segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SALVAR O ABAETÉ

 Mobilização pede o tombamento de toda a área do Abaeté e do Parque das Dunas


Durante trilha ecológica até a Lagoa de Deus, entidades, moradores, terreiros e grupos culturais se unem para conscientizar a preservação do parque e reivindicar a aceleração no processo de reconhecimento do Abaeté como patrimônio

  • Priscila Natividade

Publicado em 04/12/2023 

Na programação do seminário, Trilha ecológica e banho na lagoa de Deus foram algumas das vivências no Parque das Dunas

Na programação do seminário, Trilha ecológica e banho na lagoa de Deus foram algumas das vivências no Parque das Dunas. Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

Aos 12 anos, Damiana do Pandeiro começou a lavar roupa com as mulheres mais velhas na lagoa do Abaeté. Foi com o ofício de lavandeira que ela casou e criou os filhos e fez também muito samba de bacia na beira da lagoa. “Quando a gente ia lavar roupa no Abaeté, inventamos de pegar a bacia e fazer samba depois de lavar roupa, criando essa tradição. Hoje a gente vê a lagoa morrendo, mas não foi o sabão que poluiu o Abaeté, mas o esgoto. Estamos aí buscando juntos para ver o que mãe Oxum faz. O Abaeté não pode ficar assim”.

Mestra Damiana do Pandeiro, 72 anos, é uma figura icônica do Abaeté. Mesmo lugar onde o Grupo de Trabalho (GT) de Patrimonialização reivindica o tombamento do Abaeté, não só da lagoa, mas de todo o ecossistema que integra o parque. Desde sexta-feira (01) acontece o Seminário Xirês Patrimoniais que busca chamar a atenção da comunidade para esse movimento. Durante os três dias de programação, além de roda de falas e apresentação de grupos culturais, vivências e ocupação de espaços do parque.


Mestra Damiana  chamou para um samba de bacia na beira da lagoa de Deus

Mestra Damiana chamou para um samba de bacia na beira da lagoa de Deus. Crédito: Paula Fróes

Na manhã deste domingo (03), uma trilha ecológica com banho na Lagoa de Deus foi mais uma tentativa de levar o público a conhecer o patrimônio ecológico que está ali na área de restinga. O GT é formado por coletivos, associações, terreiros e movimentos socioambientais da cidade. “Queremos mostrar que o Abaeté é todo um sistema ecológico. É aqui que está o último resquício de restinga de Salvador que continua vivo, mesmo estrangulado pelo sistema urbano. A Lagoa de Deus é uma lagoa limpa como o Abaeté um dia já foi. É a mais preservada, porém, que também está ameaçada, sobretudo, pela ampliação do aeroporto de Salvador”, afirma a artista, educadora, antropóloga, curadora dos Xirês Patrimoniais, Clara Domingas.


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Clara Domingas

"Queremos mostrar que o Abaeté é todo um sistema ecológico. É aqui que está o último resquício de restinga de Salvador que continua vivo, mesmo estrangulado pelo sistema urbano"

Nativa de Itapuã, Clara também é representante do GT de Patrimonialização. “Se as coisas continuarem como estão é praticamente decretar a morte do sistema. O pensamento urbanista tem que ser diferenciado para essa região. Impermeabilizar, significa a desertificação do Abaeté. A gente está perdendo sem ter a noção disso. O tombamento é mais um instrumento que dispara a patriamonialização na ativação da comunidade para reconhecer seus bens e ocupá-los. E a gente não perde só um ecossistema, mas também tradições sagradas e ancestrais. O tombamento desperta para essa preservação”, complementa.

Entre as dunas

A trilha começou por volta das 9h da manhã, após a concentração em uma área conhecida como Trak Trak, na Alameda da Praia de Potengi, próximo à estátua de Mãe Stela de Oxóssi. No caminho, muita vegetação nativa e a presença de espécies como canela-de-ema, cajueiro brabo, mangaba, cara-de-palhaço, orquídeas, bromélias. Teve gente que contou que o cajueiro bravo, uma planta que é tipo lixa, era usada pelos mais velhos para ariar panelas, inclusive, as de Cira do Acarajé. Ensinamentos foram compartilhados ainda sobre as plantas medicinais, entre elas, a guajiru, que a raiz é boa para diabetes.



Na trilha, contato com diversas espécies nativas da restinga

Na trilha, contato com diversas espécies nativas da restinga. Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

“A restinga é uma paisagem resultado de movimentação do mar, transgressões e regressões, avanços e recuos do mar que foram criando as dunas. Também os ventos e essa própria movimentação do mar vai movimentando essas dunas e elas foram criando anfiteatros para esses afloramentos de lençóis freáticos e assim formando as lagoas. A narrativa de que a restinga é um deserto sem vida é o que mais a gente precisa combater, mostrar a biodiversidade absolutamente rica desse ambiente que faz parte do domínio da Mata Atlântica, mas tem peculiaridades”, explica Clara.


