domingo, 2 de maio de 2021

EM PORTUGUÊS DE PORTUGAL

 Coisas da vida 


Escola Luís Verney


Por ter pedido aos serviços da Segurança Social que me facultassem o histórico das minhas contribuições, hoje recebo em casa uma carta pedindo-me que esclarecesse como estive eu há cerca de vinte anos a auferir rendimento simultaneamente da Escola Luís Verney (na conhecida Zona J), e do Subsídio de Desemprego?

A primeira leitura fez-me estremecer pois sei como são implacáveis quando as contribuições a que a Segurança Social tem direito, não estão integralmente do seu lado. Mas felizmente lembrei-me que tinha aceite preencher um horário da disciplina de Português para alunos que estavam sem essas aulas desde o início do ano. Isto apesar de estar a receber Subsídio de Desemprego, e o valor que viria a receber da Escola, por ser inferior ao Subsídio, me vir a ser descontado deste. Mas quando se está habituado a sair para ir para o trabalho, mais de um mês em casa já não sabe a férias, e sempre iria beneficiar com uma nova experiência, achava eu.

Com o puxar desta lembrança veio-me um rol de outras atrás dela, uma com alguma graça. Tinha já estado a lecionar História de Portugal a alunos do 6° e 7° ano, que estes, por serem do 5° eu julgava que seriam bem mais dóceis. Não sei se por serem oriundos  dum bairro problemático, que veio aliás a servir de pano de fundo a um filme dum realizador português, se por ninguém querer pegar naquela turma por já saber ao que ia, o certo é que estes meus novos alunos me faziam a vida negra e deixavam-me exausta.

Confesso que tive séria dificuldade em manter a ordem com estas crianças que pareciam ter molas nos pés. Duas alunas eram especialmente mal comportadas e tentavam me convencer, sem que eu lhes desse a mínima hipótese, de que eram irmãs. Até que um belo dia, já cansada com aquela história, resolvi confronta las: "Expliquem me lá como é que vocês as duas, com a mesma idade, são irmãs?" Em uníssono as duas responderam: "É que nós somos filhas do mesmo pai mas temos mães diferentes, somos meias irmãs!" Foi das poucas vezes que o queixo se me descaiu. Pensar que há tanto tempo que lhes podia ter dado oportunidade de me revelarem o seu grande mistério, e por achar que me queriam atrapalhar ainda mais, nunca lhes tinha dado oportunidade de se expressarem. A partir daí ficamos mais amigas, e elas com mais espaço  para falarem do 'nosso pai', o orgulho das suas vidas!

Nessa mesma Escola, e por ter entrado no hábito de bater com a mão na secretaria para que os alunos se calassem e me dessem oportunidade de falar,certo dia ao chegar a casa dei porque me estava a faltar um brilhante ao anel que a minha Avó me oferecera como anel de casamento, tinha eu dezoito anos. Dera mo por achar que não iría assistir ao meu casamento, e tinha razão porque só casei aos sessenta anos. Engraçado que esse episódio foi a garantia que sempre tive de que haveria de casar um dia com o meu Principe!

Ao olhar para o anel com um dos quatro brilhantes em falta, lembrei me que tinha limpo a secretária antes de sair da sala de aula, deitando para o cesto de papéis o que por lá estava. Liguei então para a Escola e como no dia seguinte era feriado, não havia recolha de lixo e pude trazer para a minha varanda dez sacos cheios com o que estava nos cestos de papéis das cerca de vinte salas de aulas. Percorri saco a saco em busca do brilhante. Nada. Recomecei novamente, dessa vez com mais cuidado, separando as pastilhas elásticas dos alunos, das beatas dos professores, dos papéis, chegando à conclusão que os professores fumavam bem mais do que os alunos mastigavam pastilhas. Até que, bem no fundo do último saco, lá estava o meu brilhante!!  

"Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena" dizemos nós. Eu estava disposta a procurar até encontrar. Sabia que tinha que estar ali. Essa era a minha crença. Há quem diga que não devemos acreditar no que não vimos. Mas esta história prova bem o contrário, ou não?

Por vezes não podemos ‘provar’ as nossas convicções, mas ‘sabemos' ser assim. Há até alguns de nós que orientamos a nossa vida mais por aquilo que ‘sabemos’ do que por o que os nossos sentidos nos ‘provam'.


Mariana Campbell 
Cabo da Roca - Portugal
31.03.21

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