picaram os azulejos do pintor e ceramista
português Jorge Colaço, que existiam há mais de um século”. Durante a
remodelação do número 227 da rua da Prata desapareceu, no 1.º andar, um quadro
clássico do século XIX. “O homem e a mulher retratados na pintura eram,
provavelmente, os primeiros proprietários do edifício”, escreve Guilherme nas
conclusões do levantamento.
Paulo Barata, designer gráfico, salvou o letreiro que estava na montra
da Casa Senna. Foi a última peça que juntou à vasta coleção do seu projeto,
o Letreiro Galeria. Num
dos armazéns da Fundição de Oeiras, guarda a memória da cidade. Com a mulher,
Rita Múrias, salvam, armazenam e catalogam, desde 2014, neons e frontais dos
que já foram os grandes nomes da Baixa de Lisboa. “Às vezes, quando as obras
arrancam, chegamos lá, perguntamos pelos letreiros e percebemos que já estão no
lixo. E assim sabemos que aquilo que estamos a fazer é urgente.”
Cada letreiro conta uma história, como o da Pastelaria Sul América, na
Avenida de Roma, onde os trabalhos de remoção do neon
tiveram de ser interrompidos para acalmar uma senhora que se emocionou com o
fecho da loja, por ser “onde ia sempre lanchar com a avó que acabara de
perder”, lembra Paulo Barata. O comércio não é apenas uma atividade económica,
explica Pedro Guimarães: “Ao fecharem espaços históricos, as pessoas
perdem os locais onde exerciam a socialização de forma espontânea e livre e,
mais grave ainda, põe-se em risco a componente de abastecimento das populações,
que é de interesse público”.
O “estranhíssimo” caso
Em cada esquina, uma loja de souvenirs. Vendem postais com
imagens de uma identidade lisboeta que está a desaparecer, mas também cachecóis
de clubes de futebol, camisolas do Cristiano Ronaldo e ímanes. Coexistem com as
grandes superfícies comerciais, pagam as mesmas rendas e vendem produtos de
baixo custo. "São um caso estranhíssimo de subsistência", considera
Pedro Magalhães. Luís Menezes Leitão recusa-se a responsabilizar os senhorios
pelo fenómeno. "Se há quem pague, é deixar funcionar o mercado", essa
entidade que os lojistas de lojas históricas declaram corrompida por forças que
não compreendem.
Vasco de Mello, da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP), explica que nesta zona da cidade já ouviu falar em
rendas de determinadas lojas a rondar os 25 mil euros por mês. Uma pesquisa
pela plataforma Imovirtual comprova-o: a renda mais alta que o Expresso
encontrou foi de 38 mil euros por 1130 m2 na rua do Carmo. “Rendas que por
vezes não encontram racional económico, mas que são pagas para garantir o
posicionamento das marcas nos melhores sítios”. As lojas centenárias não
conseguem competir com elas, mas as de souvenirs e as
mercearias conseguem.
Algumas dessas lojas, exemplifica Vasco de Mello, vendem pastas de
dentes da marca branca dos supermercados, o que indica que lá terão sido
compradas e que estarão a ser revendidas praticamente pelo mesmo valor.
“Ninguém consegue explicar. Os empregados vão e vêm e as lojas estão abertas de
manhã à noite".
Ao Expresso, fonte judicial explica que “o verdadeiro negócio destas
lojas é a legalização de imigrantes”, que “a venda de bugigangas para turistas
ou fast food é meramente acessório” e fala numa clara “vontade
política de ignorar o óbvio”. “Para atribuir uma autorização de residência
totalmente fundada em pressupostos fraudulentos, um funcionário do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras [SEF] tem apenas de clicar meia dúzia de vezes com o
rato. Já para efectuar uma proposta de indeferimento, tem que perder várias
horas no terreno, elaborar um extenso relatório que justifique o porquê de não
conceder um título de residência a alguém que não cumpriu com a regra básica
sobre a qual assenta toda a política migratória da União Europeia – solicitar o
visto adequado à finalidade pretendida antes da entrada no espaço da União”,
critica a mesma fonte. Já em agosto de 2022, um inspetor do SEF contava que estas lojas
servem para “receber imigrantes” e que “chegam a pagar €2000 por um contrato de
trabalho”.
Na lei nº 23 de 2007, o contrato de trabalho e a inscrição na Segurança
Social são requisitos obrigatórios para pedir autorização de residência em
Portugal. A fonte judicial completa que "é normal estas pessoas
permanecerem nas lojas o tempo estritamente necessário até terem um documento
comprovativo de que o pedido está em curso". Com autorização concedida,
algumas ficam por cá, outras rumam a outros países europeus, dentro do espaço
Schengen. Voltam aos estabelecimentos quando é expectável que o SEF fiscalize a
sua presença em Portugal e é neste registo que permanecem durante os cinco anos
necessários para obter a nacionalidade portuguesa. "O 'dono' do espaço,
consegue assim uma fonte de mão-de-obra quase inesgotável e gratuita, podendo
ainda ganhar dinheiro a vender estes postos de trabalho”.
