"Quando eu tinha sete anos, por um motivo que só consegui vislumbrar quase quarenta anos depois, meu pai me deu uma surra de cinto que deixou hematomas nas pernas e um trauma difícil de superar. Meu pai era um fundamentalista católico, um ex-seminarista rígido, um homem cuja voz alta e peremptória me causava trepidações e cuja distância afetiva me deixava à deriva.
Decidi achar respostas em seus antepassados e cheguei até meu tetravô, Antônio Vieira da Costa, um comerciante português que veio da Cidade do Porto para a 'Cidade da Bahia' e entrou em falência por apostar tudo o que tinha num alvará de D. João VI. A história dele é uma janela escancarada para eventos históricos de Portugal, como a Ordem de Cristo, e do Brasil, como o Mata-Marotos, como ficou conhecida a perseguição aos portugueses depois da independência da Bahia, em 2 de julho de 1823.
Sabino, um de seus filhos, já nascido em Caetité, no alto sertão, teve sucesso como tabelião do império. Teve muitos filhos e pessoas escravizadas e enfrentou a fúria da sociedade local ao largar a mulher e estabelecer outra família. Sabino mandou uma mulher escravizada numa viagem de 1300 km a pé e acorrentada, para ser vendida aos cafeicultores paulistas. José Augusto, filho dele, apoiou políticos liberais e a monarquia e soube se aproveitar das brechas na Lei do Ventre Livre para lucrar com a compra e venda de pessoas escravizadas. Solon, filho de José, foi um fracasso profissional e, fugindo ao vício na cachaça, mudou a família para Salvador numa épica viagem de quatro dias em lombo de burro, trem e barco.
Quando tinha treze anos, meu pai, filho mais novo de Solon, entrou num seminário em Itu, onde sofreu um acidente que o deixou com uma deficiência na perna para o resto da vida. Ele depois desistiu do seminário e voltou para Salvador, onde casou e teve nove filhos.
Não seria mais padre, mas estava determinado a fazer dos filhos os seus fiéis. Eu passei a primeira parte da minha vida acuada e planejando escapar. Escrevendo este livro, consegui resgatar um afeto que eu me negava a admitir.
No livro faço um passeio transversal ao longo de 200 anos da história do Brasil, por meio da história pessoal de seis gerações da família Vieira. E descubro que as respostas que desejava encontrar estavam bem ali, dentro de mim. Esperavam somente que eu desse um sentido à história pessoal de meu pai e sua relação comigo, com minha mãe e meus irmãos."
(A autora)
Sobre a autora:
Helena Vieira é jornalista soteropolitana. Leitora voraz de livros de História, Filosofia, Psicanálise e ficção. Seu namoro com a escrita vem de longa data. Fez seu primeiro “livro” quando tinha sete anos. Eram poesias que escreveu num caderno para logo depois picotar tudo, envergonhada, quando apresentou o que escreveu à sua mãe e ela respondeu: “Ora, quanta bobagem! Vá brincar de boneca, menina!”.
Estudou jornalismo, sonhando em ser correspondente internacional e viajar o mundo contando histórias. Antes de se estabelecer em Londres, morou em Salvador, São Paulo, Nova York, Buenos Aires, Roma e Arusha, na Tanzânia. Foi repórter das TVs Aratu e Bahia, em Salvador, da editoria de política do Estado de S. Paulo na capital paulista, freelancer em Nova York para o Jornal O Globo e Rádio CBN, e trabalhou na edição brasileira do The Wall Street Journal e na Bloomberg TV Brasil. Por um ano foi assessora de imprensa da School of St Jude, uma ONG australiana na Tanzânia. Há oito anos edita o LSE Business Review, da London School of Economics and Political Science, em Londres.
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