Desembargador
afastado por soltar líder do BDM também soltou maior concorrente de Ravengar
À época, Luiz Fernando Lima foi afastado, acusado de contrariar as ações
de combate ao tráfico de drogas em Salvador
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Bruno Wendel
bruno.cardoso@redebahia.com.br
Publicado em 06/11/2023
Gilson Santos, Romilson Raimundo e Joel Bonfim, principal concorrente de "Ravengar". Crédito: Almiro Lopes/Arquivo Correio
Quando o desembargador Luís Fernando Lima soltou, em outubro deste ano, o traficante Ednaldo Freire Ferreira, o Dadá, liderança do Bonde do Maluco (BDM), acabou fazendo uma releitura de 2004, quando libertou Joel Bonfim Santos, considerado o maior concorrente de “Ravengar”, líder do tráfico de drogas de Salvador, na ocasião. Assim como na decisão recente, há 19 anos ele não era o juiz natural da causa e, mesmo assim, tirou da prisão Joel e cinco comparsas, que tinham sido capturados pela Polícia Federal com mais de 21 kg de cocaína – todo o pó seria vendido no Carnaval daquele ano. Com os traficantes, a PF apreendeu também R$ 100 mil e um caderno contendo nomes beneficiados com pagamentos, inclusive policiais.
À época, o Ministério Público da
Bahia (MPBA) acusou Luís Fernando Lima de obstruir o andamento de processos
contra grandes traficantes na capital. O CORREIO teve acesso à ação e constatou
o sumiço do alvará e a decisão de soltura, bem como a ausência de qualquer
documento assinado pelo magistrado em relação aos réus.
Em 2004, a configuração do tráfico de entorpecentes era outra coisa. As primeiras facções locais, a Caveira e o Comando da Paz (CP), estavam em formação dentro do Complexo Penitenciário da Mata, enquanto fora dos muros, a soberania era de Raimundo Alves, o “Ravengar”, constantemente ameaçado por Joel, que trazia cocaína do Mato Grosso do Sul para vender ao mercado varejista da Cidade Baixa, Centro e Mussurunga.
Desembargador que "liberou" traficante já tinha
sido afastado pelo mesmo motivo
Nas primeiras horas do dia 02 de
fevereiro, a PF deu início à operação “Elevador Lacerda”, em referência ao
local onde com mais frequência era comercializada a cocaína. Os mandados de
prisão temporária foram expedidos pela 2ª Vara de Tóxicos de Salvador e o
primeiro a ser localizado foi Joel, na época com 40 anos. Ele estava em casa,
no bairro do Bonfim, e levou os agentes ao paradeiro de dois dos seus braços
fortes: Romilson Raimundo de Souza, 34, e Gilson Santos Silva, 54, o “Gil”.
Em seguida, os federais estouram dois
depósitos do grupo no bairro da Fazenda Grande do Retiro, respaldados em
mandados de busca e apreensão, onde encontraram 21,3 kg da droga em pasta,
recém-chegada para abastecer consumidores durante o Carnaval, além dos R$ 100
mil, US$ 312, balanças de precisão, armas e munições.
A PF conseguiu provas da liderança de
Joel, que atuava como traficante desde 2000 – ele recebia entre 20kg a 25kg de
cocaína a cada 15 dias –, do papel do cunhado dele, Romilson, responsável pelo
transporte dos depósitos para os pontos da cidade, e do primo dele, Gilson,
que, como taxista, fazia a distribuição com maior facilidade. Ainda no mesmo
dia, foram também presos Geovani Santos Gonçalves, conhecido como “Geo”, e José
Alessandro Bezerra Flor, apelidado de “Sandro”.
Na continuidade da apuração, a PF
chegou ao nome de Djalma dos Santos, o “DJ” ou o “Coroa”, que foi apontado como
um grande comerciante de entorpecentes no bairro de Mussurunga. Ele também teve
prisão decretada, mas não foi localizado.