“A mão invisível do mercado, de facto, não funciona. Há muita distorção e, com isso, perdem-se espaços da dimensão simbólica das nossas cidades”, defende Pedro Guimarães. O Expresso tentou ouvir trabalhadores de algumas destas lojas, mas ninguém aceitou prestar depoimentos.A boutique Buda tinha uma das suas lojas na rua Augusta, no número 142
O espaço da boutique foi ocupado, em 2015, pela 'boulangerie' Paul. A
padaria recria o ambiente antigo, que tinha sido destruído pelas obras de
modernização das lojas em décadas anteriores
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
O carrossel e a roda gigante
Há uma montra impossível de ignorar no Rossio. Foi pensada para isso. O
carrossel e a roda-gigante em miniatura, estrategicamente virados para a rua,
são os primeiros sinais de que o conceito é excêntrico. De fora, pode ouvir-se
uma banda sonora entoada por um coro de crianças. Os funcionários usam fardas
com dragonas aos ombros e entram ao serviço por uma porta que imita a de um
circo. "Isso parece a famosa fábrica de chocolates!", diz uma turista
brasileira que entra fascinada.
O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa vende as conservas da fábrica
da COMUR, produzidas em Aveiro, mas o grupo que detém este negócio, O Valor do
Tempo, é bem maior do que isso. Tem a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, o
Figurado de Barcelos, o Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, e três das mais
reputadas lojas históricas da Baixa e do Chiado: a Brasileira, a Joalharia do
Carmo e a Casa Pereira da Conceição. Conseguiram transformá-las e enchê-las de
clientes. Adaptaram os velhos negócios ao comércio de experiências e vendem
tradição sob várias formas.
O vereador da cultura, Diogo Moura, acredita que as lojas com história
desempenham papéis muito importantes nas comunidades em que se inserem e que
não têm de ser uma dor de cabeça para quem queira investir. “Ganha o
lojista, porque vê a sua renda protegida, e o proprietário, porque fica isento
do pagamento de IMI, por exemplo”. Mas Luís Menezes Leitão defende os
proprietários: “Esse tipo de benefícios fiscais são anuais e há pequenos
proprietários que precisam dos rendimentos agora.” Diz que a abertura do
mercado impulsionada pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), de que os
lojistas tanto se queixam, “tem vindo a ser atenuada por sucessivas alterações
à lei”.
No Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Pedro Guimarães,
cuja tese de doutoramento tem como título "Planeamento Comercial em
Portugal", não está tão certo de que assim seja e avisa que é preciso
controlo, por parte do Estado, para garantir que a Baixa possa voltar a
“acumular diversas funções comerciais, residenciais e de lazer”.
Tiago Quaresma, administrador do grupo O Valor do Tempo, não tem dúvidas
de que ali foi encontrada a receita. O comércio de abastecimento migrou para a
esfera do digital e a resposta não passa por fazer “babysitting das
lojas com história, mas sim dar-lhes o acompanhamento necessário para que se
modernizem". Outros lojistas ouvidos pelo Expresso não hesitaram
em chamar ao conceito destas lojas “apropriação cultural”, “espalhafato” ou
“Disneyland”.
Quando o grupo adquiriu a Joalharia do Carmo, que assim se chama desde
1926, para a encher de clientes, aplicou-lhe a mesma receita que aplica em
todas as suas lojas: “Abrimos as portas para não obrigar as pessoas a terem de
tocar à campainha para entrar, como acontece nas joalharias mais tradicionais,
demos uma luz quente à montra, trabalhámos o aroma, recuperámos o mobiliário
original e a decoração e apostámos na filigrana portuguesa, que é certificada
desde 2018”. O processo foi semelhante na Casa Pereira da Conceição, na rua Augusta,
ambas lojas com história, certificadas pela autarquia.
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
Descontrolo
Ainda que seja possível adaptar os negócios aos novos tempos, Pedro
Guimarães sublinha que não se pode menosprezar a importância das políticas
públicas na regulação e desregulação do mercado e diz que até se pode contar a
história da perda da importância da Baixa através delas. Nas décadas de 90 e
2000, por exemplo, quando o declínio da Baixa se tornou evidente e preocupante,
houve dois planos especiais de urbanismo comercial, o PROCOM e o URBCOM. Em
2002, criou-se a Agência Baixa-Chiado, uma estrutura de gestão de centros
urbanos. Tentativas vãs, segundo os estudos feitos por este investigador, de
revitalizar o centro da cidade.
Deu-se com uma mão e tirou-se com a outra. Se, por um lado, houve uma
tentativa de dar resposta às preocupações dos comerciantes, por outro,
adotaram-se medidas de desregulação do mercado. Pedro Guimarães aponta duas em
particular que permitiram que fosse a Baixa levada até ao ponto da total
homogeneização: “Desde logo o NRAU, que fragilizou a posição dos arrendatários
em caso de trespasse, e, em segundo lugar, a iniciativa Licenciamento Zero,
extremamente liberal, que simplificou a abertura de estabelecimentos de
comércio e restauração e contribuiu em grande escala para a homogeneização e
monofuncionalidade da Baixa, deixando que o mercado ocupasse os espaços da
cidade, sem controlo dos usos”.
O empresário Tiago Quaresma sugere que a Baixa é a montra de Portugal
para o mundo e um ativo demasiado valioso para estar exclusivamente ao encargo
da autarquia e da freguesia de Santa Maria Maior. Propõe a criação de um comité
onde todos os intervenientes estejam presentes: “As Lojas com História têm de
estar, a autarquia, os proprietários, a higiene urbana, a segurança também.
Neste momento isso está tudo disperso. Imaginem o que seria se o Colombo fosse
gerido assim. É importante trazer gente profissional”.
A Baixa está hoje mais monofuncional e homogénea,
ou seja, mais desprotegida e menos resiliente do que nunca. A perda de diversidade
expõe a cidade ao risco de "entrar em declínio caso os turistas
desapareçam, por causa de uma pandemia, por exemplo, como aconteceu há pouco
tempo, ou simplesmente porque Lisboa deixe de estar na moda”. E oferece uma
solução estudada: “Sei que isto vai contra os ideais liberais, mas é preciso
voltar a regulamentar o comércio, nomeadamente quanto aos horários de
funcionamento das lojas, uma medida comprovadamente eficaz no controlo dos
usos.”
Na candidatura a Património Imaterial da Humanidade, a Câmara Municipal
de Lisboa reconheceu o problema: "O aumento do número de turistas que se
verifica atualmente em Lisboa, e que se concentra fundamentalmente na Lisboa
Histórica e, mais densamente, na Baixa Pombalina, pode constituir uma ameaça à
qualidade urbana". A autarquia diz estar a realizar "estudos sobre
este impacto de modo a definir uma estratégia de atuação". Sobre o futuro,
Pedro Guimarães não se atreve a fazer previsões: "Há 15 anos, ninguém
teria conseguido imaginar o que seria a Baixa hoje. Daqui a 15 anos, será outra
coisa completamente diferente”. Resoluções, José Ribeiro só tem uma: que a
Baixa “não deixe de pertencer às pessoas”.
⬤
DOCUMENTÁRIO
Baixa de Lisboa em liquidação total: a grande
montra de Portugal tem um terço das lojas fechadas
Os vestígios
À porta dos números 195 e 197 da rua Augusta, numa das lojas da cadeia
Manteigaria, várias pessoas provam pela primeira vez um pastel de nata. Por
cima da porta, há uma palavra cravada na madeira ornamentada:
“Camiseiro”. É um vestígio da antiga camisaria Pitta, a mais antiga da
Península Ibérica, fundada em 1887. Fechou em 2018 e as máquinas de costura
deram lugar aos balcões. A montra, de influência anglófona com traços de
revivalismo romântico, uma inovação para a época, foi mantida por opção de quem
ocupa agora o espaço. Deixou de ser a camisaria Pitta, passou a ser
mais uma das muitas lojas onde se podem comer pastéis de nata na Rua Augusta.
Quem está todos os dias no batente assistiu nas últimas décadas ao
divórcio dos portugueses com a Baixa. Foi o incêndio do Chiado e foram os
centros comerciais, as Amoreiras, o El Corte Inglés e o Colombo. Pedro
Guimarães, docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
(IGOT), confirma: “A perda da dimensão funcional da Baixa tem uma grande carga
simbólica e há muito saudosismo associado a isso”. Guilherme Pereira,
sociólogo, completa: “Com a expansão da cidade, muitos portugueses saíram do
centro para a periferia. A Baixa já tinha assistido a muitas transformações,
não tinha era assistido à substituição por vagas de gente que vem de fora”.
Um dos efeitos colaterais do brutal aumento de turistas na Baixa e
consequente pressão urbanística tornou-se evidente num levantamento feito pela
Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP) e pelo Expresso: 32%
das lojas daquela zona do centro de Lisboa, muitas destas centenárias, estão
fechadas.
As grades fechadas e grafitadas dão à rua da Prata um ar sombrio. É uma
lembrança do declínio que o centro da cidade sofreu no virar do milénio. Os
prédios do último quarteirão, mesmo antes de chegar à Praça da Figueira, estão
devolutos. Pelo menos um deles pertence à Santa Casa da Misericórdia e tem,
desde 2014, uma tela na fachada a anunciar a sua reabilitação. Os edifícios ora
estão devolutos, ora são convertidos em hotéis ou habitação de luxo.
“É preciso não diabolizar o turismo”, defende Pedro Guimarães. “Às vezes
caímos nessa tentação, mas é preciso não esquecer que o turismo é um
dos motores da nossa economia e que a capital foi sujeita a uma reabilitação
sem precedentes graças isso mesmo.” Algumas das montras decrépitas são
o preço a pagar pela renovação dos edifícios, muitos deles já em obras, outros
embrenhados em longos processos de licenciamento, em fase de compra, venda ou
revenda. "São empreitadas para as quais é preciso ter os prédios vazios e
que resultam, muitas vezes, no despejo ou deslocação de arrendatários do
comércio", explica o presidente da ADBP, Vasco de Mello. A Baixa sórdida,
vazia e perigosa dos anos 90 e 2000, relembra Luís Menezes Leitão, estaria hoje
exatamente na mesma “se não fosse o investimento”. De 2013 a 2022, foram
licenciados para obras de requalificação 382 edifícios na freguesia de Santa
Maria Maior.
Quem ali cresceu e trabalhou a vida inteira diz que essa renovação se
está a fazer a custo da memória e da identidade de uma zona que conta de tantas
formas o passado do país. Num levantamento da Baixa feito em 2016, o sociólogo
Guilherme Pereira diz que “muitos ocupantes, nacionais ou estrangeiros”
desconhecem o património e precisam de acompanhamento no momento em que
investem na Baixa. Por exemplo, numa nova loja de kebabs, no número 4 da rua
Condes de Monsanto, “picaram os azulejos do pintor e ceramista
português Jorge Colaço, que existiam há mais de um século”. Durante a
remodelação do número 227 da rua da Prata desapareceu, no 1.º andar, um quadro
clássico do século XIX. “O homem e a mulher retratados na pintura eram,
provavelmente, os primeiros proprietários do edifício”, escreve Guilherme nas
conclusões do levantamento.
Paulo Barata, designer gráfico, salvou o letreiro que estava na montra
da Casa Senna. Foi a última peça que juntou à vasta coleção do seu projeto,
o Letreiro Galeria. Num
dos armazéns da Fundição de Oeiras, guarda a memória da cidade. Com a mulher,
Rita Múrias, salvam, armazenam e catalogam, desde 2014, neons e frontais dos
que já foram os grandes nomes da Baixa de Lisboa. “Às vezes, quando as obras
arrancam, chegamos lá, perguntamos pelos letreiros e percebemos que já estão no
lixo. E assim sabemos que aquilo que estamos a fazer é urgente.”
