sábado, 27 de julho de 2019

O ESCONDERIJO

  
   No princípio dos anos 70, ainda morando em Cascais, uma das minhas lojas ficava em Lisboa, no Campo Pequeno. Era ponto de encontro obrigatório de muitos amigos e conhecidos.
Um dia apareceu um casal de franceses. Tinha dois filhos e residiam num destes imóveis dos anos 50 com vista para a bizantina praça de touros. Ele –  seria Michel seu nome? – tinha sido contratado pelo governo português para restaurar o órgão da Sé, aquela severa catedral agarrada á encosta de Alfama e que mal resistiu ao terremoto de 1755.
Michel tinha um hobby coerente com sua arte: gostava de consertar relógios. Qualquer tipo de relógio. De pulso, de parede ou de centro de mesa. As famosas “cebolas” dos séculos XVIII e XIX tão pouco tinham segredo para ele. Passava parte de seus momentos de ócio nos antiquários do Príncipe Real, da rua da Misericórdia, de São Bento, do Rato ou da estreita rua São José. Na Feira da Ladra era conhecido de todos. Com frequência trazia para casa um pequeno tesouro, desde que o gasto não fosse exagerado. Passei a frequentar a casa deles depois do expediente. Papo sempre gostoso que podia terminar por um informal convite para jantar.
Uma tarde, o Michel chega com aquele imenso sorriso de pura felicidade. Acabara de comprar um relógio inglês Long case clock, também chamado de Grandfather clock, e queria que fosse até seu apartamento para admirar a peça. Era realmente um magnífico móvel de quase dois metros de altura, jacarandá claro, o que é muito raro para o que aparentava ser da primeira metade do século XVIII.
Mostrador clássico de latão trabalhado, pêndulo sem qualquer decoração ou marca e os tradicionais dois pesos compridos, de latão também, que servem para dar corda ao mecanismo. O mecanismo “oito dias” estava parado, mas em bom estado, não faltando nenhuma peça. Durante duas semanas Michel entregou-se totalmente à sua mais recente paixão. Funcionava, mas algo estava errado. O relógio tinha tendência de devorar um dia em 20 horas. Com infinita paciência, o restaurador desmontava e remontava o relógio... e nada. Continuava sua louca corrida, tal o coelho de Alice.
Até que se lembrou de verificar os dois cilindros. Surpresa: um pesava bastante menos que o outro. Notando algo como uma tampa, Michel desatarraxou a peça. Naquele momento algo milagroso aconteceria: dentro do peso havia uma folha fina enrolada com o maior cuidado. Ao abrir o documento, as mãos do restaurador começaram a tremer e seus olhos marejaram. O garimpeiro indiano que achou, cinco mil anos atrás, o fabuloso diamante Koh-i-Noor deve ter tido similar emoção.
Era uma partitura manuscrita – uma sonata para cravo – devidamente assinada pelo genial compositor do Messias: Georg Friedrich Händel.

Dimitri Ganzelevitch
A Tarde 27/07/19

Ps.- Por falta de espaço no jornal, não coloquei o final feliz desta linda aventura. O Michel era também exímio músico. Gravou uma interpretação da sonata e mandou para a Deutsche Grammophon. A famosa gravadora respondeu que o trabalho do Michel era de tal qualidade que seria editado sem qualquer modificação.


Nenhum comentário:

Postar um comentário