Malba Tahan, Braguinha e o Lobo Mau
Imagem: Discos Continental - 1944
Por MARCOS
PALACIOS*
Breves notas para o resgate de
faces menos conhecidas de um mito literário e de um dos maiores compositores da
música popular brasileira.
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Quando eu tinha por volta dos
três anos de idade, aí pelos inícios da década dos 50’s, ganhei de presente
três gravações de histórias infantis: Chapeuzinho Vermelho, História
da Baratinha e Alice no País das Maravilha, em discos 78 rpm, de 10
polegadas, que me acompanhariam por toda minha primeira infância.
Nunca havia me interessado em saber a quem eu
devia aquelas tantas e tantas horas de historinhas fonográficas, incontáveis
vezes repetidas. Recentemente, movido pela nostalgia que filhos e netos
naturalmente nos despertam, resolvi tentar recuperar as gravações originais
daqueles discos. E fiz uma série de constatações relacionadas com a sua gênese,
contexto e destino final, que podem nada ter de novo para musicólogos ou
historiadores da cultura brasileira, mas que muito me surpreenderam.
A minha primeira surpresa foi
identificar o nome por trás daquelas gravações pioneiras, voltadas para o
público infantil brasileiro: o compositor carioca Carlos Alberto Ferreira Braga
(1907- 2006), o Braguinha, também conhecido como João de Barro.
A segunda surpresa, talvez ainda
maior, foi descobrir, ao pesquisar arquivos das gravadoras, um outro pioneiro
de histórias infantis fonográficas, ainda anterior a Braguinha: Malba Tahan, pseudônimo de Júlio César de
Mello e Souza (1895-1974), mais conhecido por seus contos de sabor oriental, seus
trabalhos na área da didática da Matemática e por uma mistificação literária
extremamente convincente que, de certo modo, persiste até nossos dias...
Vamos por partes.
Comecemos por Malba Tahan....
I.
O árabe que contava histórias
Um dos livros mais vendidos,
escrito por um autor brasileiro, lançado em 1938, alcançou sua 100ª edição em
2021. Trata-se de O Homem que Calculava, que possivelmente grande parte
dos leitores ainda acredite ser obra do matemático Malba Tahan, nascido em
1885, na Arábia Saudita, tendo como tradutor o professor Breno Alencar Bianco.
Em verdade, por trás dos pseudônimos do autor e do igualmente fictício tradutor,
estava Júlio César de Mello e Souza, um personagem absolutamente ímpar no
cenário literário e pedagógico brasileiro.
Nascido no Rio de janeiro, em
1895, formou-se em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1913, e começou uma carreira como
professor de ensino médio, lecionando inicialmente Geografia, História e
Física, para fixar-se, finalmente, na Matemática. Crítico da pedagogia tradicional
de sua época, lançou-se à criação de uma abordagem paradidática nova e
criativa, verdadeiramente revolucionária, tendo publicado 51 obras sobre
Matemática, direcionadas para suplementar um ensino mais divertido e próximo da
imaginação dos jovens. Seus trabalhos até hoje geram teses e dissertações
acadêmicas.
A criação do pseudônimo Malba
Tahan, segundo
a Editora Record, “aconteceu em 1925, após Júlio César ter seus
contos, assinados com seu nome real, rejeitados pelo jornal carioca O
Imparcial. No dia seguinte, levou os mesmos contos à redação do jornal, mas
com a assinatura de R. S. Slade, um fictício escritor americano. Disse ao
editor que tinha acabado de traduzi-los e que o autor fazia grande sucesso em
Nova York. O primeiro deles (A Vingança do Judeu) foi publicado já no
dia seguinte, na primeira página. Os outros quatro tiveram o mesmo destaque posteriormente.
Júlio aprendeu a lição e decidiu virar Malba Tahan”.
Além de sua contribuição
pedagógica, Malba Tahan escreveu 69 livros de contos. No total, sua
produção literária ultrapassa 120 livros.
Não se contentou com simplesmente
inventar e usar um pseudônimo, mas criou o personagem do autor e seu tradutor,
provendo-os com biografias
e até com resenhas críticas e notícias literárias, atribuídas
a escritores da época. Nascido em Meca, quando sua família ali se
encontrava em peregrinação, Malba Tahan teria viajado
por várias partes do mundo (Índia, Pérsia, Rússia, Shangai, Constantinopla,
Egito), tendo vivido por onze anos em Manchester, onde seu pai era comerciante
de vinhos. Por outro lado, Júlio César de Mello e Souza pouco saiu do Brasil,
registrando-se somente breves
visitas suas a Lisboa, Buenos Aires e Montevideo. Nunca esteve em um país
árabe ou oriental.
