segunda-feira, 30 de agosto de 2021

DROGAS: A SOLUÇÃO PORTUGUESA

 “Cem pessoas aqui, por dia, são cem momentos em que não estão na rua”

Primeira sala de consumo vigiado Äxa do país abriu há três meses em Lisboa, duas décadas depois de a lei passar a prever este tipo de instalações. Quem a frequenta diz sentir-se mais seguro


A V., o espaço já não lhe é estranho. Afinal, por ali passa todos os dias pelo menos três vezes — “às vezes mais” —, sempre que sente necessidade de consumir. Acabara de sair da sala onde se consomem drogas injectáveis, uma das vias que apresentam maior risco quanto à possibilidade de overdose, mas também de propagação de doenças infecciosas, sobretudo se houver partilha de seringas e de outros materiais. 

Estamos na Quinta do Loureiro, dentro do bairro municipal construído depois da demolição das barracas da colina do antigo Casal Ventoso. É um local onde se convive com a droga há largas décadas e, por isso mesmo, lugar óbvio para a instalação da primeira sala de consumo vigiado fixa do país, vulgarmente conhecida por “sala de chuto”. Aberta há pouco mais de três meses, por ali há duas palavras de ordem: reduzir danos. 

Como? Com a distribuição de material asséptico para evitar a transmissão de doenças. Com consumos supervisionados por um profissional de saúde, pronto a intervir em caso de necessidade, pronto a evitar uma overdose e a salvar uma vida. São essas condições e o acolhimento sem julgamentos que fazem V. regressar. “Sinto-me muito seguro e muito confortável aqui. Melhor do que na rua. E, além da segurança, o mais importante é a higiene”, diz o homem de 47 anos, que pediu para não ser identificado. 

Estas salas de consumo “são habitualmente instaladas nas zonas onde se vende e onde se consome”, contextualiza o psicólogo Hugo Faria, um dos técnicos da associação Ares do Pinhal — que gere o equipamento e acompanha os utentes. Na verdade, algumas das áreas que hoje pisamos eram já antes salas de consumo a céu “Cem pessoas aqui, por dia, são cem momentos em que não estão na rua”

 Primeira sala de consumo vigiado Äxa do país abriu há três meses em Lisboa, duas décadas depois de a lei passar a prever este tipo de instalações. Quem a frequenta diz sentir-se mais seguro aberto, rodeadas de seringas e lixo. “Isto era tudo aberto e o pessoal metia-se todo aqui. Muita gente consumia aqui todos os dias”, recorda V.

 Talvez isso justifique a adesão que a sala tem tido, apenas três meses após a sua abertura, a 18 de Maio: 566 pessoas inscritas, cerca de cem utilizadores diários. “É uma peça que encaixou [no local]”, diz o psicólogo. Mal se passam as portas do Serviço de Apoio Integrado — assim é a designação oficial —, há um espaço, o Café Conforto, com mesas e cadeiras onde se pode ver televisão, tomar um café, fazer as refeições e deixar os animais de companhia. Há também balneários, serviço de lavandaria, áreas para atendimento psicossocial, consultas de clínica geral e rastreios de doenças infecto-contagiosas, assim como para procedimentos simples de enfermagem, como trocar pensos. 

Um espaço seguro 

O trabalho começa precisamente por garantir que estas pessoas têm acesso ao que é mais básico. “Há utentes que nos dizem que, como estão com a higiene mais cuidada, têm um melhor aspecto e já são olhados de outra forma. Apesar do pouco tempo de trabalho, algumas coisas já se começam a reflectir”, nota a psicóloga Roberta Reis, também membro desta equipa de 12 profissionais, na qual há psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e um clínico geral, que acompanham os utentes. Quando os técnicos falam nestes cem utilizadores diários, referem-se apenas àqueles que ali vão consumir.

 De fora dessas contas, ficam os que passam apenas para tomar um banho, lavar a roupa ou então procurar um sítio mais digno para fazer as suas refeições. “Alguns utilizam as salas várias vezes por dia. Temos pessoas que trabalham e que vêem aqui um espaço para fazer o seu consumo a meio do dia porque estão mais seguras em relação à confidencialidade e porque no consumo feito na rua pode acontecer tudo”, observa Hugo Faria. 

O responsável pela equipa, Hugo Faria, destaca a importância da redução de danos, muitas vezes desvalorizada. Quem ali trabalha aceita a condição em que cada pessoa se encontra, e parte daí para um novo caminho 566 pessoas estão inscritas no primeiro centro de consumo vigiado do país, que abriu há três meses, em Lisboa. Destas, cerca de cem vão ali diariamente

Pelo que os técnicos vão percebendo, quem ali aparece são pessoas que já andavam naquela zona, o que reforça uma conclusão já retirada de outros exemplos de salas pela Europa: “As pessoas não se deslocam para ir à sala de consumo. As pessoas deslocam-se pela substância.” Daí a necessidade de estes espaços se localizarem próximos de locais de venda e consumo. Sempre que chega um novo utilizador, a equipa tenta recolher os dados básicos de cada utente: nome, data de nascimento, nacionalidade, se tem ou não abrigo e qual a via de consumo que utiliza. Nem sempre conseguem, porque há utentes que não estão para grandes conversas. Vão entrando e saindo vários utentes. 

