terça-feira, 13 de julho de 2021

EL MALECON


Cuba pode ser uma ilha, mas a Havana não tem praia. Em contrapartida ostenta belo e longo passeio bordado de um lado pelo mar, cujas ondas furiosas vêm bater contra os rochedos, do outro por edifícios elegantes e uniformes com arcada contínua. Na sua regularidade, o Malecón lembraria a parisiense rue de Rivoli. Poucos ou nada de espigões. É a característica que faz desta cidade uma das mais belas que conheço. Seria tão bom se nossos prefeitos tupiniquins obtusos e gananciosos entendessem algo de planejamento urbano, em vez de sempre pensar pornograficamente na própria carreira...

O reinado do Porquénotecallas, investindo no futuro, se encarregou de salvar o passado, cada província espanhola recuperando um quarteirão.

 

Gostoso é passear em fim de tarde, enfim aliviado do calor de maio, pela brisa doce e turquesa do Caribe. É também aqui o maior centro de prostituição cubano. Um romântico prostíbulo a céu aberto. Não dá para se enganar. Os jovens casais e grupos alegres agarram seu olhar com clara insistência enquanto fingem namorar. É preciso driblar a polícia. Elas são bonitas, muito produzidas, na relativa medida de suas posses, e os rapazes são uma amável mistura – criação exclusiva do regime castrista - de cafetão e miché. Pode escolher o cardápio. Só ela, ela e ele, ele sozinho...

A sus órdenes. Como le guste.

Uma jornalista estrangeira perguntou certa vez ao Comandante se lhe parecia normal que as estudantes fossem obrigadas a vender o corpo para pagar os estudos. El Barbudo respondeu cinicamente “Pero no, por lo contrário! Aqui, hasta las putas pueden estudiar!”

 

Estou com uma pontinha de fome. Sejamos sinceros: estou sempre com uma pontinha de fome! O velhinho passa naquele exato momento. Compro-lhe amendoim. Pacotinho embrulhado em folha de jornal. Só pode ser uma página do Granma. Como nada tenho de urgente a fazer, converso com o homem. Me surpreende a formulação das frases, a riqueza do vocabulário. Acaba confessando que é professor universitário de matemática aposentado. “Pero que voy hacer yo con once dólares por mês? Morrirme de hambre?”. Olho para ele. Devia ter uns vinte anos quando Fidel tomou o poder. Quantos sonhos, quantas esperanças loucas passaram nesta testa de adolescente, hoje cinzenta, barba malcuidada. Terno surrado, sapatos sem brilho. Adivinho o buraco na sola; na casa distante, a comida rala, sala miserável rodeada de livros poeirentos, luz parca.

Quanta injustiça nesta vida inútil...

 

Lá pelo fim do malecón, uma torre, construída por algum mafioso americano antes da revolução. Hotel de luxo primário tipo Hilton, onde cubano nenhum pode penetrar, mesmo a convite de algum hóspede. Do outro lado da rua, um supermercado. Aqui a proibição é outra: só entra quem puder pagar com dólares.

Apesar dos discursos inflamados contra o imperialismo ianque, o dólar é o verdadeiro Rei de Cuba. Entro para constatar que são muitos os cubanos abonados. Não, me explica a mexicana Glória Lopez, delegada geral da Unesco, estes têm parentes na Flórida que lhes mandam dinheiro para sobreviver. E haja whisky e conservas importadas!

Na sorveteria, duas filas. Uma longa, para quem paga alguns centavos da moeda local, outra, bem mais curta, para quem paga em dólares.

Numa praia “solo para cubanos” onde consegui penetrar após uma corrida memorável de táxi a fugir da policia, de repente, uma miragem! Parado perto dos banhistas, uma kombi com o imenso, inconfundível logo da Coca-Cola! Não posso acreditar. Meu companheiro informa sem demora que “No es americano, es uma licencia mexicana”. Ah! Lógico! Desculpe, não podia adivinhar.

Bem mais além do malecón, escondido entre mansões e jardins ainda conservados, sou convidado a penetrar num famosíssimo clube dos velhos tempos, tão exclusivo na época do ditador Fulgêncio Batista, que, por ser mulato, nem ele podia entrar. A anedota não me convence.

Os tempos mudaram. Viva la Revolucion Socialista!

Mudaram mesmo? Não vejo negro nenhum esparramado nas poltronas que rodeiam as piscinas. Em compensação, o companheiro de luva que vem me trazer o mojito é mestiço.

Á pouca distância, uma marina com belos veleiros vindos do mundo inteiro. Menos da vizinha Flòrida, of course. Mais um supermercado beirando Fauchon ou, no mínimo, nossa Perini.

Estamos em outro planeta.

Na véspera vi um velho na rua procurando comida na lixeira, hoje pela manhã uns meninos me pediram dinheiro para comprar comida e pude constatar que corriam para a padaria. Algo está podre no reinado de Fidel.

 

Deixarei Cuba emocionalmente desconectado, como se alguma lobotomia tivesse destruído parte de minha mente. Não consigo controlar o choro nervoso, infantil, que me perseguirá durante vários dias, mesmo após minha chegada a Salvador. Meus amigos mais próximos ficam calados.

Durante duas semanas fora testemunha da falência de uma política que se queria ideal, generosa e renovadora. Vi pobreza e medo. Medo de falar, de ler, de ir e vir, apesar de toda a salsa, merengue e bolero. Medo de um futuro sem futuro. Desesperança.

O mais angustiante é saber que este sonho, após se transformar em pesadelo, dará espaço à especulação e, de novo, às máfias do mundo inteiro.

Meio século perdido.

 

Dimitri Ganzelevitch                                             

Salvador, 12 de dezembro de 2007.

 

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