Foram oito meses de investigação, sob
o comando do delegado Orlando Azevedo, titular da Delegacia de Tóxicos e
Entorpecentes da PF. Em 04 de dezembro de 2003, os agentes chegaram ao o
sul-mato-grossense Ânderson Gomes Alvarenga, responsável por trazer a cocaína
de Campo Grande (MS). Ele era a pessoa de confiança da traficante Berenice
Castro Soares, que enviava a droga para a Bahia – ela também foi presa. Os
agentes encontraram diversos recibos de depósitos bancários realizados por Joel
em favor de Ânderson.
Em março de 2004, o MPBA denunciou
por tráfico de drogas, formação de quadrilha e porte ilegal de arma Joel,
Romilson, Gilson, Geovani, José Alessandro e Djalma, que já tinha sido preso
pela PF numa outra operação e foi processado por tráfico de entorpecentes,
formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Ainda de acordo com o MPBA, além de
ser um dos maiores fornecedores de cocaína em Salvador, Joel também atuava no
tráfico de crack, subproduto da cocaína, chegando a comercializar 250 a 300
gramas por dia. Com alto grau de intoxicação, tornando uma pessoa dependente em
uma semana, a droga era vendida preferencialmente para a clientela de camadas
mais baixas da população, em razão do preço mais acessível, funcionando muitas
vezes como moeda de troca por produtos de pequenos furtos diários por crianças
e jovens no Centro de Salvador. Uma caderneta contendo parte da movimentação da
organização foi apreendida na operação. Entre as anotações, estavam pagamentos
feitos a policiais militares, que foram investigados na ocasião.
Soltura
No entanto, sete meses depois, todos
os presos da operação já estavam soltos, por decisão de Luís Fernando Lima. A
maioria saiu no dia 03 de setembro, após Lima determinar o relaxamento da
reclusão – é a situação em que a prisão é ilegal ou se torna ilegal, por alguma
razão. E ainda sem apresentar motivos considerados plausíveis pela promotora
Ana Rita Nascimento, representante do MPBA na Vara, o juiz revogou a prisão de
Djalma, que estava na condição de foragido, quando ele compareceu para
audiência no dia 31 de agosto de 2004. “Ele se apresentou à 2ª Vara de Tóxicos
juntamente no dia que precisei me ausentar”, alfinetou a promotora, à época, em
entrevista ao CORREIO.
Titular da 6ª Vara Crime, Luís
Fernando Lima substituía o titular da 2ª Vara de Tóxicos Antônio Roberto
Gonçalves que, antes de entrar em licença em julho, havia decretado as prisões
preventivas dos traficantes em 29 de março daquele mesmo ano. “Eu estava usando
os 87 dias que a lei me dá direito para marcar a oitiva dos acusados”, se
defendeu Gonçalves, em declaração dada à época à reportagem.
Por fim, naquele momento, Gonçalves
evitou comentar a postura de Lima, mas disse que negou todos os pedidos de
relaxamento de prisão dos acusados, solicitados pelos advogados, sob alegação
de excesso de prazo.
Afastamento
Após o MPBA recorrer das decisões, o
então juiz Luiz Fernando Lima foi afastado da função de substituto da 2ª Vara
de Tóxicos e Entorpecentes no dia 17 de setembro pelo próprio Tribunal de
Justiça da Bahia (TJBA). À época, a promotora Ana Rita Nascimento comunicou o
fato ao procurador Geral da Justiça, Achiles Siquara Filho, exigindo medidas
capazes de corrigir as distorções, “no intuito de que o processo seja julgado
com mais celeridade e seriedade”.
Ainda na ocasião, Ana Rita Nascimento
disse que a postura adotada por Luiz Fernando Lima contrariou frontalmente
ações de combate ao tráfico de drogas em Salvador. No dia 01 deste mês, o MPBA
informou que “ofereceu a denúncia e sustentou a condenação dos réus, que foram
condenados em 2009”. “Atualmente, há recursos da defesa pendentes de
apresentação das razões perante o Tribunal de Justiça”, diz nota enviada ao
CORREIO.