Cada letreiro conta uma história, como o da Pastelaria Sul América, na
Avenida de Roma, onde os trabalhos de remoção do neon
tiveram de ser interrompidos para acalmar uma senhora que se emocionou com o
fecho da loja, por ser “onde ia sempre lanchar com a avó que acabara de
perder”, lembra Paulo Barata. O comércio não é apenas uma atividade económica,
explica Pedro Guimarães: “Ao fecharem espaços históricos, as pessoas
perdem os locais onde exerciam a socialização de forma espontânea e livre e,
mais grave ainda, põe-se em risco a componente de abastecimento das populações,
que é de interesse público”.
O “estranhíssimo” caso
Em cada esquina, uma loja de souvenirs. Vendem postais com
imagens de uma identidade lisboeta que está a desaparecer, mas também cachecóis
de clubes de futebol, camisolas do Cristiano Ronaldo e ímanes. Coexistem com as
grandes superfícies comerciais, pagam as mesmas rendas e vendem produtos de
baixo custo. "São um caso estranhíssimo de subsistência", considera
Pedro Magalhães. Luís Menezes Leitão recusa-se a responsabilizar os senhorios
pelo fenómeno. "Se há quem pague, é deixar funcionar o mercado", essa
entidade que os lojistas de lojas históricas declaram corrompida por forças que
não compreendem.
Vasco de Mello, da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP), explica que nesta zona da cidade já ouviu falar em
rendas de determinadas lojas a rondar os 25 mil euros por mês. Uma pesquisa
pela plataforma Imovirtual comprova-o: a renda mais alta que o Expresso
encontrou foi de 38 mil euros por 1130 m2 na rua do Carmo. “Rendas que por
vezes não encontram racional económico, mas que são pagas para garantir o
posicionamento das marcas nos melhores sítios”. As lojas centenárias não
conseguem competir com elas, mas as de souvenirs e as
mercearias conseguem.
Algumas dessas lojas, exemplifica Vasco de Mello, vendem pastas de
dentes da marca branca dos supermercados, o que indica que lá terão sido
compradas e que estarão a ser revendidas praticamente pelo mesmo valor.
“Ninguém consegue explicar. Os empregados vão e vêm e as lojas estão abertas de
manhã à noite".
Ao Expresso, fonte judicial explica que “o verdadeiro negócio destas
lojas é a legalização de imigrantes”, que “a venda de bugigangas para turistas
ou fast food é meramente acessório” e fala numa clara “vontade
política de ignorar o óbvio”. “Para atribuir uma autorização de residência
totalmente fundada em pressupostos fraudulentos, um funcionário do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras [SEF] tem apenas de clicar meia dúzia de vezes com o
rato. Já para efectuar uma proposta de indeferimento, tem que perder várias
horas no terreno, elaborar um extenso relatório que justifique o porquê de não
conceder um título de residência a alguém que não cumpriu com a regra básica
sobre a qual assenta toda a política migratória da União Europeia – solicitar o
visto adequado à finalidade pretendida antes da entrada no espaço da União”,
critica a mesma fonte. Já em agosto de 2022, um inspetor do SEF contava que estas lojas
servem para “receber imigrantes” e que “chegam a pagar €2000 por um contrato de
trabalho”.
Na lei nº 23 de 2007, o contrato de trabalho e a inscrição na Segurança
Social são requisitos obrigatórios para pedir autorização de residência em
Portugal. A fonte judicial completa que "é normal estas pessoas
permanecerem nas lojas o tempo estritamente necessário até terem um documento
comprovativo de que o pedido está em curso". Com autorização concedida,
algumas ficam por cá, outras rumam a outros países europeus, dentro do espaço
Schengen. Voltam aos estabelecimentos quando é expectável que o SEF fiscalize a
sua presença em Portugal e é neste registo que permanecem durante os cinco anos
necessários para obter a nacionalidade portuguesa. "O 'dono' do espaço,
consegue assim uma fonte de mão-de-obra quase inesgotável e gratuita, podendo
ainda ganhar dinheiro a vender estes postos de trabalho”.
“A mão invisível do mercado, de facto, não
funciona. Há muita distorção e, com isso, perdem-se espaços da dimensão
simbólica das nossas cidades”, defende Pedro Guimarães. O Expresso tentou ouvir
trabalhadores de algumas destas lojas, mas ninguém aceitou prestar depoimentos.
O espaço da boutique foi ocupado, em 2015, pela 'boulangerie' Paul. A
padaria recria o ambiente antigo, que tinha sido destruído pelas obras de
modernização das lojas em décadas anteriores
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
O carrossel e a roda gigante
Há uma montra impossível de ignorar no Rossio. Foi pensada para isso. O
carrossel e a roda-gigante em miniatura, estrategicamente virados para a rua,
são os primeiros sinais de que o conceito é excêntrico. De fora, pode ouvir-se
uma banda sonora entoada por um coro de crianças. Os funcionários usam fardas
com dragonas aos ombros e entram ao serviço por uma porta que imita a de um
circo. "Isso parece a famosa fábrica de chocolates!", diz uma turista
brasileira que entra fascinada.
O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa vende as conservas da fábrica
da COMUR, produzidas em Aveiro, mas o grupo que detém este negócio, O Valor do
Tempo, é bem maior do que isso. Tem a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, o
Figurado de Barcelos, o Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, e três das mais
reputadas lojas históricas da Baixa e do Chiado: a Brasileira, a Joalharia do
Carmo e a Casa Pereira da Conceição. Conseguiram transformá-las e enchê-las de
clientes. Adaptaram os velhos negócios ao comércio de experiências e vendem
tradição sob várias formas.
