sábado, 26 de agosto de 2017

UM ARTISTA

  
  Você deve tê-lo visto andando a passos curtos pelas ruas do centro, na fila do cinema ou em algum supermercado, analisando cuidadosamente o preço de cada item. Alto, esguio, um pouco curvado, cabelo prateado cortado a facão, camiseta e calça sem cor definida, havaianas cansadas de tantas andanças, mochila quase vazia nas costas. De aspecto mais alemão que rio-platense, apesar do sorriso fácil, eis um artista que gostava de solidão. Sim, a lista de seus amigos era extensa. Mas, mestre na arte de manter a conversa em patamares amenos e superficiais, pouco se abria a confidências e intimidades. Bastava, porém, uma observação, um trocadilho, para que, de repente, saísse de seus finos lábios, em poucas palavras, algo que iria despertar na lagoa tranquila do diálogo, uma inesperada onda de estranheza. Quanto ao seu trabalho, afirmava sem o menor rodeio que era um eterno ajuste de contas com a mãe. Ogra e Górgona, libertina e antropófaga, rodeada de criancinhas ousadas e cães no cio, ela foi a chave de seu mundo, um mundo de meias luzes, de improvável união entre Poltergiest e Alicia no país do Incesto.
Tinha medo da morte, lembrando que, na sua família, muitos morriam do coração e que ele mesmo não teria vida longa. Morreu, apressado, aos 78 anos. Para mim, ele foi o último elo com minha chegada à Bahia. Com frequência, íamos, ele, seu companheiro Emílio e André Jolly, fundador da Aliança Francesa em Salvador, amontoados no carro do uruguaio Miguel Huertas, até Passé, depois de Candeias, onde nos esperava, uma caipirinha na mão, a sempre sorridente Agi Neeser na sua casinha de fada rodeada de flores. Sentávamos frente às canoas dançando preguiçosamente. Um discreto casal de fazendeiros franceses – a palavra “gay” ainda não existia -  vez ou outra vinha se juntar a nós.
Em 1976, recebeu o Prêmio Matarazzo na Bienal de São Paulo. “Bienal Nacional” acrescentava ele, sempre reduzindo a importância de seu trabalho. Em 2008, me pediram para fazer a curadoria de uma retrospectiva no Palacete das Artes. Brigando com o programador visual para obter um catálogo a altura de sua obra, ele, satisfeito com pouco, repetia “Não vale a pena, está bem assim... Pra quê mais?...”.



Resta hoje um farto acervo entre a exposição na Caixa Cultural e seu ateliê da Rua do Passo. Por testamento, o conjunto foi legado a um museu de Art Brut (ou Arte do Inconsciente) em Lisboa, já que, fora algumas vagas promessas, pouco ou nada se pode esperar das secretarias de cultura locais. Em contrapartida, os urubus, que nunca acharam interessante adquirir seus trabalhos, agora começam a rondar quem possui desenhos, esculturas de pano, colagens, pinturas ou cerâmicas do Reinaldo Eckenberger.

PS. Desconheço o autor da foto do artista.


Um comentário:

  1. Muito bom seu texto em todos os sentidos ele Eckemberger fica na memória de quem teve a sorte de conhecer. Axé

    ResponderExcluir