terça-feira, 30 de dezembro de 2025

O ALMIRANTE NEGRO

MPF processa União por ataques da Marinha à memória de João Cândido Felisberto

29 de dezembro de 2025, 19h51

O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública contra a União com o objetivo de responsabilizá-la por dano moral coletivo decorrente de manifestações oficiais da Marinha do Brasil consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata. A ação busca, além da reparação econômica, impedir novos atos que desabonem a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como “Almirante Negro”.

Reprodução

João Cândido liderou a Revolta da Chibata, que reivindicou melhores condições para marinheiros em 1910

De acordo com o MPF, as manifestações da Marinha afrontam a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a Lei 11.756/2008, que concedeu anistia a João Cândido e aos demais participantes da revolta de 1910.

Para o procurador adjunto dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio Araujo, que assina a ação, a anistia tem efeitos jurídicos e simbólicos concretos e impõe ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva associada à luta pelo fim dos castigos físicos na Marinha.

Na ação, o MPF pede que a Justiça Federal declare a responsabilidade civil da União, com o pagamento de R$ 5 milhões por dano moral coletivo, e determine que o poder público se abstenha de novas manifestações ofensivas à memória de João Cândido.

O valor deverá ser destinado exclusivamente a projetos e ações voltados à valorização da memória do líder da Revolta da Chibata, conforme regras estabelecidas em resolução conjunta do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.

Inquérito civil

A ação tem como base elementos reunidos em inquérito civil instaurado a partir de demanda da sociedade para valorização da memória de João Cândido em âmbito nacional. O MPF sustenta que persistem práticas institucionais de ataque à imagem do líder da Revolta da Chibata, o que configura continuidade da perseguição histórica sofrida pelo marinheiro, inclusive após sua morte.

Entre os fatos destacados, está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados manifestando oposição ao projeto de lei que propõe a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.

No documento, a Revolta da Chibata é classificada como “deplorável página da história nacional” e “fato opróbio”, relegando ainda características negativas aos revoltosos. O mesmo entendimento foi reproduzido em documentos enviados ao MPF após recomendação do órgão.

As qualificações representam, segundo a ação, ataque direto à memória do anistiado e aos valores de justiça e igualdade reconhecidos pela legislação.

Diante dessas manifestações, o MPF expediu recomendação para que a Marinha se abstivesse de praticar atos que violassem a memória de João Cândido. A resposta oficial, no entanto, afirmou não haver providências a serem adotadas, com o argumento de que as declarações refletiam apenas a “perspectiva histórica” da instituição. Para o MPF, a posição indica a intenção de manter discursos incompatíveis com a anistia legalmente concedida.

Direito à memória

Na ação, o MPF ressalta que o direito à memória é assegurado na ordem constitucional, relacionado à dignidade da pessoa humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural.

O órgão destaca ainda que a proteção da memória de João Cândido está diretamente ligada ao enfrentamento do racismo estrutural e à valorização das lutas da população negra por cidadania e igualdade no Brasil, temas destacados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 973.

O MPF argumenta que as declarações oficiais da Marinha extrapolam os limites da liberdade de expressão, uma vez que partem de agentes públicos e contrariam normas constitucionais, legais e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, além de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

Segundo a ação, ao desqualificar João Cândido e a Revolta da Chibata, a União viola não apenas a memória do personagem histórico, mas também o direito coletivo da sociedade de conhecer e interpretar sua própria história.

Revolta da Chibata

Os açoites haviam sido abolidos formalmente na Armada em 1889. Um decreto do ano seguinte, porém, criou a Companhia Correcional na Marinha, com vistas a combater pessoas “incorrigíveis e irrecuperáveis” no tribunal do convés, formado às margens dos tribunais legais. Na prática, jovens marinheiros, na sua maioria pretos e pobres, continuaram sendo vítimas dos castigos.

Na revolta, os marinheiros exigiram o fim das chibatadas e denunciaram as péssimas condições de trabalho e a falta de alimentação adequada. Em 22 de novembro de 1910, após receber 250 chibatadas, um dos marinheiros desmaiou, fazendo eclodir a revolta, liderada por João Cândido Felisberto.

O movimento durou quatro dias e parou o Rio de Janeiro, levando o governo da época a negociar com os rebeldes. Após a revolta, os castigos físicos foram finalmente abolidos na Marinha. Com informações da assessoria de imprensa do MPF.

Processo 5138220-44.2025.4.02.5101



Expulsão de João Cândido da Marinha é herança da família de General Heleno para o Brasil

Documento de 1912 revela participação do almirante Augusto Heleno Pereira no conselho que julgou e baniu o líder da Revolta da Chibata dos quadros da Marinha.

