Uma história sobre o artefato intrinsecamente brasileiro
O colunista Marcelo Oséas relata a história das redes de dormir e sua evolução desde os anos de 1500 e correlaciona com os principais acontecimentos da história brasileira
Gostaria que a leitura desta coluna passasse em sua mente como um filme. Eu, fotógrafo metido a etnógrafo, não consigo me livrar dos hábitos dos grandes nomes que povoam as minhas influências. Parafraseando Luís da Câmara Cascudo, para se falar de cultura e antropologia é preciso ser um bom poeta. Sem a poesia, nossos trabalhos tornam-se vazios, como uma planilha de Excel qualquer. Arrisco pensar o mesmo sobre a vida.
Hoje, vou contar a história das nossas redes de dormir, de descansar, de trabalhar, de viver. Não sei dizer exatamente o local em que você, leitor, está neste momento. Porém, consigo afirmar que a sua relação com esse objeto brasileiro diz, com precisão, as suas origens ou influências familiares. Atualmente, no Nordeste e no Norte do nosso país, elas são soberanas, enquanto no restante elas estão ausentes ou figuram como um objeto de descanso adicional. Mas nem sempre foi assim.
Quando contei sobre as canoas indígenas em uma coluna anterior, afirmei que o ato de fazê-las se espalhava pelo globo, como um hábito inerente à nossa espécie. Com as redes de dormir, conhecidas nas linguagens originais como ini ou hamaca, nossa relação é oposta: sua origem é exclusivamente sul-americana. Ini não abriga muito bem nossos corpos no frio, tendo sua presença aceita majoritariamente na imensidão das nossas florestas tropicais.
Não é possível saber a data de seu surgimento, mas temos o primeiro registro escrito de sua existência apenas 5 dias após a invasão, ou chegada, dos portugueses às nossas costas. Em 27 de Abril de 1500, Pero Vaz de Caminha descreve o uso do artefato e, na falta de um nome específico, nomeava a cama suspensa de dormir aos moldes das redes de pesca europeias. Assim, ini é rebatizada, rapidamente adotada por sua praticidade e difundida pelos europeus para vários países ao redor do planeta – bem parecido com o chocolate, mas isso será um tema futuro.
Diferente do que ocorreu na América espanhola, como aqui não foram encontradas pedras preciosas rapidamente, os europeus – sim, não foram só os portugueses – buscaram maneiras de extrair valor das imensas terras. Essas tentativas, hoje, conhecemos como os ciclos da cana-de-açúcar, pau-brasil, café etc. E adivinha quem estava presente em praticamente todos os lares durante os desdobramentos de três séculos? As redes de dormir.
Como todo artefato, este também recebeu ao longo do tempo características de quem os fazia ou de quem as usaria. Até hoje há etnias que as tecem com fibras naturais, como o kurawá – eu mesmo tenho uma em casa – e outras, desde tempos imemoráveis, as tecem com algodão brasileiro. Aprofundando ainda mais, as cores passaram a ser acrescentadas com simbolismos de diferenciação, assim como bordados e outras adições.
Não são poucos os relatos sobre os donos de engenho que dormiam em grandes redes de algodão branco com longas bordas, símbolo de status, especialmente pela dificuldade na manutenção da sua cor alva. Aliás, nesses mesmos relatos, é falado que se mantinha na casa uma cama feita, nos moldes europeus, apenas para que se passasse um ar de sofisticação para as visitas estrangeiras.
Outro uso bastante corriqueiro, especialmente nos centros urbanos do nordeste e do sudeste, era o hábito do senhor ser carregado em uma rede por dois escravos, que o conduziam dependurado por uma madeira nos ombros. Não sei bem como lidar com essa terrível cena quando me deparo com uma das suas ilustrações antigas. Não havia redes na África, terra das esteiras e onde se preferia dormir próximo ao chão. Ainda sobre a cena, ecoa em minha mente a pergunta: o que carregamos nos ombros até hoje, após séculos de interminável exploração?
O cenário que pintamos em nossas mentes permanece praticamente imutável, ao menos para as redes de dormir. Porém, a partir do século 19, com a vinda da família real ao Brasil e o sucesso da produção de café no interior paulista, o eixo do nosso país se desloca definitivamente para o sudeste e, com essa mudança, outros valores começam a ser defendidos. Segundo o espírito da época, a modernidade deveria chegar ao país.
A elite paulistana associava o status de sofisticação com a adoção de hábitos europeus, especialmente os franceses. Assim, começa-se toda uma difusão de valores ditos modernos, como a escolha por dormir em camas luxuosamente montadas. Comunica-se em propagandas e conteúdos de entretenimento toda uma forma de viver, com afirmações muito claras associando a vida em redes com a pobreza. Muito do preconceito que o Norte e o Nordeste sofrem tem seu reforço nesse momento histórico. Que grande oportunidade temos de rever tudo isso, não?
Por fim, nessa quase-filme coluna, compartilho que escrevo sem nenhuma isenção. Sou um fã inveterado das redes de dormir e não perco a oportunidade de trocar a cama por uma. Acho que pobre, de verdade, é aquele que deixa passar uma oportunidade de uma experiência tão ancestral e deliciosa como essa.
Marcelo Oséas
Fotógrafo documental, especialista em cultura brasileira.
@marcelooseas
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