O vereador da cultura, Diogo Moura, acredita que as lojas com história
desempenham papéis muito importantes nas comunidades em que se inserem e que
não têm de ser uma dor de cabeça para quem queira investir. “Ganha o
lojista, porque vê a sua renda protegida, e o proprietário, porque fica isento
do pagamento de IMI, por exemplo”. Mas Luís Menezes Leitão defende os
proprietários: “Esse tipo de benefícios fiscais são anuais e há pequenos
proprietários que precisam dos rendimentos agora.” Diz que a abertura do
mercado impulsionada pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), de que os
lojistas tanto se queixam, “tem vindo a ser atenuada por sucessivas alterações
à lei”.
No Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Pedro Guimarães,
cuja tese de doutoramento tem como título "Planeamento Comercial em
Portugal", não está tão certo de que assim seja e avisa que é preciso
controlo, por parte do Estado, para garantir que a Baixa possa voltar a
“acumular diversas funções comerciais, residenciais e de lazer”.
Tiago Quaresma, administrador do grupo O Valor do Tempo, não tem dúvidas
de que ali foi encontrada a receita. O comércio de abastecimento migrou para a
esfera do digital e a resposta não passa por fazer “babysitting das
lojas com história, mas sim dar-lhes o acompanhamento necessário para que se
modernizem". Outros lojistas ouvidos pelo Expresso não hesitaram
em chamar ao conceito destas lojas “apropriação cultural”, “espalhafato” ou
“Disneyland”.
Quando o grupo adquiriu a Joalharia do Carmo, que assim se chama desde
1926, para a encher de clientes, aplicou-lhe a mesma receita que aplica em
todas as suas lojas: “Abrimos as portas para não obrigar as pessoas a terem de
tocar à campainha para entrar, como acontece nas joalharias mais tradicionais,
demos uma luz quente à montra, trabalhámos o aroma, recuperámos o mobiliário
original e a decoração e apostámos na filigrana portuguesa, que é certificada
desde 2018”. O processo foi semelhante na Casa Pereira da Conceição, na rua Augusta,
ambas lojas com história, certificadas pela autarquia.
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
Descontrolo
Ainda que seja possível adaptar os negócios aos novos tempos, Pedro
Guimarães sublinha que não se pode menosprezar a importância das políticas
públicas na regulação e desregulação do mercado e diz que até se pode contar a
história da perda da importância da Baixa através delas. Nas décadas de 90 e
2000, por exemplo, quando o declínio da Baixa se tornou evidente e preocupante,
houve dois planos especiais de urbanismo comercial, o PROCOM e o URBCOM. Em
2002, criou-se a Agência Baixa-Chiado, uma estrutura de gestão de centros
urbanos. Tentativas vãs, segundo os estudos feitos por este investigador, de
revitalizar o centro da cidade.
Deu-se com uma mão e tirou-se com a outra. Se, por um lado, houve uma
tentativa de dar resposta às preocupações dos comerciantes, por outro,
adotaram-se medidas de desregulação do mercado. Pedro Guimarães aponta duas em
particular que permitiram que fosse a Baixa levada até ao ponto da total
homogeneização: “Desde logo o NRAU, que fragilizou a posição dos arrendatários
em caso de trespasse, e, em segundo lugar, a iniciativa Licenciamento Zero,
extremamente liberal, que simplificou a abertura de estabelecimentos de
comércio e restauração e contribuiu em grande escala para a homogeneização e
monofuncionalidade da Baixa, deixando que o mercado ocupasse os espaços da
cidade, sem controlo dos usos”.
O empresário Tiago Quaresma sugere que a Baixa é a montra de Portugal
para o mundo e um ativo demasiado valioso para estar exclusivamente ao encargo
da autarquia e da freguesia de Santa Maria Maior. Propõe a criação de um comité
onde todos os intervenientes estejam presentes: “As Lojas com História têm de
estar, a autarquia, os proprietários, a higiene urbana, a segurança também.
Neste momento isso está tudo disperso. Imaginem o que seria se o Colombo fosse
gerido assim. É importante trazer gente profissional”.
A Baixa está hoje mais monofuncional e homogénea,
ou seja, mais desprotegida e menos resiliente do que nunca. A perda de diversidade
expõe a cidade ao risco de "entrar em declínio caso os turistas
desapareçam, por causa de uma pandemia, por exemplo, como aconteceu há pouco
tempo, ou simplesmente porque Lisboa deixe de estar na moda”. E oferece uma
solução estudada: “Sei que isto vai contra os ideais liberais, mas é preciso
voltar a regulamentar o comércio, nomeadamente quanto aos horários de
funcionamento das lojas, uma medida comprovadamente eficaz no controlo dos
usos.”
Na candidatura a Património Imaterial da Humanidade, a Câmara Municipal
de Lisboa reconheceu o problema: "O aumento do número de turistas que se
verifica atualmente em Lisboa, e que se concentra fundamentalmente na Lisboa
Histórica e, mais densamente, na Baixa Pombalina, pode constituir uma ameaça à
qualidade urbana". A autarquia diz estar a realizar "estudos sobre
este impacto de modo a definir uma estratégia de atuação". Sobre o futuro,
Pedro Guimarães não se atreve a fazer previsões: "Há 15 anos, ninguém
teria conseguido imaginar o que seria a Baixa hoje. Daqui a 15 anos, será outra
coisa completamente diferente”. Resoluções, José Ribeiro só tem uma: que a
Baixa “não deixe de pertencer às pessoas”.
