sábado, 24 de setembro de 2022

IGUALZINHO AO NOSSO!

 Uma estranha sensação: orgulho de selfie com presidente.



Os alunos brasileiros e a visita do presidente português 


A turma do oitavo ano se preparava para ir embora quando um burburinho inesperado tomou conta do ambiente. "Presidente!", "Presidente!", ouvia-se em meio a palmas e assobios. 

Os mais curiosos logo souberam que se tratava do chefe de Estado de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, que visitava a Escola Secundária de Pedro Nunes — uma instituição de ensino público em Lisboa onde há mais de seis décadas ele e os irmãos concluíram os estudos. 

Era a terceira vez, desde que estava no comando do país, que aparecia no Liceu na primeira semana de aulas. Fundado em 1906, localizado em frente ao Jardim da Estrela, está em segundo lugar no ranking das melhores escolas públicas de Lisboa. Tem fama de ser forte na área de Humanas e Ciências e de ter muitos "queques" (mauricinhos) e "betinhas" (patricinhas). 

Naquela manhã de quarta-feira (21), Sousa havia passeado pelos corredores, conversado com alunos e professores e posado para muitas fotos — o que não poderia deixar de ser. É tão característico da sua personalidade que, até pouco tempo, era possível baixar no Google Play ou na AppStore um aplicativo chamado "Marcelfie", que colocava qualquer pessoa numa foto ao lado do presidente.

"És o único português que não tem uma selfie com o Marcelo? Não desesperes. Chegou a Marcelfie", lia-se na descrição do serviço. "Põe um Marcelo na tua vida", dizia o bordão (tentei baixar e não funcionou). 

Meu filho de 13 anos e um amigo — também brasileiro — estavam arrebatados com o que viam no pátio da própria escola: um presidente de carne e osso, ovacionado em uníssono por gente de quem eles gostavam e respeitavam.

 Durante quase duas horas, num auditório lotado, Marcelo — como os portugueses o tratam — conversou com os estudantes sobre futuro, recessão, felicidade, política, ioga, insônia, o funeral da rainha Elizabeth 2ª, desigualdade social. Disse que os partidos políticos viviam em bolhas "estanques"; que, mais do que escolher uma profissão, era importante que fossem felizes e que "ser feliz é fazer os outros felizes"; que os mais ricos devem pagar mais impostos, que é preciso saber "se comunicar em várias línguas" e fazer "algo de positivo" pelos outros. 

Contou que termina sempre a noite a ler telegramas diplomáticos, que almoça "em dois minutos", faz ioga, caminha uns cinco quilômetros e nada quase todo dia. Uma aluna quis saber como ele fazia quando se encontrava com "certos chefes de Estado". Ficou subentendido que se referia à saia justa provocada por Jair Bolsonaro, que o "desconvidou" para um almoço quando de sua visita ao Brasil, em julho. Ele foi astucioso. "O que seria se cada chefe de Estado só se desse com os chefes de Estado que são muito amigos?", disse. "Seria um drama!". Aos 72 anos, Sousa cultiva uma persona pública mezzo franciscana, mezzo intelectual. Não tem casa própria, nem carro próprio (o seu é de um leasing), não tem imóveis em seu nome, é divorciado, e dizem que ele tem uma namorada com quem pouco aparece. Seus filhos moram no Brasil. 

Na sua primeira eleição, em 2016, um perfil publicado no jornal Observador o definia assim: "Magnífico entertainer, abrilhantando sucessivos 'diners en ville', pontuava no centro das salas, contando histórias sempre apenas semi-verdadeiras, exibindo espírito, tendo graça, tirando partido de si mesmo, procurando efeitos, iludindo a verdade para obter ainda mais efeito. Sempre a seu favor." 

Seu pai era um ex-ministro do governo da ditadura salazarista, o que sempre lhe abriu portas. Há décadas é filiado ao Partido Social Democrata (de direita). Católico praticante, defendeu o "não" quando do plebiscito para a legalização do aborto no país e já vetou duas vezes o projeto para a despenalização da eutanásia. 

