domingo, 29 de agosto de 2021

UMA GRANDE VIDA

 

Uma grande vida em grande é o mínimo que se pode dizer desta provecta existência, encerrada discretamente em La Romieu, uma aldeia encantadora do departamento de Gers, na Occitânia, que na Idade Média servia de paragem aos peregrinos que se dirigiam a Roma (“romieu” significava “peregrino”, tal qual o nosso “romeiro”). 

Que ela tenha escolhido uma terra com um nome assim para terminar os seus dias é só uma das muitas singularidades desta vida longa, exemplar a seu modo, que começou, imagine-se, 109 anos atrás, no seio de uma família arménia do Império Otomano. Nascida em Konya, em 18 de Fevereiro de 1913, Arpiné Hovanessian tinha dois anos de idade quando enforcaram o seu pai, entre 1,5 milhões de vítimas do genocídio do povo arménio perpetrado pelos turcos e hoje negado por Erdogan. A mãe escapou por um triz ao massacre e conseguiu colocá-la a ela e à irmã num orfanato arménio de Constantinopla, o qual se transferiu em 1922 para Salónica e, dois anos depois, para Marselha. 

A seguir, Arpiné foi estudar para a Escola Tebrotzassère, em Raincy, um colégio arménio situado nos arredores de Paris. Aos 15 anos abandonou o orfanato e tornou-se dançarina nos cabarés de Paris, mergulhando, segundo a própria, numa “vida livre de restrições”, seja lá o que isso for, ou foi. Numa fotografia da época, posou para o Studio Piaz, cuja clientela era quase exclusivamente composta por celebridades — Josephine Baker, Edith Piaf, Jean Marais, Marlene Dietrich —, o que levou os seus biógrafos a sustentarem que a exótica Arpiné não era uma vulgar corista mas uma estrela de primeira grandeza das noites parisienses, facto que só pode ser atestado por quem as viveu ao vivo e que hoje, muito provavelmente, já estará morto. 

Por essa altura, escondeu uma família judaica em casa e aderiu à Resistência, guardando até morrer, com justificado orgulho, o cartão de membro das FFI, as Forces françaises de l’Intérieur, a confederação dos opositores ao nazismo formada em 1944, que teve papel relevante no apoio ao desembarque dos Aliados na Normandia. Depois casou, teve dois filhos, mas acabou por trocar o marido por uma nova paixão, o automobilismo. 



Em 1955, na companhia de um amigo, o motociclista Geor ge “Jojo” Houel, foi assistir a uma prova no autódromo de Linas-Montlher e aí conheceu Jean Behra, o campeão de Fórmula Um que na altura corria para a Maseratti e que a convenceu a entrar naquele circo. Em Janeiro de 1956 tornou-se a primeira mulher a participar no Rali de Monte Carlo, onde ganhou o cognome de “buldózer” por razões que imaginamos, ficando num honroso 119º lugar em 233 concorrentes.

 Em Abril, ao volante de um Simca Aronde, ficou em 6º lugar nas Coupes de Vitesse, no autódromo de Montlher; em Agosto participou num infernal raide de 2200 quilómetros, de Deau ville a Hyères; em Outubro entrou nas Coupes de Salon, também em Montlher. A partir daí, o automobilismo, segundo as suas próprias palavras, tornou-se um vício, no qual ganhou vários epítetos amistosos, como “a guilhotina”, e, ao que parece, foi então que mudou o nome de Arpiné para Louisette, uma corruptela alusiva à decapitação de Luís XVI (“la tête de Louis”, “La Louis… tête”, “Louisette”). O apelido Texier, presume-se, foi a única coisa que guardou do marido.

 Louisette Texier entraria em competições desportivas de alto nível de 1956 a 1964 e em 1963 ficou classificada em 2º lugar na categoria GT do Tour de France Automobile, numa equipa exclusivamente feminina, com um Jaguar MK II pilotado por Annie Soisbault, uma antiga campeã de ténis que se converteria numa estrela do automobilismo francês e junto à qual Louisette aparece em fotografias que dão bem nota do que era o desporto automóvel naquela idade da inocência, em que ambas corriam vestidas de botas altas e António Araújo escreve de acordo com a antiga ortografia casacos de astracã e com um leopardo de estimação a bordo. 

Em entrevistas do final da vida, Louisette Texier proclamava, como a canção de Piaf, nada ter a lamentar dos excessos praticados ao longo de uma trajectória cheia, congratulando-se, em particular, por ter largado o marido e por não precisar de homens para nada. O que mais lhe custou, disse, foi ter crescido longe de sua mãe, que só reencontrou fugazmente muitos anos depois de ter fugido da Turquia, país onde não mais regressou. 

Abriu uma butique em Neuilly, nos arredores de Paris, das primeiras lojas de França a venderem calças jeans para mulheres, e, com 80 anos, participou na sua última corrida de automóveis, um rali no Quénia. Reformou-se merecidamente aos 92 anos. Os filhos chamavam-lhe com ternura “a selvagem”, devido à sua tremenda força de viver, que a fez durar muito para lá dos 100 anos, sendo a última sobrevivente francesa do genocídio arménio. 

Ela, mais sábia, atribuía a longevidade ao facto de se manter coquette e vaidosa mesmo no crepúsculo de uma existência feita contra todas as probabilidades: nascida antes do deflagrar da Primeira Guerra, salva por uma unha negra de um dos maiores genocídios do século, resistiu à ocupação nazi, tornando-se mulher independente, feminista avant la lettre e campeã automóvel — e o mais surpreendente de tudo é que nunca, em circunstância alguma, mesmo nos tempos de maior negrume, perdeu a joie de vivre que lhe permitiu durar 109 anos, morrendo tranquilamente, durante o sono, no passado dia 20 de Julho, numa aldeia que albergou os romeiros que outrora peregrinavam a uma cidade que, como ela, se diz Eterna.

 

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