Mobilização pede o tombamento de toda a área do Abaeté e do Parque das Dunas
Durante trilha ecológica até a Lagoa de Deus, entidades, moradores, terreiros e grupos culturais se unem para conscientizar a preservação do parque e reivindicar a aceleração no processo de reconhecimento do Abaeté como patrimônio
Priscila Natividade
priscila.oliveira@redebahia.com.br
Aos 12 anos, Damiana do Pandeiro começou a lavar roupa com as mulheres mais velhas na lagoa do Abaeté. Foi com o ofício de lavandeira que ela casou e criou os filhos e fez também muito samba de bacia na beira da lagoa. “Quando a gente ia lavar roupa no Abaeté, inventamos de pegar a bacia e fazer samba depois de lavar roupa, criando essa tradição. Hoje a gente vê a lagoa morrendo, mas não foi o sabão que poluiu o Abaeté, mas o esgoto. Estamos aí buscando juntos para ver o que mãe Oxum faz. O Abaeté não pode ficar assim”.
Mestra Damiana do Pandeiro, 72 anos, é uma figura icônica do Abaeté. Mesmo lugar onde o Grupo de Trabalho (GT) de Patrimonialização reivindica o tombamento do Abaeté, não só da lagoa, mas de todo o ecossistema que integra o parque. Desde sexta-feira (01) acontece o Seminário Xirês Patrimoniais que busca chamar a atenção da comunidade para esse movimento. Durante os três dias de programação, além de roda de falas e apresentação de grupos culturais, vivências e ocupação de espaços do parque.
Na manhã deste domingo (03), uma trilha ecológica com banho na Lagoa de Deus foi mais uma tentativa de levar o público a conhecer o patrimônio ecológico que está ali na área de restinga. O GT é formado por coletivos, associações, terreiros e movimentos socioambientais da cidade. “Queremos mostrar que o Abaeté é todo um sistema ecológico. É aqui que está o último resquício de restinga de Salvador que continua vivo, mesmo estrangulado pelo sistema urbano. A Lagoa de Deus é uma lagoa limpa como o Abaeté um dia já foi. É a mais preservada, porém, que também está ameaçada, sobretudo, pela ampliação do aeroporto de Salvador”, afirma a artista, educadora, antropóloga, curadora dos Xirês Patrimoniais, Clara Domingas.
Clara Domingas
"Queremos mostrar que o Abaeté é todo um sistema ecológico. É aqui que está o último resquício de restinga de Salvador que continua vivo, mesmo estrangulado pelo sistema urbano"
Nativa de Itapuã, Clara também é representante do GT de Patrimonialização. “Se as coisas continuarem como estão é praticamente decretar a morte do sistema. O pensamento urbanista tem que ser diferenciado para essa região. Impermeabilizar, significa a desertificação do Abaeté. A gente está perdendo sem ter a noção disso. O tombamento é mais um instrumento que dispara a patriamonialização na ativação da comunidade para reconhecer seus bens e ocupá-los. E a gente não perde só um ecossistema, mas também tradições sagradas e ancestrais. O tombamento desperta para essa preservação”, complementa.
Entre as dunas
A trilha começou por volta das 9h da manhã, após a concentração em uma área conhecida como Trak Trak, na Alameda da Praia de Potengi, próximo à estátua de Mãe Stela de Oxóssi. No caminho, muita vegetação nativa e a presença de espécies como canela-de-ema, cajueiro brabo, mangaba, cara-de-palhaço, orquídeas, bromélias. Teve gente que contou que o cajueiro bravo, uma planta que é tipo lixa, era usada pelos mais velhos para ariar panelas, inclusive, as de Cira do Acarajé. Ensinamentos foram compartilhados ainda sobre as plantas medicinais, entre elas, a guajiru, que a raiz é boa para diabetes.
“A restinga é uma paisagem resultado de movimentação do mar, transgressões e regressões, avanços e recuos do mar que foram criando as dunas. Também os ventos e essa própria movimentação do mar vai movimentando essas dunas e elas foram criando anfiteatros para esses afloramentos de lençóis freáticos e assim formando as lagoas. A narrativa de que a restinga é um deserto sem vida é o que mais a gente precisa combater, mostrar a biodiversidade absolutamente rica desse ambiente que faz parte do domínio da Mata Atlântica, mas tem peculiaridades”, explica Clara.
