JORNAL METROPOLE
Muralhas à beira mar: Prédios de até 21 andares na orla de Salvador prejudicam lazer e bem-estar da cidade
Enquanto ambientalistas e banhistas protestam contra a construção de grandes empreendimentos na orla de Salvador, a gestão municipal e o mercado imobiliário enxergam o movimento como faturamento a mais
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 26 de outubro de 2023
Uma praia sem sol. Um mar sem balneabilidade. E paisagens exuberantes cobertas por grandes prédios pé na areia. É esse o risco que corre Salvador. O caso de Balneário Camboriú - cidade catarinense que, após ter a orla rodeada por gigantescos prédios, precisou passar por uma megaoperação de alargamento da praia parece não ter sido uma lição suficiente. A verticalização da orla soteropolitana ainda é uma discussão. O debate já passou por municípios como Natal, João Pessoa e tantos outros, mas na capital baiana ele ainda persiste, e pior: já é uma realidade. Ondina, Rio Vermelho e Stella Maris veem grandes espigões se aproveitando de brechas da lei para erguerem-se à beira-mar.
A orla de Salvador não é só o lazer mais democrático para moradores e turistas, é também bem-estar para o restante da cidade e fonte de renda para centenas de famílias. Os especialistas e ambientalistas são unânimes: o debate sobre a verticalização não é sobre o aspecto visual, cobrindo a paisagem das praias mais cobiçadas do país. Esses grandes prédios na orla podem trazer prejuízos aos corredores de ventilação, deixando o interior da cidade mais quente, e ainda causar o famoso sombreamento na areia, que traz como consequência a diminuição da chamada balneabilidade (capacidade de uso da praia para banho e atividades).
Quem ainda assim defende a verticalização da orla como desenvolvimento urbano não consegue explicar o motivo desses projetos não chegarem a bairros menos povoados, como Armação. Os espigões têm seus lugares já definidos, são os endereços mais famosos da cidade. Ondina - um dos metros quadrados mais caros do estado -, Rio Vermelho - conhecido nacionalmente por sua boemia - e Stella Maris - o mais povoado e conhecido da região norte da capital.
O guia para essas escolhas é um só: o lucro. E não apenas para o mercado imobiliário, novo dono da cidade. A gestão municipal também enxerga essas construções como algo positivo. E a lógica é assumidamente a financeira. Afinal, essas torres vão substituir casas e terrenos vazios por diversos apartamentos em localizações privilegiadas da cidade. Pode haver consequências na balneabilidade, na geração de renda e até no bem-estar do restante da cidade, mas nada disso parece frear o vislumbre dos IPTUs multiplicados.
Foto: metropress/Filipe Luiz
Espigões pé na areia
Com uma curta faixa de areia e um mar nada calmo, a Praia do Buracão, no Rio Vermelho, está na iminência de ser invadida por três torres residenciais de 18 andares cada uma. Os terrenos já foram vendidos por cerca de R$ 16 milhões e moradores contam que chegaram a receber funcionários da OR Empreendimentos, incorporadora do grupo Odebrecht, pedindo autorização para fazer as medidas da região. Desde então, a tranquilidade de comerciantes, moradores e banhistas foi embora. Eles se uniram no movimento “SOS Buracão” para denunciar o risco de sombreamento da praia e a consequente proliferação de bactérias que são controladas pela luz do sol.
Já na Alameda Guaratuba, na orla de Stella Maris, são oito invasores: torres com 15 andares cada uma. Da noite para o dia, moradores acordaram com retroescavadeiras e outros equipamentos ocupando o terreno, sem sequer placas com as devidas licenças. De lá para cá, as obras já devastaram uma área de vegetação nativa, mas, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), houve licença ambiental para isso. A região, no entanto, é a mesma onde há relatos de animais silvestres fugindo para dentro dos condomínios e tartarugas marinhas que saem da areia em direção ao calçadão atraídas pela luz dos edifícios.
Em Ondina outra muralha, desta vez já completamente erguida e vendida. Quem passa por ali logo percebe que tem algo fora de ordem, os espigões chegam a destoar da vizinhança. São três prédios da construtora Moura Dubeux, com 17 e 21 andares, dentro do circuito do Carnaval, em uma região onde teoricamente o máximo permitido é algo em torno de 11 e 12 andares. Para superar a altura limite, a construtora se comprometeu a reformar o acesso à praia e a rua lateral ao empreendimento, um total R$ 2,8 milhões em contrapartida ao município, o que corresponde a exatamente o preço atual de apenas uma das unidades das três torres.
Plano de venda
As licenças do empreendimento chegaram a ser entregues em um evento com pompas e tudo pelo então prefeito ACM Neto em 2019. A Moura Dubeux já havia anunciado que o projeto para substituir o prédio do Salvador Praia Hotel desde 2012. Mas só começou a investir mesmo após a assinatura do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador de 2016 e a atualização da Lei de Ordenamento e Uso e Ocupação do Solo (Louos), aprovada em 2017. Foram justamente dois artigos desses novos textosque permitiram que o empreendimento fosse erguido, ao autorizar construções a superarem em 50% o limite de altura dos prédios na orla, quando estes forem construídos em substituição a imóveis deteriorados. Era o caso do hotel, pelo menos segundo o que apontou a prefeitura.
Diretor do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-BA), Daniel Colina classifica essa verticalização da orla como um produto do PDDU e da Louos. Ele traz ainda mais um argumento contra aqueles que classificam o movimento como progresso, ao lembrar que, na época, as mudanças nesses textos vieram sob a justificativa de que a cidade poderia perder milhares de habitantes caso não houvesse esse “desenvolvimento urbano”. “Mas hoje, sete anos depois, continuamos com três milhões de habitantes”, pontua o diretor do IAB-BA.
“Tudo bem, é preciso abrir espaço para o mercado imobiliário, é um setor importante, gera emprego, mas as coisas têm que ser debatidas como manda a lei, porque tem lei para isso”, afirmou o ao Jornal Metropole.
Mas nem todos estão dispostos a esse debate. A Ordem dos Advogados (OAB-BA), por exemplo, foi convidada pelo IAB para discutir o PDDU, mas até agora não deu retorno. O Ministério Público também tem sido alvo de reclamações e acusações de inércia por parte dos moradores. O fato é que o Plano Diretor está chegando perto dos oito anos, dado como prazo limite para sua revisão. O prefeito Bruno Reis, inclusive, já autorizou a criação de um Grupo de Trabalho para discutir o assunto, mas, entre entidades que deveriam representar os interesses da cidade, existem também muralhas de desinteresse.
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