Não é fácil fazer fila no supermercado e ver que a freguesa
ainda não aprendeu o básico da democracia: veio com a avô e o titio de bengala,
a tiracolo, cada um numa fila para ver qual passa primeiro, enquanto a
criancinha apronta no carrinho, solas dos sapatinhos espalhando alegremente
bactérias de fezes, ratos e baratas.
Não é fácil defender sua paz ao recusar o carro do ano ou de
qualquer outro ano com aquele som envenenado e buzinaço animal, preferindo
ônibus imundos e atrasados, cambaleando nas curvas, preocupado com o próximo
assalto anunciado.
Não é fácil vestir camisas surradas e sapatos sem brilho numa
sociedade que coloca todo seu orgulho ao desfilar com roupa de marcas
flamejantes em templos de consumo que excluem biliões de miseráveis.
Não é fácil defender o direito da mulher dispor de seu ventre
e todos de usar das drogas como bem entenderem contra quem estende um tapete
vermelho debaixo dos pés da hipocrisia e dos sombrios enriquecimentos.
Não é fácil ter sido moldado desde o berço na contrição da
culpa judeu-cristã quando antes mesmo da andar você já foi convencido que tudo
aquilo que você fará na vida terá sempre que ser visto sob o ângulo do pecado
original.
Não é fácil ser ateu quando o planeta inteiro reverencia uma
multidão de deuses e entidades, mas explode a cada minuto em fanáticas guerras
religiosas com direito a todos os rituais de torturas, mortes de inocentes e
benção dos governos - incluindo o seu, leitor - que fabricam armas mortíferas
para equilibrar o orçamento e, dizem, combater o desemprego.
Não é fácil viver em harmonia com o establishment, tendo
orientação sexual diferenciada num mundo que, ignorante da genética, ainda
apedreja quem não corresponder ás fantasiosas imagens povoando livros que de
sacralidade pouco têm, já que foram todos escritos por humanos vulneráveis e
mutáveis.
Não é fácil saber que na Chechênia ou nas arábias seres
humanos são arrastados para campos de tortura e condenados a morte por amar a
pessoa errada.
Não é fácil manter sua independência ideológica num mundo
ilógico que cobra insaciavelmente que você cante em uníssono, louvando os
ídolos do momento e linchando qualquer outro que tenha perdido de sua antiga
aura.
Não é fácil viver em sociedade sem se dobrar a todos e
qualquer um de seus usos e costumes por incôngruos que sejam. Viver sem perder
sua coerência íntima, vista com desconfiança por familiares e desconhecidos.
Recusar o habitual maniqueísmo, opiniões levianas e efémeras impostas como
verdades perenes e absolutas. Com exagerada frequência ser obrigado a remar
contra ventos e maremotos.
Não é fácil correr fora dos trilhos. Mas é o preço da
liberdade.
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