Em seguida, após uma caminhada em torno de 20 minutos, o grupo de chegou até a Lagoa de Deus. Dunas de areia branca, água dourada e muita vegetação por perto. O final do trajeto deu em samba e em um banho de água doce, com saudação da Oxum e Nanã mais as cantorias das Matriarcas da Pedra de Xangô e o Samba de bacia de Mestra Damiana.“O objetivo dos Xirês Patrimoniais é o tombamento do Abaeté, mas para isso a gente precisa convocar principalmente a comunidade que é quem conhece as raízes do que tem e juntamente com a frente técnica e acadêmica oficializar esse tombamento. Por isso que estamos aqui unindo forças”, diz a sambadeira de Itapuã e zeladora do Coletivo Nosso Quilombo, Verônica Mucúna. Ela destaca que a Lagoa do Abaeté é a grande mãe, mas que tudo ao seu redor precisa ser preservado. “O significado do tombamento é vida e resistência. A minha preservação, dos meus antepassados e dos que virão”.
Verônica Mucúna
"A gente precisa convocar principalmente a comunidade que é quem conhece as raízes do que tem e juntamente com a frente técnica e acadêmica oficializar esse tombamento. Por isso que estamos aqui unindo forças"
Policial militar e psicóloga, Rair Valente, já veio na Lagoa de Deus há uns 8 anos. “Vivi muitos momentos aqui. Fui da cavalaria da PM e trabalhava nessa região. Lembro da gente a cavalo varando isso tudo. Lembro do silêncio, desse prazer de trabalhar em um ambiente natural, em contato com um ecossistema preservado, com toda essa natureza”, conta.
O Abaeté também faz parte das memórias dos criadores da Escola de sandboard Rangel Souza e Jorge Vox. Eles começaram a praticar o esporte que consiste em descer dunas de areia com uma prancha parecida com a snowboard, nas areias daqui. “Minha relação com a Lagoa de Deus é de muito tempo, porque meu pai trabalhava no Catussaba e quando minha mãe ia levar o almoço dele, eu ainda criança vinha com ela fazendo esse caminho pelas dunas e depois a gente passava o dia todo aqui. Foi onde eu conheci também o sandboard quando ele estava no auge em Salvador”, recorda Rangel.
A lagoa de Deus ocupava um espaço muito maior e mais funda. “Para atravessar, tinha que nadar. Quando a gente acompanha as coisas, sabe de tudo que está acontecendo. Já vi essa lagoa totalmente seca e ela reviveu. O sentimento é de que ela possa ressurgir a qualquer momento”, acrescenta Rangel. Para Jorge Vox, o maior medo são as construções imobiliárias desenfreadas e a condição climática. “Momentos como esse que estamos vendo hoje, fortalecem a preservação. Isso aqui é um grande oásis”.
A presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Maria Marighella, também aproveitou o banho de água doce na Lagoa de Deus durante a programação Seminário Xirês Patrimoniais: “O Abaeté é um desses achados de Salvador que deve ser preservado. Um sítio natural e histórico único e nós temos que proteger esse território. Essa ação aqui hoje é um convite a cidade para conhecer e partilhar. A gente precisa conhecer para proteger”.
O processo de Tombamento da Lagoa do Abaeté tem 38 anos de atraso. Ele foi iniciado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1985, porém, os autos foram oficialmente dados como perdidos pelo órgão em 2013. Reaberto só em 3 de agosto de 2020, existe uma decisão liminar recente, de abril deste ano, que ordena suspensão imediata de intervenções na área ou no perímetro que compõe a Lagoa do Abaeté e o Parque das Dunas. As informações são do GT de Patrimonialização. Para a curadora dos Xirês Patrimoniais e representante do GT, Clara Domingas, o tombamento provisório precisa acontecer com urgência.
“Ele tem como dificultar o processo de intervenções urbanísticas incoerentes com o ecossistema. Existem soluções técnicas construtivas para preservar a restinga. O tombamento é uma tentativa de preservar essa coisa toda que está desaparecendo. Isso já é um fato. A Lagoa do Abaeté não vai sobreviver se não preservar o seu ecossistema”.
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