terça-feira, 1 de agosto de 2023

A DECADÊNCIA DA ORLA DE SALVADOR

 JORNAL DA METROPOLE

Mergulhada no descaso: Orla de Salvador vive abandono após derrubada de barracas e afeta banhistas e comerciantes

Demolição de barracas de praia e série de equívocos das gestões municipais condenaram o lazer mais democrático da cidade e a fonte de renda de milhares de comerciantes


Foto: Metropress/Leonardo Lima

Por: Mariana Bamberg no dia 27 de julho de 2023 

Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 27 de julho de 2023

Não é conversa saudosista. Patamares, Itapuã, Pituaçu, Jaguaribe e tantas outras não são mais como antes. Perdoem-nos pelo pobre trocadilho, mas há 13 anos as paisagens das praias de Salvador vivem um eterno inverno. E não é só para quem costumava frequentar as barracas que se distribuíam pelos 64 km de areia do litoral soteropolitano ou para quem sobrevivia disso. A perda foi geral. A demolição das barracas de praia e a inexistência de um projeto que as substituíssem significaram a morte do lazer mais democrático da cidade e o apagamento de um dos atributos mais cobiçados de Salvador: o mar paradisíaco de águas mornas.

A baixa temporada, que parece não ter fim, começa com uma decisão da Justiça Federal em 2007 e vai ganhando fôlego ao longo de uma série de trapalhadas, equívocos e principalmente descaso da gestão municipal. Desde então, entra verão, sai verão, vai João Henrique, vem ACM Neto, chega Bruno Reis, e a orla de Salvador continua entregue.

Mar de prejuízos
Os soteropolitanos mais atentos devem lembrar desse dia. Era uma segunda-feira, 23 de agosto de 2010. A cena não ficava muito atrás de um cenário de guerra. De um lado, funcionários da prefeitura se aglomeravam junto a seus tratores e a policiais federais e militares. Do outro, donos de barracas e famílias que sobreviviam delas montavam barricadas, protestavam, gritavam e resistiam. Teve até quem prometesse greve de fome ou dissesse que preferia incendiar o equipamento do que vê-lo indo ao chão. Mas acabaram vendo. Ao todo, 447 barracas foram demolidas naquele ano. Só na orla de Patamares, foram 3 mil trabalhadores que ficaram, da noite para o dia, sem emprego. Entre os os donos de barracas, o prejuízo chegou a R$1 milhão.  

A derrubada cumpria uma determinação do juiz Carlos D’Ávila, da 13ª Vara da Justiça Federal. De acordo com ele, os equipamentos ocupavam indevidamente uma área da União e ofereciam risco ambiental. Na sua decisão, o magistrado destacava ainda que a orla de Salvador está “favelizada, imunda, entupida de armações em alvenaria”, tudo isso sob “desastrosa permissão de uso” da prefeitura.


Foto: Metropress/Kamille Martinho

O peixe morre pela boca
A cena da derrubada dos equipamentos não é o início desta história e tampouco o fim. Muito antes disso, uma longa batalha já era travada na Justiça.  Os últimos dias das barracas na areia de Salvador começam a ser contados ainda em 2006, na gestão de João Henrique. Na época, o então secretário de Serviços Públicos, Arnando Lessa - hoje vereador pelo PT -, comandou um acordo para a construção de 50 novas estruturas de alvenaria na areia. Por trás do projeto, estavam as milionárias Ambev e a Schincariol. O Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) logo apontou uma série de irregularidades no processo, incluindo o uso de área de preservação permanente.

O Judiciário precisou entrar no barco e embargou as construções, mesmo sob protestos do então prefeito, que afirmava que as estruturas não seriam destruídas nem por cima do seu cadáver. Elas foram. E uma crise se instaurou na gestão municipal. João Henrique e Lessa - que chegou a ser procurado pelo Jornal Metropole, mas não se manifestou - romperam, culparam-se um ao outro e foram até denunciados por crime ambiental. Mas é a partir daí que os olhos da Justiça voltam-se para as barracas de praia e é determinada a demolição de todos os equipamentos na faixa de areia soteropolitana. 

Sozinhos e à deriva
A demolição das barracas chegou a ser impedida por quatro anos com um recurso da prefeitura. Mas depois a própria gestão municipal retirou o pedido judicial e João Henrique passou a culpar a dificuldade de negociação com a defesa dos barraqueiros.

