sábado, 31 de agosto de 2024

DO CAMPO DE OURIQUE A CASA DOS BICOS

 



Tinha prometido a Cecília, companheira desta viagem, leva-la até a casa onde Fernando Pessoa morou pelos seus últimos quinze anos, no bairro de Campo de Ourique.

O famoso bonde 28 – a esta hora sem pick-pocket -  nos deixou no jardim de Estrela, frente a Real Basílica. Ainda tivemos que enfrentar uma longa ladeira até chegar a sossegada, quase adormecida rua Coelho da Rocha. A fachada do 28 pouco se diferencia dos outros imóveis do final do século XIX que nunca ultrapassam quatro ou cinco andares. Não reparei se ainda existe “a Tabacaria do outro lado da rua.”

Além da fachada, da escada e de dois quartos, pouco quedou da arquitetura original. Museologia certeira, mas fria. Nenhuma tentativa de recriar algo do ambiente original.  A máquina de escrever exposta dentro de um caixão de acrílico pousado numa tábua no meio da parede. A cama, colocada num estrado que lhe tira toda intimidade. “Conquistamos todo o mundo antes de levantar da cama / Mas acordamos e ele é opaco”. Os 1300 livros, que, dizem, foram fartamente anotados, bem arrumados em estante distante do visitante. Existiria poeta sem emoção? Mais humana, uma longa mesa com muitas edições espalhadas da obra do Fernando Pessoa em várias línguas.

Como museólogos bem-intencionados podem desalmar até um poeta, e que poeta! Nem o café adjunto estava aberta, o que nos levou de volta a Baixa Pombalina e, mais além, até a renascentista Casa dos Bicos, cuja história cobre séculos de glórias e decadências que hoje abriga a prestigiosa Fundação José Saramago. Agora sim, a adaptação museológica convence o visitante mais exigente. Mas também é verdade que o ilustre português nunca aqui viveu. Nos três andares, vida e obra do famoso ribatejano são cuidadosamente arquivados.

Farta bibliografia, ampla documentação iconográfica, espaço para reuniões e conferências e uma boutique irresistível. Por estreita fresta, nos sentimos como indiscretos voyeurs ao observar uma reconstituição, talvez imaginária, do ambiente de trabalho do escritor em Lanzarote.

Aproveitei para comprar “Viagem a Portugal” onde o Prêmio Nobel começa por estradas vicinais, vilas e morros de Trás-os-Montes, ancestral província que fotografei detalhadamente nos anos 50 para um filme que nunca se realizou. E todos as fotos me foram roubadas. A viagem e seu relato terminarão neste mágico Algarve onde passei os melhores verões de minha juventude. Mergulharei na escrita de vocabulário rico, de frases poéticas, num português algo arcaico e sempre elegante.

Tínhamos notado uma oliveira centenária na pracinha da fundação. Cecília descobriu uma placa informando que debaixo desta árvore, trazida propositalmente de Azinhaga, terra natal do escritor, estavam enterradas suas cinzas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário