quarta-feira, 20 de novembro de 2019

NEGRA E IMIGRANTE

Negra e imigrante, porta-voz do governo de Macron é o rosto da França inclusiva

Alvo de ataques, Sibeth Ndiaye rompe paradigmas do elitismo que domina o poder francês
Porta-voz do governo francês, Sibeth Ndiaye, deixa o Palácio Eliseu após uma reunião de gabinete Foto: LUDOVIC MARIN / AFP, com arte de José Correa
Porta-voz do governo francês, Sibeth Ndiaye, deixa o Palácio Eliseu após uma reunião de gabinete Foto: LUDOVIC MARIN / AFP, com arte de José Correa
PARIS — Em uma França em que as elites parecem moldadas pelo mesmo padrão e onde ressurge, ciclicamente, a obsessão pela identidade, o rosto e a voz do poder hoje pertencem a uma mulher negra de origem imigrante.
— Não me encaixo em nenhuma das categorias nas quais quero estar — disse Sibeth Ndiaye, natural de Dakar, secretária de Estado e porta-voz do governo francês.
Nos salões do poder, um mundo ainda versalhesco composto por mulheres e homens brancos educados nas melhores instituições de ensino da França, Ndiaye rompe paradigmas. Ela não passou pela Escola Nacional de Administração, berçário da classe governante, ou sequer nasceu em território francês. Tampouco se encaixa na rigidez e em alguns dos rituais do establishment parisiense.
— Como não ficar deslumbrado com a elegância dos hábitos de nossa ministra preferida, Sibeth Ndiaye, o ápice da distinção francesa? — disse o controverso escritor anti-imigração Éric Zemmour, durante uma convenção da ultradireita.
A eurodeputada Nadine Morano, ex-ministra conservadora, repreendeu a porta-voz por utilizar “roupas de circo”. Outros criticam seu penteado afro.

Ataques racistas

Estes ataques pessoais vão além das críticas que recebe por sua defesa ferrenha, por vezes agressiva, do presidente Emmanuel Macron. Ndiaye, que dá um vago ar obamaniano e progressista à equipe de tecnocratas de centro-direita que rodeia Macron, traz à tona a parte mais reacionária da França.
— Quando cheguei à França para cursar o ensino médio, meus colegas me perguntavam se eu vivia em uma cabana e se havia energia elétrica. O desconhecimento me deixava estupefata — disse aos jornalistas do grupo de diários europeus LENA. — Agora, quando veem meus cabelos e dizem que eu estou mal penteada, eu não gosto, dado o tempo que eu levo para fazer isso toda manhã.
Ndiaye acredita que, na cabeça de muitos franceses, existem dois tipos de negros. Uma “caricaturização”, ela explica:
— Para a extrema direita, o negro é um incapaz, um preguiçoso. Para a extrema esquerda, ele é quem vive na periferia e passa dificuldades, quem cruzou o Mediterrâneo em embarcações precárias. Eu não me encaixo em nenhuma dessas categorias.
Seu pai era muçulmano e sua mãe, católica. Ela, que é ateia, recorda que quando tinha entre 7 e 8 anos, em Dakar, após as orações de sexta-feira, seu pai a levava para cumprir um dos pilares do islamismo: a caridade.
— Meu compromisso vem do barulho das latas de molho concentrado de tomate que as crianças em situação de rua agitavam para pedir moedas — disse. — Nós tínhamos um carro bonito porque meus pais tinham uma boa situação [financeira]. Eu perguntei ao meu pai, que era de uma família extremamente pobre: “Por quê? Por que eu estou deste lado da barreira e eles, do outro?” E ele me respondeu: “Faça algo para que isso deixe de existir.”

Dificuldades

Já com câncer, seu pai a enviou à França para estudar, falecendo logo depois. Viúva, a mãe de Ndiaye teve grandes dificuldades financeiras para sustentar a família. A menina, ativa no movimento estudantil precisava trabalhar para se manter. Lá, ela conheceu quem seria seu marido, um homem “muito mais à esquerda” que a República em Marcha, partido de Ndiaye e Macron, que "inicia discussões animadas, mas sempre respeitosas, em casa".
Ela entrou na política e trabalhou com lideranças socialistas, até cruzar o caminho de Macron. Em 2014, a atual porta-voz do governo adotou a nacionalidade francesa após a morte de sua mãe:
— Era o último elo que me ligava ao Senegal e, quando ela morreu, eu me sentia preparada — disse, afirmando também ter sido influenciada pela então possível vitória de Marine Le Pen, candidata da extrema direita derrotada por Macron no primeiro turno. — Meu marido me disse: "Sabe, prefiro que você seja da mesma nacionalidade que nossos filhos, porque não sabemos o que vai acontecer."
A França é "uma sociedade atormentada em relação à sua História, particularmente à história colonial", disse Ndiaye, mencionando algumas das questões que angustiam franceses no que diz respeito à identidade nacional do país:
— Essas angústias, que não são majoritárias, mas que, há alguns anos, se manifestam com bastante liberdade, se cristalizam em torno de pessoas que vêm de países da África colonizados pela França, onde a cultura islâmica é forte.
Angústia esta que se traduz, por exemplo, em repetidas controvérsias sobre o lenço que algumas mulheres muçulmanas usam para cobrir seus cabelos. Segundo Ndiaye, sua “convicção feminista é que o véu é um símbolo da opressão das mulheres” e ela tem convicção política de que pode convencê-las disso.
O argumento é uma síntese delicada do dilema da República Francesa que rejeita comunitarismos, mas defende uma sociedade diversificada.
— Prefiro me colocar no campo da inclusão, construindo uma forma de diálogo. Talvez porque eu sou uma mulher negra. Eu vivi demais o que significa ficar segregada — disse a porta-voz.
Ao ser nomeada conselheira de comunicação do Palácio do Eliseu em 2017, com a vitória de Macron, e secretária de Estado em março, Ndiaye recebeu cartas de jovens mulheres que a veem como exemplo — papel que ela não se sente cômoda em ocupar.
— Não tenho a impressão de ter uma trajetória exemplar. Tenho a impressão de que tive muita sorte, além de ter trabalhado muito e sacrificado momentos na minha vida familiar. Não me dedico, no entanto, à reivindicação de uma identidade ou posição.

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