Vemos hoje, em plano internacional, a esquerda inteiramente rachada. De uma parte, uma esquerda democrática, universalista. De outra, a chamada esquerda identitária ou diversitária, inscrita no multiculturalismo, com sua ânsia de divisórias, pregando “apartheids” e guetificações. E a disputa ideológica entre essas duas esquerdas está deflagrada.
A reação ao identitarismo cresce em países da Europa e nos EUA. No Brasil, ao contrário, a discussão não existe. Temos hoje uma esquerda de costas para o mundo, fugindo dos debates da esquerda internacional. O que vigora aqui é a acomodação, com partidos de esquerda evitando confrontos internos, ocupados apenas em aumentar o número de seus militantes, passando ao largo das questões que possam provocar dissenso.
Raras vezes, causas justas, como as dos identitários, terão se pervertido tanto pelos descaminhos da ignorância e do autoritarismo. Caiu-se numa mescla de ceticismo epistêmico, na teoria, e de delírio persecutório na prática, descambando para o fundamentalismo e o fascismo. Tudo é conspiração contra os “oprimidos”. O poder está em todo lugar – a verdade, em nenhum. E não teremos como construir um futuro coletivo com base na fragmentação e no neossegregacionismo, que caracterizam o identitarismo, hoje ideologia dominante no “establishment” acadêmico-midiático e em parte do ambiente empresarial.
Recentemente, Alejo Schapire observou que esta esquerda multicultural-identitária teve de dar uma tremenda guinada, para jogar fora o antigo ideário marxista e a disposição democrática, a fim de celebrar a intolerância, o puritanismo, as ditaduras extraocidentais, o obscurantismo, o neorracismo de um modo geral. Em “O Fim da Utopia”, Russell Jacoby já assinalava: “Estamos assistindo não apenas à derrota da esquerda, mas à sua conversão e talvez inversão”.
Para Schapire, 1989, ano da queda do Muro de Berlim e da fátua do aiatolá Khomeini colocando a cabeça de Salman Rushdie a prêmio, é o marco em que se expõe claramente a fratura entre as duas esquerdas: a esquerda universalista, emancipatória e antiautoritária – e uma “esquerda emergente”, disposta a fechar os olhos e aceitar opressões étnicas e sexuais em sociedades africanas, árabes e asiáticas. Em todo o espectro político, foi essa vertente a única que tentou justificar o atentado contra o “Charlie Hebdo” – e agora aplaude a volta do Talibã.
Com a desintegração da antiga URSS, o comunismo e o socialismo entraram em parafuso, perdendo seus pontos de apoio. A esquerda identitária, apostando em qualquer direção contrária ao “imperialismo ocidental”, adotou então o muçulmano ou o negro como arquétipo do “oprimido”, sucedâneo do proletariado. Uma aposta no escuro, claro. Como bem lembra Schapire, se Sartre e Foucault se deixaram fascinar pela revolução no Irã, “os jovens esquerdistas iranianos que foram seduzidos por aquela revolução, não viveram para contar sobre ela”.
A própria neoesquerda mergulharia no fanatismo. Schapire: “O problema é quando a esquerda regressiva se converte em patrulha moral dedicada a vigiar e punir quem se aparta de seu revisionismo histórico anacrônico à luz da nova moral em voga, de seu macartismo (cultura do cancelamento), da novilíngua e seus códigos. É uma nova esquerda obcecada por raça e sexualidade como prisma privilegiado sobre a realidade [“uma investida essencialista que reduz as pessoas a suas identidades étnicas e sexuais”] e disposta a atacar a liberdade de expressão de democratas e universalistas”. A fazer de tudo para enclausurar a dissidência no vazio e no silêncio.
Em nome da diversidade cultural, o que se quer impor é a uniformidade ideológica. Instaurou-se assim um ambiente policialesco no mundo das ideias e do comportamento. São as ações das milícias multicultural-identitárias, sejam digitais ou presenciais: polícia da língua, polícia do sexo, polícia do desejo, polícia das condutas, polícia das artes, polícia do pensamento.
Nas campanhas para as eleições regionais francesas, a candidata do Partido Socialista em Île-de-France, uma mulata da Martinica chamada Audrey Pulvar, defendeu que, se um branco comparece a um encontro de não-brancos sobre a questão racial, tem de se limitar ao papel de “espectador silencioso”. Parte da esquerda vai ao delírio com essas tiradas, mas outra parte da mesma esquerda não concorda.
Audrey não tem apoio unânime nem dentro do seu próprio partido. Plantou-se no terreno da retórica vitimária, anunciando sua postura favorável ao expediente fascista do “lugar de fala” – e não se deu muito bem. O assunto foi manchete no Figaro: “O Novo Racialismo Fratura a Esquerda”. E o jornal trouxe uma entrevista com o filósofo Pascal Bruckner, que acaba de publicar “Un Coupable Presque Parfait – La Construction du Bouc Émissaire Blanc”. E Bruckner entrou em cena se colocando em polo oposto ao de Audrey Purval e seus identitários. Título da entrevista: “Um Antirracismo Enlouquecido que Reproduz o que Pensa Combater”.
Para ele, Audrey se plantou ao campo dos racialistas celerados, “sintoma de um fenômeno mais amplo, ao fim do qual poderá aparecer uma justificação do apartheid em nome do antirracismo”. E Bruckner sabe onde bater. Lembra que, no século 20, as organizações antirracistas cultivavam um ideal universalista e combatiam toda e qualquer forma de segregação, ao passo que as novas associações étnicas se guiam por uma ideia fixa, uma tremenda obsessão, que é a de “denunciar os culpados” – os homens brancos e as mulheres brancas. “Desse ponto de vista, nascer branco é nascer já com uma tremenda folha corrida e nascer não branco é nascer com um passaporte de eterna vítima”, diz Bruckner.
No primeiro caso, a pessoa é culpada pelo simples fato de existir – no segundo, pode obter vantagens eternas apenas em consequência do seu estatuto de vítima. Trata-se de um neorracismo disfarçado de antirracismo. Claro: a luta contra o racismo não deve ser confundida com uma acusação permanente contra o contingente branco da população – agir assim é promover um novo racismo em nome do antirracismo.
Este é um grande problema da esquerda hoje. Bruckner concorda com os analistas e observadores que afirmam que a esquerda se perdeu depois do colapso da antiga União Soviética e da queda do Muro de Berlim. “A raça, o gênero, a identidade se tornaram as bases de uma ideologia nascida nos Estados Unidos, que pretende substituir o socialismo em crise”.
Para quem acredita que tem nas mãos a maquete da sociedade perfeita e o destino futuro da humanidade, a discussão política perde o sentido. Torna-se uma pedra no caminho da felicidade da espécie humana. Daí que os fiéis de qualquer religião política tratem de expulsar do palco qualquer crítico de seus dogmas. Quando não conseguem expelir os recalcitrantes, investem com tudo para desqualificá-los, através de variados expedientes.
Um desses expedientes de desqualificação do adversário é tratá-lo como racista e/ou fascista. Com isso, desincumbem-se de discutir os argumentos dissidentes e ainda procuram intimidar os críticos. O recurso é empregado com alta frequência tanto por militantes racialistas neonegros, quanto por militantes muçulmanos na Europa, como o ex-radical islâmico Maajid Nawaz nos ensinou. Outro golpe baixo está numa acusação autoritária que se pretende virtuosa: “ao nos criticar, faz o jogo da direita”. Quem quer se escudar atrás disso, está a exigir que sejamos cúmplices de qualquer crime cometido “em nome do bem”.
Seria muito mais produtivo se a esquerda brasileira, hoje, se preocupasse com coisas mais sérias. Com seu provincianismo, por exemplo. Com a necessidade de participar das discussões ideológicas mundiais da esquerda. Porque o que vemos aqui, em variados graus de agressividade e esperteza, é o afã de neutralizar divergências ideológicas e uma militância que prima pela ignorância (e a rima, aqui, nada tem de casual). Militância sectária tão perdida, tão destrambelhada, que ainda vai acusar o arco íris de racismo, porque ele não aceita preto no pedaço de céu onde brilha.