Onde foram parar o alvará e a decisão
de soltura?
O CORREIO teve acesso ao processo da
operação “Elevador Lacerda”. O formato digital conta com 1.296 páginas, mas
deveria contar mais. Isso porque a decisão da soltura, onde o magistrado
fundamenta o porquê deliberação, e o alvará, que determina o cumprimento da
sentença, que foram emitidos pelo desembargador quando juiz, não estão nos
autos. Mas não é só isso. Não há qualquer documento assinado por Luiz Fernando
Lima durante o período em que ele foi substituto da 2ª Vara de Tóxicos e
Entorpecentes entre julho e setembro de 2004. A única menção à polêmica saída
dos traficantes está em um agravo de instrumento (é uma forma de recurso
utilizada para contestar decisões tomadas durante um processo judicial ) de 20
de março de 2006, assinado por Rodrigo Medeiros Sales, juiz substituto da Vara.
Entre os réus, dois já estão mortos.
Um deles é Joel. De acordo com a certidão de óbito, em 17 de maio de 2008, o
líder da organização deu entrada no 8º Centro de Saúde, em São Caetano, onde
faleceu de causa indeterminada. Uma semana depois, Geovani, foi encontrado no
Viaduto de Valéria. Segundo o atestado de óbito, o primo de Joel apresentava
“traumatismo cranioencefálico, feridas perfuro contusas”.
Desde a soltura dos criminosos, o
MPBA tentou manda-los de volta à prisão, mas a defesa recorreu a todas as
possibilidades no TJBA e, em agosto de 2021, a desembargadora Ivone Bessa Ramos
decidiu que Romilson, Gilson, José Alessandro e Djalma respondessem em
liberdade pelo crime de tráfico, já que as outras duas acusações, porte ilegal
de arma e formação de quadrilha, sofreram prescrição, ou seja, quando o Estado
perde o direito de punir o autor de um crime pelo seu ato, pois não houve o
exercício da ação judicial dentro do prazo legal estipulado por lei.
O nome do criminalista Abdon Antônio
Abbade dos Reis consta em vários momentos do processo como o principal advogado
dos réus. No último dia 25, ao ser questionado sobre a decisão polêmica de Luiz
Fernando Lima em setembro 2004, ele disse ao CORREIO que não lembra dos
detalhes da ação. “Eu não vou falar nada que eu não me recordo, até porque,
dois já morreram e os outros, não tenho contato há bastante tempo”, disse,
apesar de seu nome constar como advogado na decisão de Ivone Bessa em 2021.
Perguntado se tem contato com Luiz Fernando Lima, ele respondeu: “Quem é que
não conhece doutor Luís Fernando? Mas eu não posso dizer de quem foi a decisão
na época”.
Famoso criminalista, Abdon Abbade foi
um dos advogados presos em 2008, acusado de envolvimento no esquema de venda de
sentenças no TJBA, durante a Operação Janus – uma ação conjunta do MPBA e a
Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSPBA). Ele e outros seis , entre os
quais o seu sócio, Cláudio Braga Mota, foram investigados em sigilo durante um
ano por supostamente cometerem atos de corrupção, suborno, tráfico de
influência e de prestígio. Logo depois, todos tiveram pedido de habeas corpus
acatado e liberados pelo TJBA. Em relação à Operação Janus, o MPBA respondeu
apenas que o processo corre na Justiça.
De novo, desembargador?
Luiz Fernando Lima foi promovido a
desembargador em julho de 2017, pelo critério de antiguidade – ele graduou-se
em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) em 1976 e ingressou na
magistratura em 1982. Atuou nas comarcas de Casa Nova, Juazeiro e Lauro de
Freitas, sendo sua vinda à Comarca de Salvador em 1992.
