Cidade do abandono: Jornal Metropole lista espaços e imóveis históricos apagados pelo descaso
Instituto do Cacau, Solar da Boa Vista e Museu de Ciência e Tecnologia são alguns dos espaços listados
Foto: Leitor Metro1/Metropress/Tácio Moreira/Filipe Luiz
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 13 de julho de 2023
Para quem já conhece Salvador (ou provavelmente acha que conhece), o roteiro, desta vez, vai ser um pouco diferente. Não vamos passar pelo novo centro empresarial, pelas praias e nem pelos pontos turísticos mais conhecidos. As cenas serão muito semelhantes: tapumes, vegetação crescendo, acúmulo de lixo, insetos, e, vez ou outra, um vigia solitário, dando indícios de que há algo realmente valioso por baixo de todo aquele desleixo. Mas, mesmo com companhia - já adiantamos desde o início -, a presença mais marcante é o silêncio do abandono, que cala até mesmo a história.
Um solar que já foi a morada de um dos maiores poetas deste país e hoje só abriga ratos e baratas. Um forte que luta para resistir ao descaso. E ainda um museu construído para celebrar a tecnologia e a ciência, mas que agora representa apenas o atraso de uma cidade que não sabe valorizar seu patrimônio. Esses são alguns dos destinos deste roteiro dos abandonos em Salvador.
A maioria dos imóveis é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ou pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). O que, na prática, pode não significar muita coisa ou ser interpretado como uma ironia da língua portuguesa e da própria história. Afinal, de preservados eles não têm nada, mas o risco de desabamento é algo iminente.
Sem abrigo, sem cuidado
Começaremos pela Cidade Baixa. Lá, na região de Boa Vigem, no vai e vem de pessoas, ao lado das Obras Sociais Irmã Dulce, um palacete passa despercebido mesmo com suas imponentes esculturas e arquitetura neocolonial. O Solar Machado, uma construção dos anos 1800, permanece sem uso há cinco anos, desde que o Abrigo Dom Pedro II, que recebia idosos em vulnerabilidade social, foi transferido para um outro prédio, em Piatã. Essa mudança, inclusive, foi fruto de um pedido de 2014 feito pelo Ministério Público da Bahia, que constatou falta de estrutura no imóvel.
Segundo o Iphan, uma vistoria no local apontou que o prédio histórico se encontra “em processo de arruinamento”, mas a responsabilidade de uma requalificação é da prefeitura de Salvador. Até um mês atrás, a gestão municipal alegava que havia um projeto para tornar o local um espaço cultural e de eventos. Nesta semana, no entanto, a prefeitura autorizou os estudos para implantar um hotel no imóvel tombado. A empresa responsável é a BM Varejo Empreendimentos S.A, a mesma envolvida na licitação do governo do estado para tornar o Palácio Rio Branco um hotel de luxo.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Quem dera fosse só fogo
Próxima parada: bairro do Comércio, Avenida da França. Mesmo com os sinais de abandono, é impossível o prédio do Instituto do Cacau não chamar atenção de quem passa pela região do porto de Salvador. Considerado até hoje uma preciosidade arquitetônica, o edifício é o único exemplar em Salvador da escola de arquitetura alemã, a Bauhaus. Com suas linhas e os mais de 16 mil metros quadrados, o prédio era sinônimo de modernidade e avanço tecnológico na época de sua inauguração, em 1936. No período, a região passava por um processo de crescimento e o cacau despontava como um dos principais produtos da economia baiana. Hoje, no entanto, só há retrocesso.
Em 2012, o instituto foi atingido por um incêndio, um ano depois de um episódio semelhante. Desde então, o governo do estado já realizou uma obra de recuperação, mas o local permanece com sinais de abandono. Paredes pichadas, vidros quebrados e mofo por tudo que é lado. O próprio Ipac, que tombou o imóvel em 2002, reconhece a situação como precária. Ainda assim, lá funcionam serviços como uma agência bancária e um SAC.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Nem pela misericórdia
Uma vista deslumbrante, capaz de enquadrar o Elevador Lacerda e parte da Baía de Todos-os-Santos, um projeto assinado por Lina Bo Bardi e João Filgueiras Lima (Lelé) e um cenário de abandono. Esse é o nosso terceiro destino. O conjunto formado pelo restaurante Coaty, um bar e três casarões na Ladeira da Misericórdia começou a ser desenhado em 1987. Era uma proposta da prefeitura, comandada por Mário Kertész na época, para “reavivar” a região, estigmatizada como um lugar perigoso e com constantes casos de vandalismo. O espaço chegou a ser usado como restaurante na década de 1990, depois foi ocupado apenas temporariamente em 10 ocasiões.
Na internet, uma infinidade de fotos ainda apresenta o projeto como uma das genialidades da dupla de arquitetos, mas, fora das telas, resta apenas um muro de concreto para dificultar a entrada de usuários de drogas. A Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), da prefeitura, é responsável pela preservação do patrimônio e diz desenvolver um projeto de revitalização, mas de concreto não tem nada.
