segunda-feira, 30 de outubro de 2023

DE GIL VICENTE TAVARES

 Os SESCs de São Paulo e os jegues do Bonfim

Entrar numa das instalações do SESC é adentrar um espaço onde arquitetura diferenciada e aparato técnico fazem desses centros lugares de excelência artística


Publicado em 30/10/2023 

Estava eu dando uma passada de olho nas redes sociais, e me deparei com a inauguração de mais um SESC, em São Paulo, o 14 Bis.

A 25ª unidade na cidade de São Paulo foi aberta mantendo um alto padrão de arquitetura, estrutura técnica e programação.

O prédio escolhido foi o do antigo Fecomércio, seguindo uma tradição de requalificação de espaços antigos, abandonados ou sem condições de uso e manutenção, como já havia acontecido, recentemente, com o SESC 24 de Maio, construído no antigo prédio da Mesbla.

Esse, da 24 de maio, inclusive, contou com projeto arquitetônico de Paulo Mendes da Rocha, e foi um de seus últimos projetos.

Para quem não sabe, o arquiteto capixaba seguiu sendo o único brasileiro, além de Oscar Niemeyer, a ser laureado com o Prêmio Pritzker (considerado o Nobel da arquitetura) e com a Medalha de Ouro do RIBA.

Entrar numa das instalações do SESC é adentrar um espaço onde arquitetura diferenciada, opções culturais e aparato técnico fazem desses centros de cultura lugares de excelência artística, sempre com programações das mais variadas e parte considerável do melhor das artes visuais, cênicas, tradicionais e outras mais.

Claro que nada é perfeito, sempre que vou a São Paulo ouço uma crítica aqui, outra acolá, e alguns me dizem que não acompanho o dia-a-dia para saber dos supostos problemas.

Acredito.

No entanto, não é à toa que faziam a provocação de que Danilo Santos de Miranda, diretor do SESC São Paulo, era um ministro paralelo da cultura. Danilo, que nos deixou ontem, aos 80 anos, fez um trabalho revolucionário, excelente, mas ele mesmo ria dessa alcunha, sabendo que sua gestão era circunscrita ao Estado de São Paulo (mesmo que ele levasse o Brasil todo para suas unidades), e claro que por mais incrível que sejam os SESCs de lá, é somente para quem vive ou está na capital paulista, e nas cidades do interior onde o SESC atua.

É clara minha admiração pelo que representa o SESC para a cidade de São Paulo, por exemplo, mas confesso que quando vi o vídeo promocional sobre o 14 Bis, o que me bateu foi um incômodo profundo.

Sei que há muita grana por trás das ações do SESC São Paulo. É tudo grandioso, com programações nacionais e internacionais incríveis, boa remuneração de artistas, projetos arquitetônicos sofisticados, equipamentos de alto nível, estrutura técnica de alto padrão; tudo isso custa muito dinheiro.

Mas qual o meu incômodo?

Imediatamente, comecei a pensar em nossos espaços culturais da Prefeitura de Salvador e do Governo da Bahia.

Talvez não no mesmo ritmo, e nem na mesma quantidade, mas era para ambas instâncias estarem, como o SESC, fazendo sofisticadas reformas, e notáveis inaugurações de espaços culturais por Salvador e pela Bahia afora. Fosse de 5 em 5, ou de 10 em 10 anos, mas era para seguirmos colecionando novos espaços culturais, e tendo nossos antigos espaços sempre renovados, reequipados e reestruturados.

Já escrevi seguidamente sobre a responsabilidade das prefeituras do interior do Estado, que em sua esmagadora maioria sequer tem, ou cuida de seus teatros, centros culturais e afins. Quanto ao Estado, os centros de cultura espalhados pelo interior estão quase todos sucateados ou com problemas graves estruturais, equipamentos obsoletos, e, em vez de celebrarmos novas construções contemplando mais territórios de identidade, ficamos na expectativa de que ao menos os que existam tenham um mínimo de estrutura digna para um espaço de artes em pleno século XXI.


