domingo, 2 de abril de 2017

OUÇO UM GRUNHIDO ALTO

Domingão, às duas da tarde, hora em que todos estão almoçando ou na praia, estou na contra-mão do rush, no supermercado vazio, tranquilo, na pequena fila do caixa.
O pensamento vagando, relaxado enquanto espero a minha vez, quando ouço um grunhido alto, como o de um bicho. Um bicho difícil de identificar.
Fiquei desorientado pelo som estranho, incômodo, um pouco alarmante.
Olho em volta e não localizo sua origem.
O som volta mais alto, parece vir de um animal angustiado por algo assustador.
Vejo, então, dois caixas adiante, uma mulher de uns quarenta e poucos anos, bonita, elegante, que tem ao lado um rapaz, um homem jovem que deve estar pela casa dos vinte e oito, por aí.
É ele, que geme, e olhando para baixo, move a cabeça incessantemente, como uma peça mecânica, como um pêndulo de relógio. Usa óculos de lentes muito grossas, que praticamente escondem o seu olhar. Tenta enlaçar seus braços no dela que está puxando as compras para a frente do caixa. Tenta, aflito, pegar suas mãos, como se estivesse cego, perdido, procurando a segurança da mãe.
Novamente solta um gemido, um ganido que me atravessa, me prega fora do tempo, fora daquele espaço cotidiano e banal. Me atira em um deserto, um ermo onde só estamos os três.
Eu os observo profundamente e sinto, com uma força avassaladora o seu drama particular, diário, infinito.
Aquele balançar de cabeça que não cessa, aquelas mãos que não são de homem, não combinam com a idade e a barba no rosto de expressão perdida. Tem mãos de menino, procurando as mãos da mãe, do pai, de alguma proteção.
Ela, com uma calma profunda, isenta de qualquer preocupação com os que a podem estar observando, puxa delicadamente o filho para junto de si e lhe beija a cabeça com grande carinho, com um amor intenso. Não demonstra a menor impaciência, o menor constrangimento. Age com a calma, a paciência amorosa de uma madona.
E eu, sou arrancado do cotidiano banal, de um momento em que a vida é uma sucessão de atos quase que mecânicos, pagar, levar as compras, pensar no almoço, e sou jogado no palco vazio onde aquelas duas criaturas me deixam por um momento entrever toda a imensidão de seu drama terrível.
Olho e vejo. Sinto com uma intensidade que me deixa chapado, a carga colossal de sacrifícios, abnegação, aceitação de um destino inaceitável, por aquela mulher.
 Vejo a força daquela mãe guiando pelas mãos um espírito assolado por uma doença maldita que faz dele um filhote de bicho perdido em uma noite incessante e só sua.
Nunca me esquecerei daquele som inumano exprimindo uma angústia bruta, cega e daquele beijo calmo, protetor, daquele amor maior do que qualquer dor, qualquer angústia, qualquer tragédia.


Armando Catunda

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