Moacir Soares de Faria, o artista que ganhou uma mostra individual, mas não ficou sabendo
Henrique Skujis, de São Paulo|05 dez 2024_09h22
Ogoiano Moacir Soares de Faria foi um
dos destaques da terceira edição da Rotas Brasileiras. A badalada exposição
aconteceu de 28 de agosto a 1º de setembro na Arca, galpão de 9 mil m² na Zona
Oeste da cidade de São Paulo. O estande da Cerrado Galeria expôs 44 obras do
artista durante o evento organizado pela produtora cultural responsável também
pela SP-Arte, a maior feira de arte e design da América do Sul.
Com traços e cores fortes extraídos
de gizes de cera e lápis coloridos, Moacir desenha Deus, o Diabo e o infinito
entre e além deles. Mescla rios, montanhas, animais, flores, frutas, homens e
mulheres – mulheres nuas, em poses explícitas, sem essa de nu artístico. Seus
primeiros rabiscos vieram espontaneamente aos 7 anos, usando o carvão do forno
a lenha da casa dos pais, garimpeiros nos idos tempos da mineração no cerrado
brasileiro.
No fim da década de 1980, aos 20 e
poucos anos, sua arte passou a fascinar viajantes de passagem pela sua casa, na
vila de São Jorge, antessala do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, a
cerca de 230 km de Brasília. Encantados com as pirações de Moacir, os
forasteiros começaram a lhe presentear com lápis de cor, a lhe rasgar elogios e
a crescer o olho sobre suas obras. Mesmo mal das finanças, o artista cobrava
valores inexpressivos ou presenteava os visitantes com seus desenhos. “A gente
ficava admirando, mas não sabia o quanto a arte dele era grandiosa”, conta Du
Moraes, 47 anos, irmã caçula e atual empresária de Moacir.
Na antevéspera da abertura da Rotas
Brasileiras, uma reportagem publicada pelo
jornal Folha de S.Paulo trouxe
Moacir como personagem principal do evento ao anunciar sua “primeira mostra
solo em São Paulo”. No dia 30 de agosto, já com a exposição aberta, a Cerrado informou
com destaque em seu site a participação da galeria na mostra sob o título Moacir
Soares de Faria – Incomum e Metamórfico, seguido de uma
longa publicação de louvor ao artista: “Seu processo criativo incomum revela o
dinamismo de sua mente e a fertilidade de suas competências criadoras”, no
texto do curador goiano Divino Sobral.
Quando visitei sua casa em São Jorge,
há muito tempo, em 2003, o artista pedalava com um lençol na cabeça, batom
vermelho nos lábios e a camisa do Flamengo vestida ao contrário. Suas obras se
espalhavam desordenadamente pelas paredes e pelos arredores, afrontando a fatia
mais pudica dos oitocentos habitantes da pequena vila. O documentário Moacir Arte
Bruta (2005), dirigido por Walter Carvalho, conta que vez
ou outra os desenhos eram atacados pela vizinhança, inconformada com os capetas
e as vaginas.
Foi uma surpresa dar de cara com os desenhos daquele sujeito que conheci vivendo na pobreza expostos na Rotas Brasileiras. Emolduradas por uma madeira clara e protegidas por um vidro cristalino, as obras coloriam as paredes brancas do estande da Cerrado, galeria com sedes em Goiânia e Brasília, e tocada pelo trio Lucio Albuquerque, sócio também da Casa Albuquerque, de Brasília, Antonio Almeida e Carlos Dale Junior, ambos da Almeida & Dale, de São Paulo.
O cenário, imaginei, parecia ideal,
com todos de bem com a vida: galerista, curador, vendedor, cliente e, claro,
artista. Não fosse o fato de Moacir e seus familiares não saberem o que se
passava por ali. Uma mostra exclusiva em uma galeria de nível internacional em
um evento organizado pela produtora da maior feira de arte da América do Sul
aconteceu em São Paulo e o autor das 44 obras expostas não foi informado.
“Fiquei sabendo hoje de manhã. Uma amiga de São Paulo me contou”, disse Du, ao
receber a ligação da piauí no dia seguinte ao término da Rotas
Brasileiras.
O estranhamento da irmã de Moacir,
ela conta, havia começado semanas antes: em 19 de julho, o site da Cerrado
anunciou ao mercado, com textos em português e inglês, que começara a trabalhar
com as obras do artista de São Jorge. Diz o anúncio, em inglês: “Uma das
características mais marcantes de seu trabalho é o dualismo entre o sagrado e o
profano. Seu trabalho transcende categorizações simples, evocando uma tapeçaria
de símbolos que capturam a imaginação e o interesse de estudiosos e admiradores
da arte contemporânea brasileira”.
Ao saber da novidade, Du enviou
mensagem de WhatsApp à galeria pedindo explicações. “Responderam com áudios
dizendo que haviam comprado mais de 120 obras do Moacir e para não me preocupar,
porque sabiam preservar os direitos dele. Prometeram fazer uma visita, mas
nunca apareceram. Marcaram e desmarcaram”, conta. Dois meses depois desse
contato interrompido, a Cerrado abriu a Rotas Brasileiras com os desenhos de
Moacir. “E de novo não avisaram a gente. Eu chamo isso de falta de respeito com
o artista. É uma postura indecente”, avalia Du.
A promessa de visita foi feita por Lucio Albuquerque, sócio da Cerrado. Procurado pela piauí, o galerista alegou que Moacir “vive em isolamento”, que o “acesso a ele não é simples” e que foi feito “contato com a Du”, referindo-se à infértil troca de mensagens citada acima. A Cerrado afirma ainda que as obras expostas na Rotas Brasileiras não pertencem a Moacir, mas a um colecionador. Estão, segundo ele, no mercado secundário, no qual não é necessário vínculo com o autor. “É público que [a galeria Cerrado] apresenta e disponibiliza para venda obras de autoria de Moacir, assim como de outros artistas com os quais não tem vínculo, por atuar no mercado secundário”, respondeu Albuquerque.
No Brasil, a Lei de Direitos Autorais
prevê ao criador originário da obra um percentual de 5% sobre a valorização de
cada transação feita, denominado “direito de sequência”. “Entretanto,
diferentemente do que acontece na Europa, esse dispositivo não pegou no Brasil,
não se tornou prática no mercado secundário de obras de arte em nosso país”,
pontua Guilherme Carboni, professor da pós-graduação da Fundação Getulio Vargas
Direito SP. Ele disse que “em tese, caberia a Moacir um percentual de 5% sobre
o aumento de preço pela revenda do quadro”, concluiu o professor, que é sócio
do LVCAT Advogados, escritório especializado em propriedade intelectual.
Luciana Arruda, do l.arruda, outro
escritório do mesmo setor, explica que “a galeria pode expor e vender obras
licitamente adquiridas do artista ou de terceiros, mas é importante e ético que
o autor esteja ciente de onde e como sua obra está sendo comercializada e
divulgada”. Ela explica que o objetivo do legislador com o direito de sequência
foi garantir uma compensação financeira ao autor em caso de valorização da obra
de arte. A contrapartida é entendida como a diferença entre os preços inicial e
final de venda da obra. Se o artista vendeu sua criação por mil reais e ela foi
revendida por 10 mil reais, uma taxa de 5% dessa diferença de 9 mil deve ser
repassada ao autor, explica Arruda. A transferência precisa ser feita em cada
operação que inclua a obra.
Albuquerque, sócio da Cerrado,
enfatiza que as obras de Moacir expostas pertencem a um colecionador. “A
galeria atua meramente como intermediadora e, assim, os valores recebidos são a
ele destinados, após o abatimento da comissão ajustada.” Como as obras foram
cedidas em consignação pelo proprietário à galeria, caberia a ele o acerto de
contas com o artista, caso o direito de sequência fosse praticado. A Cerrado
alegou confidencialidade e não fornceu o nome do dono das obras. A apuração
da piauí, no entanto, chegou ao nome do colecionador: o artista
plástico Siron Franco.