Os técnicos já lhes sabem os nomes. Sempre que chega alguém para consumir, comunicam entre si por walkie-talkies para perceber se há lugar nas salas. Lá dentro, há dois espaços dedicados ao consumo: um destinado aos utentes que o fazem por via injectável e outro por via fumada. Quando acedem à sala de consumo, o enfermeiro faz-lhe algumas perguntas: que droga vai usar, o que consumiu nas últimas 24 horas, que medicação toma, se integra o programa da metadona.

 Informação essencial para saberem como actuar numa situação de emergência. O material, como seringas, pratas e cachimbos, dependendo do tipo de consumo, é distribuído. As misturas são feitas ali e não podem vir preparadas. O enfermeiro Samuel Areias está ali para o que der e vier. Primeiro, “para garantir que fazem um consumo de maneira asséptica, evitando que estejam no meio da rua a preparar, que apanhem uma carica do chão para preparar a dose ali”. Depois, para visualizar o consumo sempre que é feito em zonas onde o risco seja maior. 

Ao pé de si, tem um carrinho de emergência, a que espera nunca ter de recorrer. Os utentes têm 30 minutos para fazerem o consumo injectado e 40 minutos no caso de ser fumado. Depois, mais 20 minutos de “recobro”. “Aqui estão seguros. Sentem-se tranquilos. Muitas vezes, até Æcam mais do que o tempo [previsto]”, diz o enfermeiro, que trabalha também na urgência de um hospital da capital. 

Uma espera de 20 anos 

Samuel confessa que chegou a duvidar se teria “estômago” para isto. “Este é um trabalho que não é para toda a gente. É um bocadinho fora da caixa. Estamos a ver uma coisa que dizemos para eles não fazerem. Há muita gente que não consegue perceber o outro lado.” Por ali, essa é a missão constante: apoiar mais do que julgar. 

A primeira sala de consumo vigiado abriu em Junho de 1986 em Berna, na Suíça. Nos anos seguintes, foram criadas instalações do mesmo tipo em vários países. Em Portugal, estão previstas na pioneira lei de 2001, que regulamentou as políticas de redução de danos associados ao consumo de substâncias ilícitas. Só em Abril de 2018 a Câmara de Lisboa, anunciou a abertura de um destes equipamentos. Desde meados de 2019 haja uma carrinha — uma sala móvel — que percorre várias zonas da cidade. Paulo S. conhece bem uma sala em França em que a área para os consumidores de substâncias fumadas é “muito grande”, tal como a de Lisboa deveria ser, repara. “O pessoal é cinco estrelas. 

O processo está muito bem organizado. Só o espaço é que é pequeno para os consumidores que fumam. Deveria ser maior. Há muito mais gente para o consumo fumado”, diz o homem de 49 anos, desde 2007 preso à droga, após ter perdido a mulher e um filho e a vida se ter tornado demasiado insuportável. Grande parte da adesão ao projecto justifica-se pelo trabalho feito pela equipa comunitária que anda nas ruas, acredita Roberta Reis. “Começamos a convidar as pessoas para virem conhecer o espaço antes de consumirem. 

Havia muita curiosidade em saber como seria aqui dentro, se seriam muito controlados.” “É muito interessante ver como a auto--estima das pessoas muda quando elas começam a olhar e a cuidar de si. É a partir daí que elas começam a querer mais e a buscar mais”, diz a psicóloga, que recorda um utente que há dois anos não tomava um banho. “Comemoramos as pequenas vitórias diárias. Para nós, isso foi uma conquista.” Gerir esta sala até ao final do ano custará ao município “cerca de 350 mil euros, a maioria para pagar os recursos humanos” e para os equipamentos e materiais necessários à actividade, diz o vereador dos Direitos Sociais da Câmara de Lisboa, Manuel Grilo. 

O sucesso máximo de uma sala de consumo será sempre o seu fecho, porque significaria que tinha deixado de ser necessária. No entanto, até esse momento — se alguma vez chegar —, muito haverá a fazer. “Estamos muito felizes de poder ter um espaço digno para esta população, em que as pessoas são tratadas com respeito”, conclui a psicóloga Roberta Reis. 

Já Hugo Faria depressa faz as contas que importam para avaliar o projecto: “Se tivermos cem pessoas aqui por dia, são cem momentos em que não estão na rua, menos seringas e cachimbos que ficarão no chão, menos vidas que estarão em risco”, insiste. 

Esses serão os pequenos sucessos do dia-a-dia.

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