terça-feira, 8 de agosto de 2023

JUSSIAPE, A CIDADE ONDE NADA ACONTECIA

 


"Quando eu tinha sete anos, por um motivo que só consegui vislumbrar quase quarenta anos depois, meu pai me deu uma surra de cinto que deixou hematomas nas pernas e um trauma difícil de superar. Meu pai era um fundamentalista católico, um ex-seminarista rígido, um homem cuja voz alta e peremptória me causava trepidações e cuja distância afetiva me deixava à deriva.
Decidi achar respostas em seus antepassados e cheguei até meu tetravô, Antônio Vieira da Costa, um comerciante português que veio da Cidade do Porto para a 'Cidade da Bahia' e entrou em falência por apostar tudo o que tinha num alvará de D. João VI. A história dele é uma janela escancarada para eventos históricos de Portugal, como a Ordem de Cristo, e do Brasil, como o Mata-Marotos, como ficou conhecida a perseguição aos portugueses depois da independência da Bahia, em 2 de julho de 1823.
Sabino, um de seus filhos, já nascido em Caetité, no alto sertão, teve sucesso como tabelião do império. Teve muitos filhos e pessoas escravizadas e enfrentou a fúria da sociedade local ao largar a mulher e estabelecer outra família. Sabino mandou uma mulher escravizada numa viagem de 1300 km a pé e acorrentada, para ser vendida aos cafeicultores paulistas. José Augusto, filho dele, apoiou políticos liberais e a monarquia e soube se aproveitar das brechas na Lei do Ventre Livre para lucrar com a compra e venda de pessoas escravizadas. Solon, filho de José, foi um fracasso profissional e, fugindo ao vício na cachaça, mudou a família para Salvador numa épica viagem de quatro dias em lombo de burro, trem e barco.
Quando tinha treze anos, meu pai, filho mais novo de Solon, entrou num seminário em Itu, onde sofreu um acidente que o deixou com uma deficiência na perna para o resto da vida. Ele depois desistiu do seminário e voltou para Salvador, onde casou e teve nove filhos.
Não seria mais padre, mas estava determinado a fazer dos filhos os seus fiéis. Eu passei a primeira parte da minha vida acuada e planejando escapar. Escrevendo este livro, consegui resgatar um afeto que eu me negava a admitir.  
No livro faço um passeio transversal ao longo de 200 anos da história do Brasil, por meio da história pessoal de seis gerações da família Vieira. E descubro que as respostas que desejava encontrar estavam bem ali, dentro de mim. Esperavam somente que eu desse um sentido à história pessoal de meu pai e sua relação comigo, com minha mãe e meus irmãos."

(A autora)

Sobre a autora:

Helena Vieira é jornalista soteropolitana. Leitora voraz de livros de História, Filosofia, Psicanálise e ficção. Seu namoro com a escrita vem de longa data. Fez seu primeiro “livro” quando tinha sete anos. Eram poesias que escreveu num caderno para logo depois picotar tudo, envergonhada, quando apresentou o que escreveu à sua mãe e ela respondeu: “Ora, quanta bobagem! Vá brincar de boneca, menina!”. 
Estudou jornalismo, sonhando em ser correspondente internacional e viajar o mundo contando histórias. Antes de se estabelecer em Londres, morou em Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Foi repórter das TVs Aratu e Bahia, em Salvador, da editoria de política do Estado de S. Paulo na capital paulista, freelancer em Nova York para o Jornal O Globo e Rádio CBN, e trabalhou na edição brasileira do The Wall Street Journal e na Bloomberg TV Brasil. Por um ano foi assessora de imprensa da School of St Jude, uma ONG australiana na Tanzânia. Há oito anos edita o LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science, em Londres.

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