terça-feira, 25 de julho de 2017

JUSTIÇA SELETIVA

Cara do Pinho Sol x filho da desembargadora: o retrato da Justiça seletiva do Brasil. 

Por Joaquim de Carvalho

Rafael, o cara do Pinho Sol: 16 anos anos de prisão em condenação sem provas.
Desde que foi divulgada a notícia do Habeas Corpus concedido em favor do filho da presidente do TRE do Mato Grosso do Sul, a desembargadora Tânia Freitas Borges, a caixa de comentários do DCM ficou lotada de mensagens que comparam o caso de Breno a outros que envolvem pessoas pobres, em geral negros.
Nenhuma comparação é tão simbólica quanto a de Rafael Braga, conhecido como “o cara do Pinho Sol”.
Em 2013, Rafael, que é negro e era catador de recicláveis (latinha principalmente), foi preso sob acusação de produzir coquetel molotov para uso nos protestos.
Rafael tinha nas mãos duas garrafas, uma de desinfetante, outra de cloro, encontradas, segundo ele, na garimpagem que fazia na rua.
Rafael foi condenado, mesmo sem provas, por fabricar os artefatos explosivos. Quando foi colocado em regime aberto, com tornozeleira, voltou a ser detido, na comunidade do Cruzeiro.
A polícia diz que ele portava 0,6 gramas de maconha e tinha um morteiro. Foi acusado de associação para o tráfico.
Como na prisão em 2013, não havia provas, mas o juiz Ricardo Coronha o condenou assim mesmo, com o argumento de que não poderia duvidar da palavra dos policiais.
“Nos depoimentos policiais acima mencionados, nada há que elida a veracidade das declarações feitas pelos agentes públicos que lograram prender o acusado em flagrante delito. Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo Estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Os testemunhos dos policiais acima referidos foram apresentados de forma coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor, já estando superada a alegação de que uma sentença condenatória não pode se basear neste tipo de prova”, escreveu o magistrado.
Rafael está preso no Complexo de Bangu e não deverá sair de lá tão cedo. Tem uma condenação de 5 anos por causa do desinfetante e outra de 11 anos pela condenação por tráfico.
Já o filho da desembargadora do Mato Grosso do Sul, Breno Solon Borges, tinha sido preso por porte ilegal de arma, foi apanhado em flagrante com 130 quilos de maconha, uma pistola 9 milímetros e farta munição para armas de uso restrito.
Estava sendo investigado por planejar o resgate de um chefe do tráfico no Estado, recolhido numa penitenciária, e por negociar droga com o PCC. É dono de várias empresas e ostentava, no facebook, uma vida nababesca.
Breno ficou três meses na cadeia e conseguiu o habeas corpus para se tratar numa clínica, pois teria síndrome de boderline e seria dependente químico.
A libertação dele foi concedida por dois desembargadores, depois que um juiz de primeira instância, dada a gravidade da acusação, não concordou em transferir Breno para uma clínica.
O compromisso da defesa é que a desembargadora Tânia será tutora do filho.
139 quilos x 0,6 gramas
Os dois casos escancaram a seletividade da Justiça brasileira.. Um caso é no Rio, outro no Mato Grosso do Sul, mas nas duas decisões há um fundamento subjetivo: a justiça de classe.
O que vale para uns, não vale para outros.
Este mesmo princípio de dois pesos e duas medidas se aplica a ação judiciária em casos de administração pública.
A jornalista Maria Cristina Fernandes mostrou como o governo do Estado de São Paulo está sendo blindado pelo Judiciário. Alckmin ganhou todas as vezes em que precisou recorrer à presidência do Tribunal de Justiça, em ações de seu interesse.
O levantamento foi feito por uma pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Luciana Zaffalon, que analisou 566 processos que passaram pela presidência do TJ entre 2012 e 2015.
O estudo, base da tese de doutorado da pesquisadora, será divulgado em livro, com o título “Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: Blindagens e Criminalizações a partir do Imbricamento das Disputas do Sistema de Justiça Paulista com as Disputas da Política Convencional”.
Fernando Haddad, quando foi prefeito de São Paulo, chegou a comparar as ações do Ministério Público propostas contra sua gestão com a da gestão anterior, de José Serra/Gilberto Kassab.
A desproporção era 5 para 1.
Um exemplo dessa seletividade: a Justiça proibiu Haddad de usar o dinheiro arrecado com as multas para pagar salários na CET. Já na gestão de João Doria, a mesma justiça liberou as multas para pagar os agentes de trânsito.
O modelo de uma balança com dois pesos e duas medidas vem da cúpula do Judiciário.
Como entender que o mensalão do PSDB, de Minas Gerais, gênese do mensalão do PT, em Brasília, não teve decisão efetiva ainda?
O caso é anterior, mas o Supremo não quis julgá-lo e mandou para a primeira instância, quando o ex-presidente nacional do partido, Eduardo Azeredo, renunciou ao mandato para perder o foro privilegiado.
Esse mesmo princípio não valeu para o caso de José Genoíno.
Lula foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal de assumir a Casa Civil, no governo Dilma, numa decisão fundamentada pela interpretação de que era desvio de finalidade: ele estaria sendo nomeado para garantir foro privilegiado.
No governo Temer, Moreira Franco foi promovido a ministro, através de medida provisória, depois que foi alvo da denúncia de corrupção e, com isso, garantiu o foro privilegiado.
O mesmo Supremo que proibiu Lula de assumir o Ministério, numa época em que a presença de Lula, como articulador político de Dilma daria outro rumo ao governo, liberou o foro privilegiado para Moreira Franco.
Justiça pune os pobres e pune também quem faz políticas para pobres e poupa os ricos e poupa também quem faz política para ricos.
Há muitos outros exemplos.
No gabinete dos juízes brasileiros, reina a máxima expressa pelo ministro Marco Aurélio Mello, na decisão que devolveu o mandato para o senador Aécio Neves — flagrado pedindo 2 milhões de reais a um empresário corrupto a quem oferecia vantagens.
O ministro disse que se tratava de um homem com “carreira notável”, “chefe de família”.
A decisão que libertou Breno, filho de desembargadora e liberado pela ação de dois desembargadores, segue o mesmo padrão cultural:
Ele também pertence a um mundo de pessoas com carreiras notáveis e de chefes da família.
Já para Rafael, o cara do Pinho Sol, a realidade é a que foi expressa num muro da comunidade onde ele tirou foto, no curso período em que cumpriu pena em regime aberto (com tornozeleira):
— O Estado te esmaga de cima para baixo.
Por conta desta foto, exposta em rede social, passou dez dias em solitária.
A Justiça é implacável. Com os pobres.
Breno, filho da desembargadora: livre, apesar da fartura de provas.

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