sexta-feira, 6 de agosto de 2021

DEVERIA, MAS NÃO PODERIA

 


Mais para meio dormido que meio acordado, quando a noite já se retirara, mas o dia ainda hesita em se definir, apareceu na sombra incerta de meu quarto, tais as tábuas de Moisés, a lista daquilo que eu não poderia mas deveria ter sido durante minha vida. Estaria o subconsciente questionando minhas escolhas existenciais em finzinho de carreira?

Deveria ter sido um grande pianista, um novo Horowitz, mas dois anos de gamas e solfejo provaram que não tinha a menor aptidão. Cantor de ópera, herdeiro de Chaliapine? Nem na Praça Cairu deserta em tempo de covid. Nunca soube em que tom minha voz corria menos perigo de desafinar.

Deveria ter sido banqueiro. Entendam: banqueiro, não bancário. Estou falando do cara que tem seu escritório lá em cima, no último andar com vista panorâmica, adega de vinhos raros e um elevador perfumado só para ele. Mas nunca soube juntar mais de cinco mil cruzados e mesmo assim por pouco tempo.

Romancista? Desde criancinha gosto de escrever. O drama é não ter a mínima imaginação. As vezes em que tentei dar uma de Tolstói resultaram em redondo fracasso. O máximo de minhas capacidades literárias se resume em pequenas crônicas da vida quotidiana e curtos devaneios. Ultrapassar três mil toques – incluindo os espaços – é aventura fadada ao desastre.

Grande matemático. Um Grigori Pelerman. Isso sim foi meu desejo mais profundo, minha frustração. Correr o planeta dando conferencias sobre o mundo encantado das cifras, equações e expressões algébricas, explicar a conjectura de Poincaré e as caraterísticas da circunferência.... Que viagem! Sem contar que cabeça matemática navega melhor na filosofia, cria laços particulares com Bach e é até capaz de construir órgãos en chamade.

Tampouco poderia ter sido um navegador solitário tipo Alexei Belov. Além de enjoar com a mínima onda - me lembro de um casal de portugueses amigos que me levou de veleiro até o Morro de São Paulo; só levantei para ver uma baleia passar - sou incapaz de usar uma bússola. Quanto a me orientar pelas estrelas, nem sonhar. Primeiro você só vê estrelas de noite fechada. De noite eu durmo. E quando surgem as chuvaradas, como que é? Me satisfaço boiando em qualquer piscina de fundo turquesa.

Deveria ter sido alpinista. Vencer o Aconcágua antes do Everest e depois do pico Uhuru do Kilimanjaro. Mas só de pensar na mochila pesada e no frio, neve e ventos gélidos, tudo aquilo que odeio, francamente, não. Prefiro andar à toa pelas orlas confortáveis e ensolaradas de Copacabana e Estoril.

Deveria tomar banho, preparar o café e descer até o jardim para, panglossianamente, arrancar ervas daninhas e colher algum bastão do imperador, estranha flor de porcelana. Poderei também cuidar de minhas buganvílias, podando-as.

 Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, sábado 7 de agosto 2021

 

 

 

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