⬤
DOCUMENTÁRIO
Baixa de Lisboa em liquidação total: a grande
montra de Portugal tem um terço das lojas fechadasOs vestígios
À porta dos números 195 e 197 da rua Augusta, numa das lojas da cadeia
Manteigaria, várias pessoas provam pela primeira vez um pastel de nata. Por
cima da porta, há uma palavra cravada na madeira ornamentada:
“Camiseiro”. É um vestígio da antiga camisaria Pitta, a mais antiga da
Península Ibérica, fundada em 1887. Fechou em 2018 e as máquinas de costura
deram lugar aos balcões. A montra, de influência anglófona com traços de
revivalismo romântico, uma inovação para a época, foi mantida por opção de quem
ocupa agora o espaço. Deixou de ser a camisaria Pitta, passou a ser
mais uma das muitas lojas onde se podem comer pastéis de nata na Rua Augusta.
Quem está todos os dias no batente assistiu nas últimas décadas ao
divórcio dos portugueses com a Baixa. Foi o incêndio do Chiado e foram os
centros comerciais, as Amoreiras, o El Corte Inglés e o Colombo. Pedro
Guimarães, docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
(IGOT), confirma: “A perda da dimensão funcional da Baixa tem uma grande carga
simbólica e há muito saudosismo associado a isso”. Guilherme Pereira,
sociólogo, completa: “Com a expansão da cidade, muitos portugueses saíram do
centro para a periferia. A Baixa já tinha assistido a muitas transformações,
não tinha era assistido à substituição por vagas de gente que vem de fora”.
Um dos efeitos colaterais do brutal aumento de turistas na Baixa e
consequente pressão urbanística tornou-se evidente num levantamento feito pela
Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP) e pelo Expresso: 32%
das lojas daquela zona do centro de Lisboa, muitas destas centenárias, estão
fechadas.
As grades fechadas e grafitadas dão à rua da Prata um ar sombrio. É uma
lembrança do declínio que o centro da cidade sofreu no virar do milénio. Os
prédios do último quarteirão, mesmo antes de chegar à Praça da Figueira, estão
devolutos. Pelo menos um deles pertence à Santa Casa da Misericórdia e tem,
desde 2014, uma tela na fachada a anunciar a sua reabilitação. Os edifícios ora
estão devolutos, ora são convertidos em hotéis ou habitação de luxo.
“É preciso não diabolizar o turismo”, defende Pedro Guimarães. “Às vezes
caímos nessa tentação, mas é preciso não esquecer que o turismo é um
dos motores da nossa economia e que a capital foi sujeita a uma reabilitação
sem precedentes graças isso mesmo.” Algumas das montras decrépitas são
o preço a pagar pela renovação dos edifícios, muitos deles já em obras, outros
embrenhados em longos processos de licenciamento, em fase de compra, venda ou
revenda. "São empreitadas para as quais é preciso ter os prédios vazios e
que resultam, muitas vezes, no despejo ou deslocação de arrendatários do
comércio", explica o presidente da ADBP, Vasco de Mello. A Baixa sórdida,
vazia e perigosa dos anos 90 e 2000, relembra Luís Menezes Leitão, estaria hoje
exatamente na mesma “se não fosse o investimento”. De 2013 a 2022, foram
licenciados para obras de requalificação 382 edifícios na freguesia de Santa
Maria Maior.
Quem ali cresceu e trabalhou a vida inteira diz que essa renovação se
está a fazer a custo da memória e da identidade de uma zona que conta de tantas
formas o passado do país. Num levantamento da Baixa feito em 2016, o sociólogo
Guilherme Pereira diz que “muitos ocupantes, nacionais ou estrangeiros”
desconhecem o património e precisam de acompanhamento no momento em que
investem na Baixa. Por exemplo, numa nova loja de kebabs, no número 4 da rua
Condes de Monsanto, “picaram os azulejos do pintor e ceramista
português Jorge Colaço, que existiam há mais de um século”. Durante a
remodelação do número 227 da rua da Prata desapareceu, no 1.º andar, um quadro
clássico do século XIX. “O homem e a mulher retratados na pintura eram,
provavelmente, os primeiros proprietários do edifício”, escreve Guilherme nas
conclusões do levantamento.
Paulo Barata, designer gráfico, salvou o letreiro que estava na montra
da Casa Senna. Foi a última peça que juntou à vasta coleção do seu projeto,
o Letreiro Galeria. Num
dos armazéns da Fundição de Oeiras, guarda a memória da cidade. Com a mulher,
Rita Múrias, salvam, armazenam e catalogam, desde 2014, neons e frontais dos
que já foram os grandes nomes da Baixa de Lisboa. “Às vezes, quando as obras
arrancam, chegamos lá, perguntamos pelos letreiros e percebemos que já estão no
lixo. E assim sabemos que aquilo que estamos a fazer é urgente.”
Cada letreiro conta uma história, como o da Pastelaria Sul América, na
Avenida de Roma, onde os trabalhos de remoção do neon
tiveram de ser interrompidos para acalmar uma senhora que se emocionou com o
fecho da loja, por ser “onde ia sempre lanchar com a avó que acabara de
perder”, lembra Paulo Barata. O comércio não é apenas uma atividade económica,
explica Pedro Guimarães: “Ao fecharem espaços históricos, as pessoas
perdem os locais onde exerciam a socialização de forma espontânea e livre e,
mais grave ainda, põe-se em risco a componente de abastecimento das populações,
que é de interesse público”.