Quem descobriu o talento de Moacir
foi o fotógrafo goiano João Fernandes ao ver um desenho em papel ofício na
parede do finado restaurante União, a uma quadra da casa do artista. “Fui conhecê-lo,
e nasceu uma amizade profunda”, conta João ao relembrar o encontro ocorrido em
1989. “Desde aquele dia comecei a querer cuidar do Moacir. Ele era desconfiado,
ficava com rosto coberto. Corria das pessoas. Eu dava coragem para ele sair e
viver a vida.” À época, João era fotógrafo profissional. Trabalhava para
Gessiron Alves Franco, mais conhecido como Siron Franco, artista goiano com
obras em museus como o Masp, em São Paulo, o Museu Nacional de Belas Artes, no
Rio, o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, o Metropolitan Museum of Art, em Nova
York, e o Museu de Arte Contemporânea de Monterrey, no México.
“Foi natural fazer a ponte
entre os dois artistas”, conta o fotógrafo. Quando levava Moacir para
tratamentos médicos e odontológicos em Goiânia, hospedavam-se na casa do
artista baiano Carlos Sena (1952-2015) e chegaram a pernoitar no ateliê de
Siron por duas vezes, segundo João. “Ao ser apresentado à obra dele, fiquei
encantado. Lembrei do tempo em que meu pai, espírita, me levava nos hospícios”,
conta Siron, hoje com 77 anos. “Eu dava papel e caneta para os internos
desenharem. Vinham desenhos que lembravam [o artista suíço]
Paul Klee. É a arte do inconsciente. Jung falou sobre isso. Depois, a Nise da
Silveira trouxe para o Brasil. Não é surrealismo. É um universo deles. O Moacir
é isso.”
As estadias de Moacir em seu ateliê
haviam lhe rendido a nata da produção do artista de São Jorge. “O João me
trazia os trabalhos e eu ficava com alguns. Em troca, perguntava o que ele [Moacir]
estava precisando na construção da casa: o cimento, a tinta, o telhado…” Siron
calcula que pagava pelas obras entre o dobro e o triplo do valor cobrado por
Moacir na época. O fotógrafo João Fernandes tem uma versão menos romântica da
relação. “Ele apenas indicava médicos amigos para ajudar nos tratamentos do
Moacir. Pela quantidade de obras que ele pegou, foi uma exploração”, opina.
“Quando apresentei os dois, acreditava que o Siron tinha muito para ajudar, mas
ele se refestelou com o Moacir. Fui inocente.”
Versões e visões à parte, sabe-se que
os desenhos que saíram das mãos de Moacir a preço de pequi, nos longínquos anos
1990, eram acompanhados de etiquetas entre 38 mil e 60 mil reais na Rotas
Brasileiras. Siron diz que duas obras foram vendidas durante a mostra. “Eu não
me meto na área comercial. Inclusive não sabia que a Cerrado tinha decidido
fazer uma exposição. Fiquei sabendo uma semana antes da abertura”, defende-se.
“Quando disponibilizei as obras para eles, minha ideia era fazer livro e
exposição, mas não em uma feira. Feira não é lugar para exposição individual.”
Siron lamenta que o artista não tenha sido avisado. “Confesso que passou batido
por mim, mas eu deveria ter pensado nisso. A galeria também deveria ter feito
esse contato. Foi um erro.”
