quarta-feira, 28 de setembro de 2022

MEUS NOVOS VIZINHOS


Num fim de tarde da outra semana, passaram por mim, surgidos do nada. Dois casais negros, soberbos, silenciosos e indiferentes. Ignoraram a minha presença. Só hoje fui informado de que eram da mui respeitável família Carthatidea, o que, para quem não sabe, representa o nec plus ultra da aristocracia viária americana.

Hoje também, de manhã cedo, quando fui dar de beber aos meus morangueiros – sete frutinhas bem vermelhinhas me esperavam -  vi que tinham elegido as torres da igreja de Nossa Senhora da Conceição do Boqueirão, belíssima fachada barroca, para fixar residência. Quatro urubus sobre fundo de bulbos azulejados.

Você, leitor, que talvez não tenha nem sessenta anos, coitado, não deve ter frequentado O Tempo, do Joaquim, lá no Largo do Pelourinho. Uma entranha estranha, meio templo, meio esconderijo. Undigrundi, este boteco. Decorado com garrafas de aguardente contendo todo tipo de folhas e bichos, o longo espaço descia por vários patamares até o quintal onde, no topo de uma coluna, reinava de poder divino e absoluto, um urubu. Cada manhã, recebia sua oferenda de carne crua. Bons tempos aqueles, quando se podia comprar carne para dar aos urubus...

Recém-chegado da Europa, entre tantas coisas jamais por mim imaginadas, fiquei fascinado por esta ave bizarra de aspecto rebarbativo. E passado quase meio século, eis que quatro imensos abutres resolveram vir morar por aqui, bem perto. Oh! Amigo! Não me venha com piada do tipo: “...aguardando sua carniça, véio! ” que não sou parsi indiano!

Os meus são urubus-de-cabeça-preta (Coragyps atratus). Não é cultura, sejamos honestos, é Google. E pertencem à família dos condores. Agora, sim, marquei um ponto contra os que torciam o nariz ao ler meu texto. Urubu não é chique, mas condor, moça, é muito mais que bolsa Louis Vuitton.

Deitado na rede, deixo meu olhar seguir o voo lento das imensas asas escuras de extremidades brancas. Flutuam sem um grito, sem um pio, ao acaso de brisas misteriosas que mal deslocam a ponta dos galhos da imensa cajazeira. Algumas folhas caem rodopiando. Uma borboleta branca, outra alaranjada e uma terceira amarela, inebriadas de vaidade, se amostrando. Algum desfile de moda? Meus negros vizinhos navegam bem acima do quartel dos fuzileiros navais, descem sem pressa pelos lados do Moinho Bahia, voltam para posar por breves instantes na cajazeira e, novamente se lançam ao ar azul, branco e dourado. Diria en passant que se alguém sugerir que estas mal traçadas são como espelho ao “Os que voam” do Rui Espinheira, charmosa crônica publicada nestas mesmas páginas, pode até ter razão. Machado de Assis não foi compadre de Eça de Queiroz? E se o mesmo alguém falar em modéstia, saiba que desprezo irremediavelmente a palavra.

Dimitri Ganzelevitch

1 de outubro 2022

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Um comentário:

  1. Antônio Maria radialista, jornalista, compositor parceiro Dolores Durant, amante de Danusa Leão morreu cedo e não conseguiu publicar seu sonhado livro de cônicas Vento Vadio. Recentemente um jornalista conseguiu reunir suas crônicas de jornal e publicar seu livro póstumo.
    A maioria de sua crônicas, Dimitri, são inéditas e jazem num baú. O que você está esperando para publicar sua crônicas sobre urubus, borboletas e mariposas?
    Um abraço
    Paulo

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