Paulo Motoryn

Por mais de um século, a Marinha brasileira tentou apagar a história de João Cândido, o marinheiro negro que liderou, em 1910, a revolta contra os castigos físicos impostos quase exclusivamente a praças negros e pobres.

Um documento oficial do Almirantado Brasileiro obtido pelo Intercept Brasil, de 27 de agosto de 1912, ajuda a explicar quem são os responsáveis pela institucionalização desse apagamento.

O papel, localizado nos arquivos da Biblioteca Nacional, trata da substituição de um juiz no Conselho de Guerra responsável por julgar João Cândido e outros marinheiros.

Com o impedimento do presidente do conselho, a função foi assumida pelo capitão-de-fragata Augusto Heleno Pereira. O nome pode soar familiar: trata-se do avô do general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O Conselho de Guerra foi o instrumento que consolidou a expulsão de João Cândido da Marinha — apesar de ele ter sido absolvido das acusações formais relacionadas à Revolta da Chibata. O julgamento abriu caminho para uma punição administrativa que o empurrou para décadas de perseguição, miséria e ostracismo.

No texto oficial, o Almirantado informa que, diante do impedimento do presidente do conselho, o capitão de fragata Pedro Max Fernando Frontin, Augusto Heleno Pereira foi nomeado para substituí-lo “para os fins convenientes”. A linguagem seca esconde o peso do ato: o conselho julgava os marinheiros que haviam ousado se insurgir contra a chibata, prática herdada da escravidão e mantida na República.

João Cândido já havia passado pelo pior. Preso após a revolta, foi lançado às masmorras da Ilha das Cobras, onde 16 companheiros morreram. Em 1911, acabou internado no Hospital Nacional dos Alienados, acusado de insanidade — diagnóstico que não se sustentou.

Libertado e absolvido em 1912, ainda assim foi expulso da Marinha, sob a alegação de envolvimento em outro levante. A absolvição judicial não o salvou da punição institucional.

“Famílias de Estado reproduzem funções históricas”

Eu apresentei o documento ao sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, professor da Universidade Federal do Paraná, a UFPR, e um dos principais pesquisadores brasileiros sobre genealogias do poder, nepotismo e elites políticas. Para ele, não há coincidência nesse encadeamento histórico.

“As famílias de Estado reproduzem suas funções históricas. A hierarquia, o autoritarismo e a defesa da ordem são transmitidos como herança”, afirma.

Costa de Oliveira é autor, ao lado de Mônica Helena Harrich Silva Goulart, do artigo “A nobreza armada”, publicado na Revista NEP, que analisa a permanência de famílias político-militares no comando do Estado brasileiro. O estudo mostra como generais e ministros do período recente são, em grande parte, filhos, netos e herdeiros diretos de oficiais que ocuparam posições-chave ao longo do século XX, inclusive durante a ditadura militar de 1964.

No caso de Augusto Heleno, a linhagem é explícita: o general é neto do almirante Augusto Heleno Pereira, ex-comandante da Escola Naval; e filho de Ari de Oliveira Pereira, coronel e professor do Exército. “Os privilégios são hereditários”, resume o pesquisador.

Da chibata ao golpe

A história de João Cândido termina oficialmente em 1969, quando morreu pobre, trabalhando como peixeiro na Praça XV, no Rio de Janeiro. O reconhecimento só veio tardiamente: anistia em 2008 e inscrição no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2021. Mesmo assim, a Marinha segue resistindo à reabilitação plena de sua memória.

Agora, em 2025, o Ministério Público Federal moveu ação contra a União por ataques institucionais à memória de João Cândido, após manifestações oficiais da Marinha classificarem a Revolta da Chibata como “página deplorável” da história.

O MPF pede R$ 5 milhões por dano moral coletivo, a serem destinados a projetos de valorização da memória do líder negro, e sustenta que as declarações violam a Constituição, tratados internacionais de direitos humanos e a própria lei de anistia.

Mais de cem anos depois, o neto do oficial que participou do processo que expulsou João Cândido, o general Augusto Heleno, foi condenado por envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado.

‘As famílias de Estado reproduzem suas funções históricas. A hierarquia, o autoritarismo e a defesa da ordem são transmitidos como herança’.

Para Costa de Oliveira, a linha que conecta 1912 a 2025 não é simbólica, mas estrutural: trata-se da permanência de uma cultura de poder que reage com punição sempre que a hierarquia é desafiada — seja por marinheiros negros exigindo dignidade, seja por instituições democráticas limitando a ação de generais.

A vingança da história não devolve a João Cândido os anos roubados, nem apaga o sofrimento imposto pelo Estado. Mas o documento de 1912 faz algo talvez ainda mais incômodo para as Forças Armadas: reinscreve nomes, sobrenomes e responsabilidades em uma narrativa que por décadas tentou se esconder atrás da palavra “ordem”.

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