De passeio no abandono
Já na cidade alta, mais uma vista privilegiada. Inaugurado em 1810, no bairro do Campo Grande, o Passeio Público reúne um conjunto de imponentes monumentos da história baiana. Mas a verdade é que o lugar está longe de seus dias de glória. Em 2015, na última obra de requalificação, equipes contratadas pelo governo do estado chegaram a tirar do local seis toneladas de entulho e lixo. Oito anos depois e os dias parecem ser os mesmos, com exceção de uma construção irregular na rua aos fundos, que agora bloqueia parte da vista. Além da coleção de infiltrações, bancos quebrados e vegetação descuidada, o espaço foi ainda cenário da morte da adolescente Cristal Rodrigues, assassinada no ano, durante um assalto na entrada do passeio, enquanto ia para a escola. Apesar das condições, o equipamento continua sediando atividades e eventos públicos.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Do poeta aos ratos
Longe dos bairros turísticos, no Engenho Velho de Brotas, se esconde (por baixo de muito entulho, mato e descaso) nossa próxima parada. Aqui, a história é longa e marcada pelo jogo do empurra-empurra. O certa vez imponente Solar da Boa Vista já foi morada do poeta Castro Alves e sede da prefeitura. Agora, a praça que comporta o imóvel é definida como “a cracolândia de Salvador”. O cenário se estende há dez anos, quando um incêndio deu início à destruição da história de mais um dos patrimônios tombados pelo Iphan. No início de março, a pedido do Jornal Metropole, a Defesa Civil de Salvador (Codesal) chegou a fazer uma vistoria no imóvel e constatou o risco de desabamentos internos e a destruição completa dos telhados e escadarias. A responsabilização é motivo de conflito entre governo e prefeitura. Isso porque a área pertence à gestão estadual, mas o prédio estava cedido à Secretaria Municipal de Educação quando foi queimado. Em 2019, o imbróglio parecia ter chegado ao fim quando a Secretaria de Saúde da Bahia anunciou a instalação de uma central de diagnóstico de imagem no casarão. Quatro anos depois, no entanto, a proposta ainda não se concretizou.
Foto: Metropress/Tácio Moreira
Arte, resistência e desleixo
A cerca de seis quilômetros do Solar da Boa Vista, está nossa próxima parada: o Forte do Barbalho. Uma das construções mais antigas da Bahia, ele continua resistindo e protegendo. Mas agora resistindo ao abandono e protegendo uma história. O espaço, que já funcionou como cadeia pública e centro de tortura durante a ditadura militar, hoje repete os cenários dos nossos destinos anteriores: paredes mofadas, vegetação por capinar e estruturas metálicas espalhadas pela parte externa.
Apesar do descaso, o forte ainda sedia atividades artísticas e recreativas para a comunidade, mas os próprios produtores e moradores se dizem preocupados com a situação do local. Em 2015, o governo do estado chegou a anunciar que o local abrigaria um museu da luta das liberdades no Brasil e na Bahia, mas o projeto nunca foi para frente. A propriedade é da Superintendência do Patrimônio da União (SPU), mas ela se esquiva da responsabilidade e já anunciou que irá ceder o imóvel para o Iphan. Por enquanto, não houve nem conclusão da cessão e nem requalificação.
Foto: Leitor Metro1
Caiu no descaso
O dia 23 de setembro de 2016 marcou a história de abandono do nosso próximo destino. Parte da estrutura do antigo Centro de Convenções da Bahia desabou deixando três pessoas feridas. Desde então, o equipamento permanece como uma carcaça entre os bairros do Stiep e do Jardim Armação. O espaço, que chegou a causar estranhamento pelo estilo modernista em 1979, hoje serve como rota de fuga e esconderijo para usuários de drogas e criminosos. O futuro do local até hoje é incerto.
Ao Metro1, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) afirmou que sugeriu a desmontagem ao governo. Já a Secretaria do Turismo disse que o estado pretende realizar uma troca do imóvel por outro bem, uma vez que qualquer projeto para o centro esbarra no fato dele ter sido utilizado como garantia em ações dos processos trabalhistas da antiga Bahiatursa. Segundo o governador Jerônimo Rodrigues (PT), hoje o espaço já não seria suficiente para abrigar um Centro de Convenções. A Secretaria de Administração da Bahia e a Procuradoria-Geral do Estado estão estudando um fim para o equipamento.
Foto: Metropress/Leticia Alvarez
A ciência do retrocesso
Nossa última parada é onde a ciência e o retrocesso se encontram. O Museu de Ciência e Tecnologia (MCT), no bairro do Imbuí, foi fundado em 1979, pelo então governador Roberto Santos. Era a representação de inovação e pioneirismo não só para a Bahia ou Brasil, afinal foi o primeiro espaço interativo de ciência na América Latina. Seu projeto contou com o apoio do Museu de Ciência e Tecnologia da Inglaterra. Era dinâmico, didático e voltado para a juventude. Não à toa, durante os finais de semana, costumava receber um grande público, como um parque. Até que, entre os descaminhos de suas gestões, caiu no abandono.
Com as portas fechadas desde 2018, o museu tem confinado um acervo que traz desde a locomotiva da antiga estação de trem de Salvador até um avião americano utilizado pela Força Aérea Brasileira em meados dos anos 1900. Os equipamentos, assim como toda a estrutura do museu, agora são tomados pela vegetação e limo que crescem no terreno. A Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) chegou a informar que seria feito um novo projeto de revitalização conceitual e de infraestrutura, mas nunca saiu do papel. Roberto Santos, que dizia ser o museu o seu maior legado político, morreu sem vê-lo recuperado.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
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