Há exatos 100 anos, nascia o
primeiro livro assinado pelo autor “árabe”: Contos
de Malba Tahan, lançado pela Editora Brasileira Lux, do Rio de Janeiro,
em 1925.
Além dessa façanha de criação de
um pseudônimo (ou será um heterônimo?) tão bem-sucedido e da alargada obra
escrita que produziu como Malba Tahan, descobri - com surpresa - que Júlio
César de Mello e Souza deixou também sua marca no mundo fonográfico, tendo sido
um dos pioneiros da criação de histórias infantis em discos, fato pouco
conhecido e não mencionado em suas biografias.
Em 1933, uma
gravação de um 78 rpm da Columbia traz a autoria de Malba Tahan para duas
histórias infantis ( O rei que tinha uma cara engraçada e Papai do
Céu e a girafa), contadas por ele com apoio do Quarteto Infantil da Gravadora
Columbia e disponíveis
na Internet. E um detalhe relevante: apesar de assinadas por Malba Tahan,
as historietas nada têm de oriental; pelo contrário, uma delas é uma versão de
uma visitação ao presépio do Menino Jesus, por uma verdadeira Arca de Noé, com
cada animal levando um presente e a girafa sendo castigada por se negar a
participar das homenagens. Júlio César de Mello e Souza foi infiel a seu
pseudônimo nessa única ocasião, pois não há registros de gravações posteriores.
A partir de 1935, Malba Tahan produziu
dez livros de
ficção infanto-juvenil. O Homem que calculava mereceu também uma edição
em quadrinhos e uma versão
teatral.
Em 2013, trinta e nove anos
depois de sua morte, em resposta ao Projeto de Lei 3482/04, impulsionado pela
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, foi criado, na data de seu
nascimento, 6 de maio, o Dia
Nacional da Matemática.
E passemos, então, a Braguinha.
II.
O sambista que contava histórias
Foi também com surpresa que constatei
que as três histórias fonográficas de minha infância, mencionadas no início
deste texto, têm paternidade única: Carlos Alberto Ferreira Braga (1907- 2006),
o Braguinha, também conhecido como João de Barro.
Isso dito, pouca necessidade há
de maiores apresentações, já que se trata de um dos mais importantes nomes da
música brasileira, com mais de 400 composições, dentre as quais se incluem
clássicos, como a letra de 1937 para o samba Carinhoso de Pixinguinha, lançado
na voz de Orlando Silva. Sucederam-se, então, mais de cem gravações, por
intérpretes como Dalva de Oliveira, Isaura Garcia, Ângela Maria, Elis
Regina, João Bosco, Elza Soares e outros.
Não há quem não conheça
composições de Braguinha como Pirata da Perna de Pau, Chiquita
Bacana, Touradas de Madri, A Saudade Mata a Gente, Balancê, As
Pastorinhas, Turma do Funil, Cantoras de Rádio e tantas
e tantas outras, que cantarolamos, algumas vezes ignorando quem as criou.
Copacabana, gravada
por Dick Farney, em 1946, com arranjo de cordas do maestro e pianista
Radamés Gnattali, é considerada por alguns estudiosos como um ponto de virada
na moderna música popular brasileira, prenunciando o nascimento da Bossa Nova
(Rosa, 2012).
Seu outro apelido – João de Barro
- tinha uma forte razão de ser: Braguinha jamais aprendeu a tocar um
instrumento musical e compunha suas músicas com assobios, como se fosse um
pássaro.
Em 1984, o compositor foi
homenageado pela Estação Primeira de Mangueira, com o samba-enredo Yes, nós temas Braguinha,
na inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí.
Menos conhecidos, talvez, sejam seu
pioneirismo e trajetória de alargada contribuição, no que se refere à música popular
e tradicional infantil, assim como sua participação na criação de contos
infantis especialmente formatados para o meio fonográfico.
O envolvimento do compositor com
o mundo infantil começou em 1938, quando traduziu e dirigiu a dublagem para
português do primeiro longa-metragem de animação de Walt Disney, Branca de
Neve e os Sete Anões (1937). O filme era entremeado de canções, que foram
recriadas em português, por Braguinha.
Com arranjos e direção musical de
Radamés Gnattali, as canções tiveram interpretações de vozes consagradas como
Dalva de Oliveira (Branca de Neve) e Carlos Galhardo (Príncipe) e
geraram alguns clássicos infantis, como Assobie Enquanto Trabalha (Whistle
Whistle You Work) e Eu Vou Cavando a Mina (Heigh Ho), com os
conhecidos versos Eu
vou, eu vou, pra casa agora eu vou....