No campo do espetáculo, sabe-se que já pulou no mar para resgatar dois banhistas em perigo numa praia no Algarve. Vai ao supermercado em calções de banho, paga contas de luz no caixa eletrônico no meio da noite, ficou de peito nu para as fotos em que tomava a vacina contra a covid-19, é visto com frequência em livrarias, de onde sai com sacolas cheias. 

É cordato, simpático, tem modos distintos e está sempre bronzeado. Logo que me mudei para Portugal, lembro-me de uma cena que, como se diz aqui, "fez-me impressão": o presidente chegando em sua casa, em Cascais, dirigindo, tirando a própria mala do bagageiro enquanto os repórteres lhe faziam perguntas aleatórias. A fachada da residência, que não tem muros e cuja porta dá direto para a rua, era discreta e espartana. Ele aluga a propriedade desde 1975. Uma vez, eu o vi quando almoçava sozinha no restaurante O Nobre, que ele frequenta com assiduidade. 

Não estava acompanhado de seguranças, nem de aspones, mas sim de um séquito de outros homens de cabeça branca e terno azul. Ao contrário do que eu esperava, nenhum dos convivas que já lá estavam se levantou da cadeira para cumprimentá-lo. Era ele quem ia de mesa em mesa como o anfitrião de um coquetel formal. Não veio até a minha, mas acenou-me de longe com a cabeça. 

Algumas delas não se davam nem ao trabalho de parar de mastigar. Não era sinal de desprezo, era como fariam se um velho amigo com quem tinham intimidade os abordassem. Aquilo me mostrou alguma coisa sobre o país, sobre os portugueses, sobre o poder e como uma autoridade lida com ele. 

Havia algo de austeridade com comedimento, formalidade com um tipo de decência. Um cientista político definiu o jeito de ser de Marcelo como "populismo institucional". Muito da popularidade do presidente é resultado de seu passado como comentador e analista político em programas de televisão. Professor de direito e jornalista, ele também foi um dos fundadores do semanário Expresso. Também por isso conta com uma grande simpatia da mídia em geral. 

Em Portugal, o presidente não é um papel decorativo. Ele é o chefe das Forças Armadas, suas atribuições e poderes incluem dissolver o Parlamento e nomear o primeiro-ministro, vetar leis ou declarar estado de emergência (como fez durante a pandemia). Uma das características sempre lembradas sobre seu governo é a civilizada convivência entre a direita (ele) e a esquerda (o primeiro-ministro António Costa), em prol da estabilidade política e da governabilidade no país. 

Foi duramente atacado quando ajudou a costurar um governo de seu partido nos Açores com o apoio da extrema direita. Também é criticado por não tomar posições claras sobre assuntos polêmicos, o que, de certa forma, o ajuda a manter um bom trânsito entre eleitores de vários matizes ideológicos. De acordo com uma pesquisa publicada no jornal Diário de Notícias, 83% dos portugueses sentem simpatia pelo presidente.

No Liceu de Pedro Nunes, o presidente caminhava cercado de adolescentes. Meu filho e os amigos o esperavam na porta da escola. Quando lhe pediram um autógrafo e uma foto, ele não titubeou. Tirou o celular da mão de um deles, estendeu o braço direito na altura do rosto e passou, ele próprio, a fazer inúmeras selfies de si mesmo rodeado pelos jovens em regozijo. Era por volta da uma da tarde, quando recebi no WhatsApp a selfie do meu filho com os colegas e o presidente em primeiro plano. Os quatro alunos sorriam para a câmera num misto de surpresa e orgulho. 

No Instagram, ele fez uma legenda: "Hoje, tive a grande honra de conhecer o grande presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Muito obrigado pelas fotos e pelo autógrafo. Estou muito grato por ter tido essa experiência". Em casa, discorreu sobre o encontro e se disse surpreso pelo fato de o presidente ser visto como uma celebridade, como um "artista de novela". Minha filha, do sétimo ano, postou um longo "stories" com a balbúrdia nos corredores. O comentário de seu amigo foi: "Imagina se isso ia acontecer no Brasil". 

Já era tarde da noite quando meu filho foi tomado por pensamentos materialistas de cunho argentário. "Quanto será que vale o autógrafo dele?".

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