quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

PORTAS QUE EU ABRI

 

A casa de meus bisavôs paternos em Tomsk ainda existe. Tem dezenove janelas na fachada, mas a foto só mostra uma porta.

Foi por ela que meu avô saiu para nunca mais voltar. O resto da família ficou debruçado nas janelas, vendo a vida passar.

Janelas são prazerosas. Entra a luz, entra a brisa matinal, o canto dos pássaros e você permanece protegido no aconchego de seu lar, sentindo os perfumes da cozinha onde preparam a refeição. Tranquila certeza de que nada irá mudar no seu futuro próximo.

Prefiro, porém, as portas. Não existe civilização sem porta, seja ela de palha, pano, pedra, madeira ou bronze. Mal colocou a mão na maçaneta, já se define, ainda que difusa, uma promessa de aventura. Tudo pode acontecer, mesmo se a intenção for só comprar limões na quitanda vizinha.

Aos dezessete anos, voltando de férias quando fora iniciado nas volúpias do cigarro, abri a porta de casa para comprar um novo maço. Mas então não teria dinheiro para assistir a “Arroz amargo”. Escolhi o filme, me apaixonei por Silvana Mangano e nunca mais fumei.

Se você for à ilha de Zanzibar, se encantará, na Cidade de Pedra, com o elegante despojamento da arquitetura suaili, em absoluto contraponto com a exuberância das portas entalhadas que denunciam o domínio matemático da cultura árabe. Calçando botas de sete léguas, ao pular por cima do Oceano Indiano, talvez não resista em adquirir uma casa branca em Lamu, abrindo sua – de novo! - ricamente elaborada porta para viver lá o resto da vida.

No último dia em Roma, bem antes das seis da manhã, saí da casinha alugada perto da Piazza Navona, atravessei a ponte Sant´Angelo e, virando à esquerda, fui até ao Vaticano. Cheguei no momento exato quando o primeiro raio de sol iluminava a porta principal, ainda fechada. Não, não se trata de intervenção divina, mas da genialidade de sucessivos arquitetos.

Outras portas pontuaram minha vida, nem sempre imponentes ou sacras. Também, como você, abri montões de portas de metrô, ônibus e elevadores, raramente encontrando aventuras memoráveis. Assim mesmo, empurrar uma porta é abrir um livro e ao fechá-la, nada será como dantes, cada passo um novo capítulo de sua história.

Como Ulisses após longa viagem, cansado de guerrear em Troia e resistir a cantos perigosamente sedutores, volto a Itaca e abro a porta de minha casa. Abandono malas e mochilas no meio da sala para desmaiar na poltrona preferida. Meu olhar, porém, não deixará de notar cada móvel, cada quadro. Subo até o quarto, deixo a luz entrar pela janela, a brisa entrar e reencontro o canto amigo dos pássaros. Abro então a porta mais amada, aquela que me leva ao terraço. Me sento numa cadeira baixinha para tratar sem mais demora de meus pés de morango.

 Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, sábado 8 de janeiro 2022

 

2 comentários:

  1. Parabéns!
    Muito bem escrito " A porta que abri " - Não fiz na minha vida outra que abrir porta.... e sempre uma surpresa : alegria ou tristeza !

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  2. Dimitri, você é um excelente cronista e deve reunir seus escritos em um livrinho. É a maneira de perpetuá-las. Acabo de fazer isto com minhas crônicas de viagem, que vou lançar no dia 20 no Sebo Galáxias no Cine Glauber Rocha, às 18:00hs. Paulo Ormindo

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