No Recife, mais um crime contra o patrimônio histórico
por Tânia Araujo — publicado 14/04/2017 00h27, última modificação 13/04/2017 18h46
Fachadas de casarões antigos do Recife perdem seu patrimônio secular – e não há leis que o protejam
A aguerrida Sylvia Tigre compara o antes e o depois (Rua dos Coelhos, Boa Vista)
Caminhar por ruas estreitas de bairros históricos na área central do Recife pode deixar passar – aos menos atentos – o rico acervo da azulejaria, ainda presente, na fachada das casas. Foi durante o século XIX que os azulejos saíram dos interiores para enfeitar e preservar os imóveis.
Os diversos padrões dos desenhos originam-se de países como Portugal e França. Todo esse tesouro, no entanto, está se acabando, seja pela ausência da atuação dos órgãos de preservação, sem leis específicas, seja pela falta de conhecimento da importância desse tipo de patrimônio pelos proprietários dos imóveis.
Há 15 anos, a arquiteta Sylvia Tigre percebeu o que já parecia evidente. Os azulejos de fachada estavam sendo dizimados pela descaracterização dos imóveis seculares, falta de manutenção, agressões aos imóveis, ou até mesmo por roubo das peças para venda em antiquários.
“Já encontrei muitos azulejos sendo vendidos e até colegas comprando para projetos pessoais”, diz a arquiteta. “Acho tudo isso um crime ao patrimônio e não é feito nada para evitar toda essa depredação, assim como não há incentivo ou campanhas para os proprietários entenderem o tesouro que eles têm em suas casas.”
Foi Olímpio Costa Júnior quem se ocupou de fazer o primeiro inventário do rico acervo de azulejos no Recife, em 1950. Em 1982, o português Antônio Menezes Cruz atualizou o documento e incluiu a vizinha Olinda, revelando as perdas já ocorridas em três décadas. E em 2002, a arquiteta Sylvia Tigre revisitou o trabalho deixado por Cruz e ampliou a pesquisa para 11 cidades, incluindo a Região Metropolitana, a Zona da Mata e o Agreste (e lugares com nomes emblemáticos como Bom Jardim, Vitória de Santo Antão, Paudalho e Brejo da Madre de Deus).
Sylvia lembra que, ao estudar o assunto, encontrou uma revelação do grande mestre da azulejaria luso-brasileira João Miguel dos Santos Simões. Ele disse que Pernambuco havia nacionalizado o azulejo. “Tem ideia do que isso significa? Nós tínhamos um patrimônio muito mais significativo do que cidades como Ouro Preto, em Minas Gerais, mas não tivemos aqui o mesmo cuidado para preservar”, critica ela.
O que diz a lei
1 Os bairros de Santo Antônio e São José, área central do Recife, estão dentro da Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH 10) e o Boa Vista, na ZEPH 08.
2 Sobre essas áreas incide a legislação de preservação do patrimônio cultural de acordo com a Lei n° 13.957/79 e o decreto de classificação de cada ZEPH.
3 Elementos como volumetria, implantação, forma e intensidade de ocupação do terreno devem ser respeitados para a manutenção da identidade de cada imóvel integrante do polígono preservado.
4 O revestimento de fachada azulejar, por exemplo, está inserido nesse rol, devendo ser mantido o mais próximo possível da composição original, de forma a manter a leitura e memória da área preservada.
Fonte: Prefeitura do Recife
E até hoje, 15 anos após o levantamento feito pela arquiteta, o estado de Pernambuco ainda não dispõe de uma legislação para preservar a riqueza dos desenhos que embelezaram as cidades nos últimos dois séculos. “Em São Luís, no Maranhão, a Polícia Federal chegou a fazer a segurança dos azulejos, que são um patrimônio das cidades, mas aqui só são preservados nos imóveis tombados”, lamenta.
Durante o período da ocupação holandesa em Pernambuco (1630-1654) foram construídas pontes, que permitiram o surgimento de povoações além da Ilha de Santo Antônio. O bairro Boa Vista teve, inicialmente, a ligação com o de Santo Antônio pela Rua Velha, uma via estreita de imóveis antigos, ocupados hoje por pontos de comércio.
A fachada dos imóveis é a menor das preocupações dos proprietários. Além da perda das peças que cobriam a alvenaria, as pichações também são comuns no casario. “É uma tristeza olhar a falta de cuidado. Já imaginou essa rua com as fachadas todas preservadas, que grande riqueza seria?”, reclama a arquiteta.
Tigre destaca duas casas conjugadas na Rua dos Coelhos, também no bairro Boa Vista, em frente ao prédio antigo do Hospital Dom Pedro II. Nessas duas casas ela conseguiu identificar um dos padrões mais raros registrados em sua pesquisa e que estampa uma das suas camisas promocionais. Das duas casas, apenas uma mantém o azulejo. A vizinha, pintada de branco, recebeu desenhos no lugar da azulejaria antiga. “O proprietário, com certeza, não tem conhecimento da riqueza que ele tinha aqui”, comentou Sylvia.
Aos 73 anos, a arquiteta tem disposição e memória para atualizar o inventário, mas depende de financiamento. O primeiro livro foi financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF). “Certa vez, um colega me falou que um grupo de estudiosos queria saber informação sobre a azulejaria pernambucana e a própria direção do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) chegou a dizer que o único trabalho nessa área estava no meu livro. Mas, além de documentar, é preciso criar mecanismos legais de preservação”, ressalta.
Nenhum órgão de proteção do Recife, seja nas esferas federal e estadual, seja na municipal, dispõe de leis específicas de proteção aos imóveis civis em áreas fora de perímetro de tombamento. Tanto o Iphan quanto o Departamento de Proteção de Patrimônio Cultural da Prefeitura do Recife (DPPC) estabelecem a proteção do entorno de áreas tombadas e, com exceção do Bairro do Recife, tombado pelo conjunto arquitetônico urbanístico, o restante teria de fazer parte dos Imóveis Especiais de Proteção (IEP), mas apenas os que constam da lista de proteção.
A tradição azulejar está protegida nas áreas onde já existe uma barreira física de proteção. É o caso do casarão que abriga a Academia Pernambucana de Letras, no bairro das Graças, zona norte do Recife. O prédio tombado guarda na sua fachada os azulejos em padrões portugueses. Em sua pesquisa, a arquiteta Sylvia Tigre identificou 65 padrões diferentes de desenhos, dos quais 65% são portugueses e 35% franceses. “Quando o Brasil começou a importar azulejos de Portugal foi bom para os fabricantes de lá, que enfrentavam uma crise na época. E nós nunca conseguimos produzir azulejo de fachada, no máximo para interiores, e depois vieram as cerâmicas”, conta a arquiteta.
Além da proteção em bens tombados, a arquiteta destaca a azulejaria religiosa dos interiores dos templos católicos. “Os claustros das igrejas guardam desenhos maravilhosos, a exemplo das igrejas de São Francisco de Assis no Recife e em Olinda”, destaca Sylvia Tigre. Pelo menos nas igrejas o acervo está protegido por lei federal.
Em seu livro O Azulejo na Arquitetura Civil de Pernambuco – Século XIX, Sylvia Tigre
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