quarta-feira, 25 de outubro de 2023

CALOTE NA CULTURA

 Calote e prazo de editais alimentam tensões entre artistas e a Secult do estado

Produtores criticam falhas em sistema de inscrições; elenco denuncia atraso de cachês

·         Jairo Costa Jr.

jairo.junior@redebahia.com.br

Salvador

 Jerônimo lança editais após atraso; na reta final, produtores cobram prorrogação do prazo por gargalos no processo. Crédito: Mateus Pereira/GOVBA

O clima entre a classe artística e a Secretaria Estadual da Cultura (Secult), que já era marcada por turbulências por causa de críticas relativas à paralisia de quase todos os segmentos culturais desde que o jornalista gaúcho Bruno Monteiro assumiu a pasta em janeiro deste ano, ganhou ares de revolta ontem. O estopim tem origem em dois episódios: os problemas que ameaçam a concretização de dezenas de propostas abarcadas pela Lei Paulo Gustavo na Bahia e o atraso no pagamento ao elenco escalado para encenar a Ópera da Independência, que fez parte das comemorações pelos 200 anos do 2 de Julho.

Às vésperas do fim do prazo para cadastrar as propostas que concorrem ao bolo de R$ 148 milhões destinados pelo Ministério da Cultura (MinC) para financiar projetos no estado por meio da nova lei, o Fórum Permanente de Audiovisual da Bahia, formado por 12 entidades do segmento, divulgaram carta aberta dirigida ao chefe da Secult, na qual pediam uma reunião emergencial com objetivo de discutir a possibilidade de prorrogar o cronograma referente às inscrições, cujo encerramento estava previsto para amanhã. O tom do comunicado não deixava dúvidas sobre o grau de tensão.

"Tendo em vista a relevância desses recursos para o setor de audiovisual em nosso estado, bem como a série de conversas que circulam nas redes sociais indicando possíveis descontentamentos e ações privadas, visando judicialização, consideramos imperativo o estabelecimento de um diálogo franco e aberto entre os representantes das entidades de audiovisual da Bahia e a Secretaria de Cultura do Estado", destaca um trecho da carta, em que foi sinalizada a disposição questionar judicialmente os editais.

"Desde o início houve uma série de problemas relativos aos editais de Lei Paulo Gustavo. Para começar, o sistema Prosas (usado para cadastrar as propostas de forma online) deveria estar disponível na manhã do dia 26 de setembro, mas só entrou em operação no fim da tarde. Com isso, perdemos praticamente um dia. O processo todo também foi caracterizado por inúmeras informações desencontradas, seja em relação a documentos ou à forma de tributação, entre muitos outros exemplos", destaca Carollini Assis, que está à frente da Associação de Autores Roteiristas da Bahia (Autorais), uma das entidades signatárias da carta.

"Os editais geraram muita confusão. Tanto os formulários da lei disponibilizados pela Secult quanto os do sistema Prosas traziam dúvidas e informações que se chocavam. Alguns reparos foram feitos, mas demorou bastante para que isso ocorresse. Por exemplo, os conflitos de dados relativos às declarações sobre gênero e raça, entre muitos outros. Os encontros para resolver esses desencontros demoraram bastante para acontecer. Resolver questões burocráticas sobre qual a documentação era realmente correta atrasou demais a montagem das propostas", afirmou Marcello Benedictis, presidente da Associação de Produtores e Cineastas da Bahia (APC), que também integra o fórum.

As tensões que envolvem a reta final para inscrição de propostas na Lei Paulo Gustavo têm como pano de fundo a demora da Secult para consolidar os dispositivos referentes à divisão dos recursos. Embora a Bahia tenha sido um dos primeiros estados a receber a transferência de recursos MinC destinados a estimular a produção artística e cultural, grande parte voltada ao segmento audiovisual, a secretaria levou quase quatro três meses para abrir o processo de seleção. Mais precisamente, o montante entrou na conta corrente da pasta no início de junho. Entretanto, somente no fim de setembro os editais foram lançados.

"Tivemos muito pouco tempo para cuidar da documentação, esclarecer informações desencontradas e cuidar do conteúdo dos projetos. Só para se ter ideia, criaram um núcleo de atendimento presencial para atender quem tivesse dúvidas. Mas as informações divergiam daquelas que nos eram enviadas por email", acrescentou Carollini Assis, da Autorais. "Se o audiovisual, que possui bastante expertise em editais, enfrenta dificuldades enormes, imagina os demais segmentos culturais, que não têm a experiência que carregamos", emendou Benedictis, da APC.