A Cerrado informou que o colecionador
tinha conhecimento da exposição, mas não confirmou quantas obras foram vendidas
durante a exposição paulistana, nem se pagou alguma comissão a Moacir. Disse,
no entanto, que o valor apurado foi insuficiente para cobrir os gastos do
projeto, como a catalogação, a produção de molduras, o transporte e o seguro
das obras. Exposições em galerias de renome, como a Cerrado, e sob a chancela
da SP-Arte, custam caro, mas têm potencial para elevar o nome do artista e
valorizar seu trabalho. Segundo Du, desde que a Cerrado anunciou as obras de
Moacir em seu site, quase uma dezena de interessados a procuraram – uma
evidência de que o artista não está incomunicável. “Ontem, ligou uma galeria
pedindo dez desenhos.”
Em geral, um artista se beneficia
assim da valorização de suas obras no mercado secundário: vende novos trabalhos
por um preço maior. Moacir, no entanto, tem pouquíssimas obras guardadas e
quase não pinta mais. Aos 62 anos (e não 70, como escrito no site da Cerrado),
é surdo do ouvido esquerdo, fala com dificuldades e tem graves problemas na
coluna devido à má formação óssea, agravada pelo esforço exigido na lida do
garimpo. O artista convalesce de uma cirurgia que abrandou as dores nas costas,
mas o deixou preso a um andador e dependente de ajuda para os movimentos do dia
a dia. “Ficamos cinco anos na fila do SUS”, conta Du. “Como o sofrimento dele
ficou insuportável, fizemos a operação no particular. Custou 45 mil reais. Foi
embora toda a nossa poupança e ainda precisamos pedir dinheiro emprestado.” Moacir
vive da aposentadoria de um salário-mínimo e do pagamento – “simbólico”,
segundo a irmã/empresária – pelo uso de suas obras nos cartazes anuais do
Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Mora na mesma casa
pobre de duas décadas atrás.
“Não
sabia que ele estava passando por dificuldades. Estive lá [em
São Jorge] uma única vez, para gravar o documentário do
Walter Carvalho”, diz Siron, referindo-se à obra de 2005. “Agora que tenho
notícias dele, vou visitá-lo, vou ajudá-lo, vou dar uma comissão, vou ajudar
nas compras do supermercado.” A Cerrado Galeria afirma que “estuda
maneiras de se aproximar do artista, por entender ser necessário dar
visibilidade à sua produção”.
Até o fechamento deste texto, três
meses após o fim da Rotas Brasileiras, nem Siron nem a Cerrado haviam entrado
em contato com Moacir, segundo sua família. “Eu me sinto lisonjeada, feliz
demais, por saber que a obra do meu irmão foi exposta em uma galeria, por ver
onde meu irmão chegou. Ao mesmo tempo, nos sentimos explorados, porque ninguém
dá satisfação, ninguém quer saber como ele está de saúde. Não o valorizam nem
como artista nem como ser humano”, reclama Du, que, além de cuidar de
Moacir e ser mãe de sete, é dona do Bistrô Sucupira, restaurante de café da manhã
famoso entre os viajantes.
A SP-Arte, em nota, disse que o
“projeto celebrou a obra do artista com muito respeito e cuidado” e espera “que
a galeria consiga contribuir para que o artista alcance o reconhecimento que
merece”. Fernanda Feitosa, fundadora e diretora-executiva da feira, em viagem
de férias, não se manifestou. Em seu site, a SP-Arte define a Rotas Brasileiras
como uma “feira de descobertas, com projetos que refletem o que está
despontando na cena” e como uma “feira que toma a arte brasileira e suas
histórias como ponto de partida, reunindo expositores que valorizam a potência
e a pluralidade artística do país”.
João, o fotógrafo que descobriu
Moacir em 1989, lamenta o rumo que a carreira do amigo tomou. Segundo João,
desde que ganhou projeção, Moacir passou a pintar continuamente para atender
aos pedidos de galerias e interessados, sem conseguir cobrar o valor justo por
suas criações. “A obra atropelou o artista”, resume. Assim como Siron, João
guarda um tesouro em casa. “Tenho aqui dezenas de desenhos do Moacir, dessa
mesma época, anos 1980 e 1990. “Quer saber? Vou colocar à venda e reverter o
dinheiro para ele. Você me ajuda com isso?”
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