sábado, 24 de dezembro de 2022

NATAL DE RUA

 Natal sem teto: moradores em situação de rua lotam Centro de Salvador


‘É horrível viver assim’, conta idosa que está nas ruas há um mês

Enrolada em um lençol, deitada no banco da praça e segurando um pedaço de pão seco. Assim tem sido os dias que antecedem o Natal da doméstica Maria Celeste de Brito, aos 60 anos. A aproximação da festa traz de volta a figura do Papai Noel e dos presentes, mas também faz crescer um fenômeno que a maioria da população prefere ignorar. O número de pessoas vivendo em mendicância e situação de rua aumenta em toda a cidade.

Foto: D. Ganzelevitch

No relento há cerca de um mês, depois de deixar a casa em que morava de aluguel no Alto das Pombas, Maria Celeste está vivendo na Praça da Piedade, no Centro. Durante o dia, pede ajuda para sobreviver. À noite, entra na fila para pegar um prato de sopa entregue por voluntários, e quando a chuva aperta as igrejas e as marquises são a salvação.

“Eu evito ficar perto das pessoas, porque a violência está muito grande. Procuro sempre um lugar para ficar sozinha e se alguém se aproxima, eu levanto e saio. É horrível viver assim. Não desejo isso a ninguém. Um rapaz passou mais cedo e distribuiu pão, mas não consegui um trocado para comprar um café, então, estou comendo seco”, contou.

Um dia antes, a idosa sofreu uma queda, ralou a perna e machucou o olho. O presente de Natal seria voltar para Amargosa, onde mora a família dela e de onde partiu ainda menina para trabalhar em casas de família, em Salvador. “Mas não vou sem meu filho. Ele tem problema mentais e está no Caps (Centro de Atendimento Psicossocial). Ele me visita toda quarta-feira, e está perto de receber alta. Ele é músico”, contou, orgulhosa.

Foto: D.G.

Eles estão por toda a parte, nas praças, nos canteiros das avenidas, na porta dos mercados, no transporte coletivo e catando latinhas pela cidade. Só não vê quem não quer. Em alguns locais a concentração é tão grande que durante o dia há brigas por pontos de atuação, e a noite existe disputa por um espaço para dormir embaixo dos viadutos.

Atualmente, um censo está em andamento para determinar a quantidade e o perfil dessa população em Salvador, mas o último estudo do Projeto Axé, realizado em 2017, apontava a existência de 14 mil a 17 mil pessoas em situação de rua em Salvador. Um cenário que foi agravado pela pandemia. O coordenador de Arte Educação do Projeto, Marcos Cândido, contou que a demanda começa a aumentar no final de setembro.


“Durante muito tempo se falou em morador de rua, mas sabemos que muitas dessas pessoas têm aquilo que o IBGE classifica como domicílios improvisados, barracas, uma casa ou locais onde eles moram ou ficam quando a chuva aperta. Muitos não dormem todos os dias na rua, mas ainda assim estão em situação de rua. É preciso ter cuidado, porque dependendo do conceito podemos tornar pessoas invisíveis”, afirmou.

A recicladora Regineide Almeida, 40 anos, por exemplo, tem onde morar, mas a situação financeira da família é delicada. Desde o dia 4 de dezembro, ela, três filhos e a neta, uma bebê de apenas dois meses, estão morando no canteiro central do Vale de Nazaré. O irmão dela é paraplégico e também está dormindo ao relento. Sentada sobre um amontoado de papelão transforado em cama, a mulher contou que cresceu nas ruas.

Foto: D.G.

“Comecei a dormir na rua quando tinha de 8 para 9 anos. Minha mãe teve oito filhos e nessa época de Natal a gente ia para a rua pedir ajuda. Criei meus cinco filhos assim também. A gente não vive só de Bolsa Família e doação, eu cato latinha, trabalho nas festas, faço bicos, enfim, eu me viro, mas as coisas estão complicadas”, contou.

A família recebeu algumas fraldas, alimentos, roupas e até um carrinho usado para a bebê Brenda. “Vamos ficar por aqui até o dia 26 de dezembro. O que conseguimos de doação vamos regrando durante o mês de janeiro até o carnaval, quando começam a aparecer serviços para eu fazer. O restante do ano a gente leva do jeito que dá”, disse.

Foto: D.G.

Desemprego
Atualmente, cinco famílias estão no local, mas o número cresce a cada dia. Para quem trabalha diariamente atendendo essas pessoas o censo vai confirmar o que já pode ser percebido a olho nu. A assistente social do Núcleo de Atendimento Multidisciplinar da População em Situação de Rua (Núcleo Pop Rua) da Defensoria Pública, Sandra Carvalho, explicou o cenário.

“O Núcleo realiza atendimento fixo e itinerante desde 2018 e não suspendeu as atividades nem durante a pandemia. Para quem viu o cenário antes da pandemia e o observa agora está claro que houve um aumento significativo dessa população. E a principal motivação é o desemprego”, afirmou.

Foto: D.G.


Ela explicou que o desemprego empurrou parte dos brasileiros para a vulnerabilidade social e nessas condições de vida muitos recorreram à rua para conseguir sobreviver. “A maioria da população é formada por homens negros, de 25 a 45 anos, mas nessa época do ano aumentam o número de famílias com crianças”.

Apesar de o motivo que leva uma pessoa a morar na rua ser quase sempre o mesmo, as razões para elas permanecerem nessas condições mudam de caso a caso. O envolvimento com drogas, problemas familiares e dificuldade para voltar a conseguir uma renda ou alugar um imóvel são algumas das razões citadas.

Foto: D.G.

Pesquisa
Em agosto, a Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre) firmou uma parceria com o Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao Adolescente para a realização de um censo. A Pesquisa de Mapeamento, Contagem e Caracterização da População em situação de Rua de Salvador está prevista para ser concluída em julho de 2023.

Foto: D.G.

“O objetivo é mapear, contar e caracterizar as situações de vulneração e violações de direitos vividas pela população em situação de rua, ancorada justamente na necessidade de construção e monitoramento de dados validados e confiáveis que correspondam à realidade das pessoas de diferentes faixas etárias que estão nesta situação em Salvador”, diz a pasta, em nota.

Foto: D.G.

A Sempre informou também que as equipes em campo percebem o aumento de pessoas nessa situação durante o mês de dezembro, e frisou que o censo vai apresentar os dados. A pasta disse também que possui 17 unidades de acolhimento, Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua e Núcleo de Ações Articuladas que, em 2021, atenderam 196 mil pessoas nessas condições.



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