Em outubro deste ano, Lima foi
afastado cautelarmente por conceder prisão domiciliar a Ednaldo Freire
Ferreira, o “Dadá”, e apontado como um dos fundadores da facção Bonde do Maluco
(BDM), durante o plantão judiciário. A sentença foi unânime após a 15ª Reunião
Ordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na votação, o ministro Luís
Felipe Salomão levantou a suspeita de que Lima alterou a própria idade para
conseguir a aposentadoria.
O pedido de prisão domiciliar foi
apresentado pela defesa de “Dadá”, que alegou que o filho autista do cliente
tem "crises de convulsão em razão da desregulação emocional causada pela ausência
da figura paterna". A ação de Lima, que beneficiou o traficante, foi
durante o plantão judiciário do dia 1º de outubro.
O curioso é que durante a reunião, o
Ministro Corregedor também recebeu um material do TJBA informando que o
desembargador Luiz Fernando Lima, na semana anterior a liminar concedida a
“Dadá”, negou a liberdade de outro réu para o tratamento de um filho com
necessidades especiais, alegando que era um caso para ser apreciado em plantão
judicial.
A decisão a favor de “Dadá” chegou a
ser revogada pelo desembargador Julio Travessa, da 2ª Câmara Crime 1ª Turma, a
pedido do MPBA, mas o líder do BDM não foi mais encontrado e é considerado
foragido.
O MPBA questionou a decisão de Lima,
“haja vista que não se verifica a crucial urgência da medida pleiteada, a
merecer atendimento imediato e extraordinário”. O órgão estadual ressaltou
também que o preso não é o único responsável pelos cuidados especiais do filho,
e que não há comprovação de que ele seja fundamental para o desenvolvimento do
menor.
O que dizem o CNJ, TJBA e o
desembargador
O CORREIO perguntou se o CNJ tem
conhecimento do afastamento de Luiz Fernando Lima em 2004, sobre o sumiço do
alvará e da decisão de soltura do processo que apura a operação “Elevador
Lacerda” e como está o andamento da reclamação disciplinar aberta pelo próprio
CNJ em relação à concessão de prisão domiciliar pelo desembargador à liderança
do BDM e a suspeita de que o magistrado alterou a própria idade para conseguir
a aposentadoria.
“O primeiro afastamento é de responsabilidade
do Tribunal de Justiça da Bahia. A atuação do CNJ se deu apenas este mês
(outubro), com o afastamento e a abertura de investigação pelo Plenário. No
momento, apenas a Reclamação Disciplinar 0006684-62.2023.2.00.0000 investiga o
ocorrido. O processo está em fase de instrução e, oportunamente, o relatório
será apresentado pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felpe
Salomão”, diz nota do CNJ.
A reportagem questionou ao TJBA sobre
o número de processos que existem na corte contra o desembargador Luiz Fernando
Lima, quais acusações e os resultados deles, em especial, se houve investigação
sobre a soltura dos traficantes presos pela PF e qual foi a justificativa dele
para determinar a liberdade dos criminosos. Foi perguntado ainda sobre o sumiço
dos documentos que deveriam constar no processo da operação Elevador Lacerda.
A todas as indagações, o TJBA deu uma
única resposta: “Toda a exposição dos fatos está no relatório e na
fundamentação do voto do Eminente Corregedor Geral de Justiça do CNJ, Ministro
Luis Felipe Salomão, conforme sessão do dia 17/10/23, presidida pelo Exmº
Ministro Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF)”.
CNJ votou por unanimidade pelo afastamento do
desembargador . Crédito: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agencia Brasil
O advogado do desembargador é custeado pela Associação dos Magistrados da Bahia (AMAB), que foi procurada pelo CORREIO. Em nota, disse que as questões que envolvem Luiz Fernando Lima “devem tramitar em sigiloso”. “O desembargador está empenhado em sua defesa técnica e focado em demonstrar que nada de errado foi feito por ele, o que apenas confirma uma vida pública ilibada de 40 anos. Por ora esse é o pronunciamento que a defesa, via AMAB, externa", diz nota da AMAB.
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