O Espelho Mágico e o Anãozinho
Mestre foram dublados pela voz de Henrique Foréis Domingues, o Almirante,
um dos pioneiros da música popular brasileira das primeiras décadas do
século XX, criador do conjunto Bando de Tangarás, no qual Noel Rosa fez
sua estreia, em 1929, como violonista.
Dessa gravação original da Branca
de Neve restam apenas fragmentos. Um deles é uma das cenas de abertura do
filme, cantada por Dalva de Oliveira e Carlos Galhardo. Está disponível na Internet e vale a pena assisti-la.
A versão do filme que está hoje
no Youtube é de uma
segunda dublagem (1965), com direção musical de Abelardo Magalhães – mais tarde
diretor dos corais das TVs Excelsior, Record, Tupi, Rio e Globo – e com as
vozes de Cybele Freire e João Alberto Persson nos dois papéis principais.
O site Memória
das Dublagens apresenta, lado a lado, os créditos completos, técnicos e
musicais, das duas versões.
Posteriormente, Braguinha desempenharia
as mesmas tarefas de tradução, direção artística de dublagens e recriação de
canções, em lançamentos seguintes da Disney, no Brasil: Pinóquio (1940),
Dumbo (1941), Bambi (1942) e Alice no País das Maravilhas
(1951).
Paulo Tapajós, na apresentação do
livro Yes, Nós Temos Braguinha, de Jairo Severiano, relembra sua
participação nas dublagens de Pinóquio: “Fui convidado por ele para
fazer a voz do grilo, que era a consciência do Pinóquio. Quem falava pelo
famoso boneco de pau era o Mesquitinha e quem cantava era eu. É que o
Mesquitinha não sabia cantar e eu não sabia representar. Então, Braguinha
resolveu juntar-nos. Mesquitinha falava e eu cantava. Criamos, os dois, o
personagem, cuja canção-tema é linda e marcou, definitivamente, o filme de
Pinóquio”, relata Tapajós, com orgulho de ter sido o primeiro a gravar a versão
em português de When You Wish Upon a Star, com versão de Yaconelli sobre
música de Harline e N. Washington (Severiano 1987, apud Malta, 2012).
Em 1944, a partir da experiência
acumulada com as dublagens dos filmes de Walt Disney, Braguinha teve a ideia de
criar histórias infantis para difusão em discos, dando-lhes feições apropriadas
para o suporte fonográfico e fazendo as adaptações que julgasse necessárias
para atingir o público brasileiro. Se, no caso das dublagens dos filmes de Walt
Disney, Braguinha tinha que, forçosamente, ater-se ao roteiro pré-estabelecido,
na produção das histórias infantis tradicionais ele estava livre para deixar
fluir toda sua criatividade nas adaptações.
Pedro Paula Malta (2012), um dos
biógrafos de Braguinha, relata que antes de levar as historinhas para os discos,
ele testava-as com sua filha Maria Cecília, de cinco anos à época do lançamento
de Chapeuzinho Vermelho, conforme seu depoimento para Malta:
“Antes de fazer os discos, meu pai contava as histórias para mim, para ver como
seria a reação de uma criança. Tanto que ele mudou o fim de Chapeuzinho
Vermelho, com aquela solução de tirar a avó viva de dentro do lobo. No
conto original, pouca gente sabe, a história termina com as mortes da avó e da Chapeuzinho.
A mesma coisa com o João Ratão, da Dona Baratinha: ele só sai
vivo da panela de feijão na história contada pelo papai”.
A reescrita de Chapeuzinho,
com a salvação da menina e sua avó, desviando-se da versões originais da
história, como contadas por Charles Perrault e depois pelos Irmãos Grimm,
que culminam com a morte de ambas, foi objeto de um estudo acadêmico (Barbosa
de Lima, 2008).
Braguinha convidou Radamés Gnattali,
com quem havia trabalhado nas dublagens, como parceiro na empreitada e
mobilizou para o projeto o elenco da Gravadora Continental, da qual era diretor
artístico desde 1938. Gnattali ficou encarregado dos arranjos e orquestrações.
Dois dos discos mencionados no
início deste texto - Chapeuzinho Vermelho e a História da Baratinha
- foram lançados, respectivamente, em 1944 e 1949, ambos com participação do
Elenco Continental, com as histórias reinventadas por Braguinha.