Em Salvador, o complexo da Biblioteca Pública dos Barris deveria, ao menos, se equiparar a um SESC paulistano, em termos de estrutura e funcionamento, já que conta com teatro, cinema e galeria, para além da própria biblioteca e do que se chama quadrilátero dos barris, uma estrutura central da edificação para apresentações. No entanto, está tudo decadente, depauperado.


O Cineteatro Solar Boa Vista nem é mais tido como alternativa de espaço viável a apresentações, e era para ser um oásis em Brotas, com uma praça e um casarão, onde Castro Alves morou, que, reformados, seriam destino certo de boa parte da população de um bairro extremamente populoso, e de vários acessos para pessoas de outros locais.

A reforma da Sala do Coro é uma exceção que confirma a regra, e a prometida reforma do Teatro Castro Alves que agora parece que vai acontecer, também. De resto, parece que é tudo remendo, arremedo, gambiarra e armengue.

Esses são só alguns exemplos do Estado.

Quanto à prefeitura, era para que a mesma já tivesse dezenas de teatros e espaços culturais espalhados por Salvador. Deveria assumir sua responsabilidade e seu protagonismo frente à produção artística da cidade.

No entanto, há décadas que os espaços seguem os mesmos. Ao menos, durante os últimos anos, os espaços Boca de Brasa passaram a invadir a periferia da cidade, e o anúncio de reforma do Vila Velha é uma das boas notícias recentes. Mas é assustador que, por exemplo, o Teatro Gregório de Mattos siga com problemas estruturais básicos, a começar pelos armengues super desconfortáveis que são as arquibancadas. O teatro que era para ser referência da prefeitura, disfarçando-se de seu teatro municipal, segue parecendo um galpão invadido por alguma trupe amadora que, à falta de recursos, “deu um jeito” no espaço. O Espaço Cultural da Barroquinha parece funcionar “como dá”, e essa mesma filosofia segue para diversos espaços públicos municipais e estaduais.

Pode ser problema de grana?

A prefeitura vem sistematicamente anunciando novos equipamentos sofisticados para a cidade. O Governo da Bahia vem dessa coisa da gestão passada, de “obra tamanho G”, para mostrar o tanto que está construindo de coisas grandiosas. Há verba, sim, sempre.

E, neste caso, tenho certeza que a culpa não recai, na maioria absoluta das vezes, nas costas dos gestores culturais envolvidos nestes equipamentos. Qual gestor não amaria uma reforma revolucionária, técnica, estrutural, tecnológica, arquitetônica, em seus teatros e centros culturais? Ou inaugurar novos, sofisticados e bem equipados espaços?

O problema, mesmo, é o desprezo que nossas mais altas instâncias públicas têm pelas artes.

Falo aqui apenas das estruturas físicas, porque sobre (falta de) políticas públicas para artes eu já cansei de falar.

Investimento pífio, falta de visão e de vontade, falta de gestores visionários e com pensamento sofisticado e sólido são problemas recorrentes há décadas. Agora, cada vez mais, há também a utilização das pastas da cultura como proselitismo para mostrar preocupações com inclusão e distribuição de renda, conseguindo o feito incrível de destruir com as artes profissionais, por um lado, e não distribuir e nem incluir ninguém efetivamente, do outro.

Assim, seguem desperdiçando verbas sem preocupação com técnica, qualidade, currículo, paradoxalmente numa terra com credenciais para ser uma referência nacional na formação de profissionais em artes.

Seguimos inscrevendo projetos como se estivéssemos nos cadastrando num Bolsa Família, para, na sorte de ser aprovados num sorteio sem critérios artísticos, depois correr atrás de raros espaços públicos desestruturados, conseguindo pautas curtas, com cada vez menos visibilidade.

Enquanto o SESC 14 Bis é mais um voo para as artes paulistanas, seguimos aqui parecendo jegues na Lavagem do Bonfim; expostos ao sol, maltratados, e carregando nossas carroças cheias de arte; buscando coragem para subir alguma colina que nos dê uma mínima visão da nossa terra devastada.

Gil Vicente Tavares

 

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