Retrosaria Luís S. Fernandes, na rua da Conceição
Fotografia de arquivo de João Carlos Santos, 2006
Fechado há mais de cinco anos, o espaço ficou degradado
Nuno Fox , 2023
O “estranhíssimo” caso
Em cada esquina, uma loja de souvenirs. Vendem postais com
imagens de uma identidade lisboeta que está a desaparecer, mas também cachecóis
de clubes de futebol, camisolas do Cristiano Ronaldo e ímanes. Coexistem com as
grandes superfícies comerciais, pagam as mesmas rendas e vendem produtos de
baixo custo. "São um caso estranhíssimo de subsistência", considera
Pedro Magalhães. Luís Menezes Leitão recusa-se a responsabilizar os senhorios
pelo fenómeno. "Se há quem pague, é deixar funcionar o mercado", essa
entidade que os lojistas de lojas históricas declaram corrompida por forças que
não compreendem.
Vasco de Mello, da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP), explica que nesta zona da cidade já ouviu falar em
rendas de determinadas lojas a rondar os 25 mil euros por mês. Uma pesquisa
pela plataforma Imovirtual comprova-o: a renda mais alta que o Expresso
encontrou foi de 38 mil euros por 1130 m2 na rua do Carmo. “Rendas que por
vezes não encontram racional económico, mas que são pagas para garantir o
posicionamento das marcas nos melhores sítios”. As lojas centenárias não
conseguem competir com elas, mas as de souvenirs e as
mercearias conseguem.
Algumas dessas lojas, exemplifica Vasco de Mello, vendem pastas de
dentes da marca branca dos supermercados, o que indica que lá terão sido
compradas e que estarão a ser revendidas praticamente pelo mesmo valor.
“Ninguém consegue explicar. Os empregados vão e vêm e as lojas estão abertas de
manhã à noite".
Ao Expresso, fonte judicial explica que “o verdadeiro negócio destas
lojas é a legalização de imigrantes”, que “a venda de bugigangas para turistas
ou fast food é meramente acessório” e fala numa clara “vontade
política de ignorar o óbvio”. “Para atribuir uma autorização de residência
totalmente fundada em pressupostos fraudulentos, um funcionário do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras [SEF] tem apenas de clicar meia dúzia de vezes com o
rato. Já para efectuar uma proposta de indeferimento, tem que perder várias
horas no terreno, elaborar um extenso relatório que justifique o porquê de não
conceder um título de residência a alguém que não cumpriu com a regra básica
sobre a qual assenta toda a política migratória da União Europeia – solicitar o
visto adequado à finalidade pretendida antes da entrada no espaço da União”,
critica a mesma fonte. Já em agosto de 2022, um inspetor do SEF contava que estas lojas
servem para “receber imigrantes” e que “chegam a pagar €2000 por um contrato de
trabalho”.
Na lei nº 23 de 2007, o contrato de trabalho e a inscrição na Segurança
Social são requisitos obrigatórios para pedir autorização de residência em
Portugal. A fonte judicial completa que "é normal estas pessoas
permanecerem nas lojas o tempo estritamente necessário até terem um documento
comprovativo de que o pedido está em curso". Com autorização concedida,
algumas ficam por cá, outras rumam a outros países europeus, dentro do espaço
Schengen. Voltam aos estabelecimentos quando é expectável que o SEF fiscalize a
sua presença em Portugal e é neste registo que permanecem durante os cinco anos
necessários para obter a nacionalidade portuguesa. "O 'dono' do espaço,
consegue assim uma fonte de mão-de-obra quase inesgotável e gratuita, podendo
ainda ganhar dinheiro a vender estes postos de trabalho”.
“A mão invisível do mercado, de facto, não
funciona. Há muita distorção e, com isso, perdem-se espaços da dimensão
simbólica das nossas cidades”, defende Pedro Guimarães. O Expresso tentou ouvir
trabalhadores de algumas destas lojas, mas ninguém aceitou prestar depoimentos.
A boutique Buda tinha uma das suas lojas na rua Augusta, no número 142
Fotografia de arquivo do Expresso
O espaço da boutique foi ocupado, em 2015, pela 'boulangerie' Paul. A
padaria recria o ambiente antigo, que tinha sido destruído pelas obras de
modernização das lojas em décadas anteriores
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
O carrossel e a roda gigante
Há uma montra impossível de ignorar no Rossio. Foi pensada para isso. O
carrossel e a roda-gigante em miniatura, estrategicamente virados para a rua,
são os primeiros sinais de que o conceito é excêntrico. De fora, pode ouvir-se
uma banda sonora entoada por um coro de crianças. Os funcionários usam fardas
com dragonas aos ombros e entram ao serviço por uma porta que imita a de um
circo. "Isso parece a famosa fábrica de chocolates!", diz uma turista
brasileira que entra fascinada.
O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa vende as conservas da fábrica
da COMUR, produzidas em Aveiro, mas o grupo que detém este negócio, O Valor do
Tempo, é bem maior do que isso. Tem a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, o
Figurado de Barcelos, o Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, e três das mais
reputadas lojas históricas da Baixa e do Chiado: a Brasileira, a Joalharia do
Carmo e a Casa Pereira da Conceição. Conseguiram transformá-las e enchê-las de
clientes. Adaptaram os velhos negócios ao comércio de experiências e vendem
tradição sob várias formas.
O vereador da cultura, Diogo Moura, acredita que as lojas com história
desempenham papéis muito importantes nas comunidades em que se inserem e que
não têm de ser uma dor de cabeça para quem queira investir. “Ganha o
lojista, porque vê a sua renda protegida, e o proprietário, porque fica isento
do pagamento de IMI, por exemplo”. Mas Luís Menezes Leitão defende os
proprietários: “Esse tipo de benefícios fiscais são anuais e há pequenos
proprietários que precisam dos rendimentos agora.” Diz que a abertura do
mercado impulsionada pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), de que os
lojistas tanto se queixam, “tem vindo a ser atenuada por sucessivas alterações
à lei”.
No Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Pedro Guimarães,
cuja tese de doutoramento tem como título "Planeamento Comercial em
Portugal", não está tão certo de que assim seja e avisa que é preciso
controlo, por parte do Estado, para garantir que a Baixa possa voltar a
“acumular diversas funções comerciais, residenciais e de lazer”.
Tiago Quaresma, administrador do grupo O Valor do Tempo, não tem dúvidas
de que ali foi encontrada a receita. O comércio de abastecimento migrou para a
esfera do digital e a resposta não passa por fazer “babysitting das
lojas com história, mas sim dar-lhes o acompanhamento necessário para que se
modernizem". Outros lojistas ouvidos pelo Expresso não hesitaram
em chamar ao conceito destas lojas “apropriação cultural”, “espalhafato” ou
“Disneyland”.
Quando o grupo adquiriu a Joalharia do Carmo, que assim se chama desde
1926, para a encher de clientes, aplicou-lhe a mesma receita que aplica em
todas as suas lojas: “Abrimos as portas para não obrigar as pessoas a terem de
tocar à campainha para entrar, como acontece nas joalharias mais tradicionais,
demos uma luz quente à montra, trabalhámos o aroma, recuperámos o mobiliário
original e a decoração e apostámos na filigrana portuguesa, que é certificada
desde 2018”. O processo foi semelhante na Casa Pereira da Conceição, na rua Augusta,
ambas lojas com história, certificadas pela autarquia.
Casa Pereira da Conceição, no número 102 da rua Augusta, em 2000
Fotografia de arquivo do Expresso
Fotografia atual (2023) de Nuno Fox
Descontrolo
Ainda que seja possível adaptar os negócios aos novos tempos, Pedro
Guimarães sublinha que não se pode menosprezar a importância das políticas
públicas na regulação e desregulação do mercado e diz que até se pode contar a
história da perda da importância da Baixa através delas. Nas décadas de 90 e
2000, por exemplo, quando o declínio da Baixa se tornou evidente e preocupante,
houve dois planos especiais de urbanismo comercial, o PROCOM e o URBCOM. Em
2002, criou-se a Agência Baixa-Chiado, uma estrutura de gestão de centros
urbanos. Tentativas vãs, segundo os estudos feitos por este investigador, de
revitalizar o centro da cidade.
Deu-se com uma mão e tirou-se com a outra. Se, por um lado, houve uma
tentativa de dar resposta às preocupações dos comerciantes, por outro,
adotaram-se medidas de desregulação do mercado. Pedro Guimarães aponta duas em
particular que permitiram que fosse a Baixa levada até ao ponto da total
homogeneização: “Desde logo o NRAU, que fragilizou a posição dos arrendatários
em caso de trespasse, e, em segundo lugar, a iniciativa Licenciamento Zero,
extremamente liberal, que simplificou a abertura de estabelecimentos de
comércio e restauração e contribuiu em grande escala para a homogeneização e
monofuncionalidade da Baixa, deixando que o mercado ocupasse os espaços da
cidade, sem controlo dos usos”.
O empresário Tiago Quaresma sugere que a Baixa é a montra de Portugal
para o mundo e um ativo demasiado valioso para estar exclusivamente ao encargo
da autarquia e da freguesia de Santa Maria Maior. Propõe a criação de um comité
onde todos os intervenientes estejam presentes: “As Lojas com História têm de
estar, a autarquia, os proprietários, a higiene urbana, a segurança também.
Neste momento isso está tudo disperso. Imaginem o que seria se o Colombo fosse
gerido assim. É importante trazer gente profissional”.
A Baixa está hoje mais monofuncional e homogénea,
ou seja, mais desprotegida e menos resiliente do que nunca. A perda de diversidade
expõe a cidade ao risco de "entrar em declínio caso os turistas
desapareçam, por causa de uma pandemia, por exemplo, como aconteceu há pouco
tempo, ou simplesmente porque Lisboa deixe de estar na moda”. E oferece uma
solução estudada: “Sei que isto vai contra os ideais liberais, mas é preciso
voltar a regulamentar o comércio, nomeadamente quanto aos horários de
funcionamento das lojas, uma medida comprovadamente eficaz no controlo dos
usos.”
Na candidatura a Património Imaterial da Humanidade, a Câmara Municipal
de Lisboa reconheceu o problema: "O aumento do número de turistas que se
verifica atualmente em Lisboa, e que se concentra fundamentalmente na Lisboa
Histórica e, mais densamente, na Baixa Pombalina, pode constituir uma ameaça à
qualidade urbana". A autarquia diz estar a realizar "estudos sobre
este impacto de modo a definir uma estratégia de atuação". Sobre o futuro,
Pedro Guimarães não se atreve a fazer previsões: "Há 15 anos, ninguém
teria conseguido imaginar o que seria a Baixa hoje. Daqui a 15 anos, será outra
coisa completamente diferente”. Resoluções, José Ribeiro só tem uma: que a
Baixa “não deixe de pertencer às pessoas”.
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DOCUMENTÁRIO
Baixa de Lisboa em liquidação total: a grande
montra de Portugal tem um terço das lojas fechadas
O Rossio foi o centro de convívio
durante o século XIX. A Loja das Meias abriu portas em 1905, na esquina da rua
Augusta com a Praça D. Pedro IV
Nos anos 30, a loja cresceu. As
montras
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