Em seguida, após uma caminhada em torno de 20 minutos, o grupo de chegou até a Lagoa de Deus. Dunas de areia branca, água dourada e muita vegetação por perto. O final do trajeto deu em samba e em um banho de água doce, com saudação da Oxum e Nanã mais as cantorias das Matriarcas da Pedra de Xangô e o Samba de bacia de Mestra Damiana.“O objetivo dos Xirês Patrimoniais é o tombamento do Abaeté, mas para isso a gente precisa convocar principalmente a comunidade que é quem conhece as raízes do que tem e juntamente com a frente técnica e acadêmica oficializar esse tombamento. Por isso que estamos aqui unindo forças”, diz a sambadeira de Itapuã e zeladora do Coletivo Nosso Quilombo, Verônica Mucúna. Ela destaca que a Lagoa do Abaeté é a grande mãe, mas que tudo ao seu redor precisa ser preservado. “O significado do tombamento é vida e resistência. A minha preservação, dos meus antepassados e dos que virão”.

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Verônica Mucúna

"A gente precisa convocar principalmente a comunidade que é quem conhece as raízes do que tem e juntamente com a frente técnica e acadêmica oficializar esse tombamento. Por isso que estamos aqui unindo forças"
O banho de lagoa terminou em roda de  samba com as Matriarcas da Pedra de Xangô e o Samba de bacia de Mestra Damiana

O banho de lagoa terminou em roda de samba com as Matriarcas da Pedra de Xangô e o Samba de bacia de Mestra Damiana. Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

Policial militar e psicóloga, Rair Valente, já veio na Lagoa de Deus há uns 8 anos. “Vivi muitos momentos aqui. Fui da cavalaria da PM e trabalhava nessa região. Lembro da gente a cavalo varando isso tudo. Lembro do silêncio, desse prazer de trabalhar em um ambiente natural, em contato com um ecossistema preservado, com toda essa natureza”, conta.

O Abaeté também faz parte das memórias dos criadores da Escola de sandboard Rangel Souza e Jorge Vox. Eles começaram a praticar o esporte que consiste em descer dunas de areia com uma prancha parecida com a snowboard, nas areias daqui. “Minha relação com a Lagoa de Deus é de muito tempo, porque meu pai trabalhava no Catussaba e quando minha mãe ia levar o almoço dele, eu ainda criança vinha com ela fazendo esse caminho pelas dunas e depois a gente passava o dia todo aqui. Foi onde eu conheci também o sandboard quando ele estava no auge em Salvador”, recorda Rangel.

 

A lagoa de Deus ocupava um espaço muito maior e mais funda. “Para atravessar, tinha que nadar. Quando a gente acompanha as coisas, sabe de tudo que está acontecendo. Já vi essa lagoa totalmente seca e ela reviveu. O sentimento é de que ela possa ressurgir a qualquer momento”, acrescenta Rangel. Para Jorge Vox, o maior medo são as construções imobiliárias desenfreadas e a condição climática. “Momentos como esse que estamos vendo hoje, fortalecem a preservação. Isso aqui é um grande oásis”.

A presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Maria Marighella, também aproveitou o banho de água doce na Lagoa de Deus durante a programação Seminário Xirês Patrimoniais: “O Abaeté é um desses achados de Salvador que deve ser preservado. Um sítio natural e histórico único e nós temos que proteger esse território. Essa ação aqui hoje é um convite a cidade para conhecer e partilhar. A gente precisa conhecer para proteger”.

O processo de Tombamento da Lagoa do Abaeté tem 38 anos de atraso. Ele foi iniciado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1985, porém, os autos foram oficialmente dados como perdidos pelo órgão em 2013. Reaberto só em 3 de agosto de 2020, existe uma decisão liminar recente, de abril deste ano, que ordena suspensão imediata de intervenções na área ou no perímetro que compõe a Lagoa do Abaeté e o Parque das Dunas. As informações são do GT de Patrimonialização. Para a curadora dos Xirês Patrimoniais e representante do GT, Clara Domingas, o tombamento provisório precisa acontecer com urgência.

“Ele tem como dificultar o processo de intervenções urbanísticas incoerentes com o ecossistema. Existem soluções técnicas construtivas para preservar a restinga. O tombamento é uma tentativa de preservar essa coisa toda que está desaparecendo. Isso já é um fato. A Lagoa do Abaeté não vai sobreviver se não preservar o seu ecossistema”.

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