Após a divulgação da carta, representantes das associações ligadas ao audiovisual baiano se reuniram com dirigentes da Secult para discutir a possibilidade de prorrogar o prazo de inscrições. Ao final da conversa, foi firmado um acordo de submeter a proposta de adiar a data ao crivo do governador Jerônimo Rodrigues (PT), que deve anunciar o veredito na manhã de hoje. A expectativa é de uma resposta positiva, embora a percepção entre as entidades do fórum é de que inúmeros projetos não terão espaço no pacote de recursos.

Elenco de peça reclama de atraso e silêncio sobre pagamento

Enquanto o segmento de audiovisual batalhava para tentar esticar o prazo de inscrições de propostas, outro episódio esquentava de vez o clima de revolta da classe artística contra a Secult. No caso, a denúncia de calote feita pela equipe de cantoras e cantores, atrizes e atores, bailarinos, músicos, diretores, assistentes e técnicos contratada para encenar a Ópera da Independência, espetáculo realizado pelo governo do estado, através da pasta de Cultura, como parte das homenagens pelo Bicentenário do 2 de julho. Mais de três meses depois de concluído o trabalho, os cachês ainda não foram pagos.

Sucesso de público e crítica, a ópera foi apresentada em 21 e 22 de julho na Concha Acústica do Teatro Castro Alves (TCA). Na plateia, estavam Jerônimo Rodrigues, o chefe da Secult, Bruno Monteiro, e diversas autoridades do primeiro e segundo escalões do governo estadual. Desde então, o elenco aguarda uma resposta sobre quando os valores serão repassados, mas só encontraram silêncio e indiferença. "Mesmo com todo esforço para montar a peça em apenas 20 dias, jamais nos foi informado quando receberemos os cachês. É total falta de respeito. Muito triste, após quase 40 anos de carreira, se sentir invisibilizada dessa forma", desabafou a atriz Márcia Andrade, que interpretou Joana Angélica.

A responsabilidade pela montagem do espetáculo ficou a cargo da empresa do produtor Dody Só. Segundo integrantes do elenco, ele alegou que já teria enviado toda a documentação exigida para efetuar o repasse pelos serviços prestados. É aí que o episódio entra em um limbo mal explicado. Apesar de concebido sob o guarda-chuva da Secult, a Dody Só Produções apontou, conforme a denúncia encaminhada ao CORREIO, a Superintendência de Fomento ao Turismo (Sufotur) como fonte de pagamento pela ópera, que reuniu um grupo de artistas renomados.

A lista inclui o cantor e compositor Gerônimo na direção musical, os atores Bárbara Borgga, Evelin Buchegger, Carlos Betão, Diogo Lopes e Marcelo Flores, além do coreógrafo Jorge Silva, que escalou 15 integrantes da companhia de dança tocada por ele para participar da ópera. "Eu me sinto muito, muito triste. Tudo que fizemos foi na coragem, na confiança e na fé. É uma situação delicada, porque chamei os bailarinos que trabalham comigo para participar desse trabalho", salientou Jorge Silva.

"Estamos nos sentindo muito desconsiderados e desprestigiados no exercício da nossa profissão, porque são todos atores e atrizes experientes, pessoas com 30 anos ou mais de carreira. Entregamos um trabalho de excelência dentro de um tempo curto e com orçamento apertado. Ficamos desalentados com essa ausência de resposta, de posicionamento por parte do governo, que foi o realizador. Não deixa de ser um descrédito com o teatro baiano", disse Marcelo Flores. "A sensação é de ter sido violado, agredido. E não temos a quem recorrer nesse momento", lamentou Aglei, que atuou como assistente de direção e diretor de produção da ópera.

O incômodo do elenco do espetáculo em relação ao silêncio da Secult é partilhado também pela reportagem. Ao longo da tarde do ontem, a assessoria do órgão foi contactada para se posicionar em relação às queixas de produtores relacionadas aos entraves dos editais da Lei Paulo Gustavo e ao calote no pagamento dos cachês à equipe convocada para concretizar a Ópera da Independência. Mas, assim como todos, não ouviu ou recebeu uma palavra sequer da secretaria.

 

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