No caso de Chapeuzinho
Vermelho, a partitura de Radamés Gnatalli foi criada não só para as
cantigas, como também para o fundo musical e a sonoplastia da narração. A
produção ficou marcada pela criação de três clássicos da música infantil: Pela
estrada afora... Eu sou o lobo Mau... e Nós somos os caçadores...
O medo de “virar mingau” e o alívio com a chegada dos caçadores, matando “feras
sem conta”, foram combinados na medida certa na versão fonográfica da história,
que está disponível na Internet.
Merece destaque, ainda, um outro
fato notável, a testemunhar o pioneirismo de Braguinha: segundo o pesquisador
Egeu Laus (1998), a capa
de Chapeuzinho Vermelho, de 1944, foi a primeira experiência com uma
embalagem personalizada, na história da discografia brasileira. Até então, os
discos vinham acondicionados em envelopes genéricos, com
um furo no meio, através do qual se podia ler as informações sobre o que
continham.
A iniciativa de Braguinha,
criando uma capa exclusiva para Chapeuzinho Vermelho, inaugura, na indústria fonográfica brasileira,
uma nova forma de suporte artístico, geradora de algumas obras primas, a
exemplo da capa da coleção de quatro discos de músicas de Noel Rosa,
interpretadas por Aracy de Almeida, desenhada
por Di Cavalcanti e lançada em 1950, também pela Continental, ainda sob a
direção de Braguinha.
A narração dublada e as canções do
filme Alice no País das Maravilhas (1951), com a participação do Elenco
da Continental e de Vinicius de Morais como um dos tradutores, gera o terceiro
dos três discos icônicos de minha infância. Almirante se encarregou da
voz do Dodô. A produção, neste caso, é uma transposição pura e simples
das dublagens para o filme, portanto com menos intervenção criativa de
Braguinha e menor eficácia enquanto produto fonográfico, para consumo apenas
pela audição. A capa
do disco, assim como o filme completo, com
suas canções originais traduzidas e adaptadas, estão disponíveis na Internet.
Para completar este breve
resgate, cumpre destacar que não só crianças de minha geração se deleitaram com
essas produções, mas também as que vieram depois, já que, incentivados pelo
sucesso dos primeiros experimentos, Braguinha e a Continental seguiram adiante
na produção de novas gravações com histórias infantis, dando origem à Coleção
Disquinho.
Os pesados e quebradiços discos de
78 rpm originais, suplementados por toda uma nova série de histórias, transformaram-se
em disquinhos coloridos, rodados a 33 rpm e lançados entre 1960 e 1983.
Marcos Dhotta (2020), em Os
Disquinhos de João de Barro, lembra que “Braguinha dividiu espaço na
produção da nova série com as amigas Elza e Silvia Helena Fiúza. Foram ao todo
80 lançamentos, entre contos de fada, fábulas, (...) cantigas de ninar, de
roda, de Natal, entre tantas outras. A narração das estórias era feita, na
maioria das vezes, por Sonia Barreto e as personagens, falas e cantigas, ao
longo da década, foram interpretadas pelo Teatrinho Disquinho.”
A coleção tornou-se um verdadeiro
marco de produção fonográfica em grande escala, direcionada ao público infantil.
Mais de cinco milhões de cópias foram vendidas entre 1960 e o início dos anos 1980.
A História da Baratinha, em
sua versão original de 1946, foi relançada logo na primeira leva dos Disquinhos,
em 1960. O suporte era um produto resistente, em vinil colorido, que as
próprias crianças podiam manejar, algumas vezes utilizando os suas próprias vitrolinhas plásticas, que se
popularizaram nos anos 70 e 80.
A ideia de cores diferente para
os Disquinhos foi do próprio Braguinha, que acreditava que, assim, as
crianças teriam mais facilidade de identificar as diversas histórias.
Cantigas de Roda e Cantigas
de Ninar, produtos da primeira fase dos Disquinhos, trazem arranjos de canções
infantis tradicionais, como O Cravo brigou com a Rosa, Eu fui no
Tororó, Atirei o pau no gato, A canoa virou, Sambalelê, Boi
da Cara Preta, Tutu Marambá, e tantas outras.
Em 2001, os Disquinhos foram
reeditados em formato CD, pela Warner Music, chegando a ainda mais uma geração
de crianças.
*Marcos Palacios é Ph.D. em
Sociologia (Liverpool) e Professor Titular aposentado da Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal da Bahia

Adorava ler os livros de Malba Tahan na pequena Biblioteca do meu pai. Certa vez fiz um texto para uma "peça de teatro" encenada na grande sala de nossa residência, na cidade de Maragogipe. A platéia era sempre nossa mãe, titia e Lúcia. Só sucesso!!!
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