A orla de Salvador acabou ficando sem barracas e sem projeto. E assim permanece até hoje. O plano de revitalização de João Henrique incluia diminuir pela metade a quantidade de equipamentos e retirá-los da areia, mas não deu sequer um passo adiante. Na época, a Justiça informou que analisou o projeto e fez considerações, contudo, não houve retorno algum da gestão municipal.

Promessas à vista
A situação dos barraqueiros parecia ter prazo para mudar: o verão de 2015. Foi a data estipulada pelo então prefeito ACM Neto (na época DEM) para a entrega de um novo projeto de requalificação da orla soteropolitana. Já de início ele chamava atenção. Eram caixas de com 30, 50 e 100 metros quadrados, de madeira, vidro e alvenaria, completamente descoladas da estética da orla de Salvador. Os quiosques distribuídos pelo calçadão foram concedidos, via licitação, a três empresas que iriam construir e depois sublocar os espaços. Metade das estruturas ficou com a Holz Engenharia e a outra metade foi dividida entre a Saneando Projetos de Engenharia e Consultoria Ltda e o consórcio RPH Engenharia e Habita Lazer Salvador Empreendimentos Ltda.

A ideia era fazer algo como na orla do Rio de Janeiro, onde 309 quiosques oferecem serviços e infraestrutura ao banhista. Mas não chegou nem perto. Não era só a estética deslocada, o modelo também era desconectado do comportamento do soteropolitano e não foi suficiente para abraçar os trabalhadores que precisaram deixar as barracas. Desde o início das entregas, já surgiram as reclamações de quem alugava o espaço e tinha que enfrentar o fraco movimento, exigências contratuais e a concorrência dos ambulantes.

Barraqueiro há 30 anos, Nilton Brito desistiu das praias e passou a administrar uma barraca em uma praça na Pituba. Para ele, o novo projeto da orla já indicava que não iria dar certo. “As pessoas não gostam desse modelo. Você pode passar pela orla, vai ver um monte de cadeira vazia. O que elas buscam é infraestrutura, acesso fácil ao mar, água e banheiro, como temos em outras capitais, mas aqui não. E ainda me questiono quem ficou com esses quiosques, porque dos meus colegas barraqueiros, ninguém ficou”, afirma Nilton.


Foto: Metropress/Kamille Martinho

Maré baixa
Para quem insiste em trabalhar na areia, é preciso ser mestre na arte do improviso. O que, na prática, continua conferindo o clima de desorganização às praias soteropolitanas. A diferença agora é que todo dia os barraqueiros precisam enfrentar, além do fraco movimento, a rotina de levar e retirar os equipamentos. Foi essa dinâmica, inclusive, que fez Nilton escolher subir para o asfalto. 

“É um trabalho exaustivo. Ter que comprar gelo, isopor, correr o risco de perder as bebidas. Antes o que tirávamos na praia dava pra sustentar uma família. Hoje não dá mais”, reflete Nilton. 

Para os banhistas a maré também não está para peixe. A família da publicitária Erica Ressurreição, por exemplo, migrou para as praias de Lauro de Freitas e Camaçari. Entre os parentes dela, a reclamação é unânime: falta estrutura para curtir um bom dia de praia na capital. 

“Hoje, antes de chegar, já enfrentamos um assédio enorme para pagar caro por uma cadeira e um sombreiro. Não temos banheiro nem água para tirar o sal. A praia, cheia de lixo. Pelo menos, no tempo das barracas, podia não ser uma orla bonita, mas tinha essa infraestrutura”, reclama.

Morrendo na praia
Depois de anos de batalhas e promessas, a impressão para Nilton e tantos outros barraqueiros e banhistas é que nadaram, nadaram e morreram na praia. No início do mandato do Bruno Reis (União), parecia haver esperança. O prefeito informou que aguardava uma decisão da Superintendência do Patrimônio da União na Bahia (SPU) para que a gestão municipal passasse a administrar a faixa de areia soteropolitana. O pedido, que já havia sido negado em 2019, poderia finalmente ser aceito e os ventos mudariam nas praias da capital baiana. Dois anos depois, nenhuma novidade e também nenhum novo projeto por parte da gestão municipal. Por enquanto, o mar paradisíaco e convidativo permanece apenas nos folhetos de turismo. Na realidade, Salvador segue mesmo sendo citada como exemplo de equívocos e maresia no cuidado com sua orla e com banhistas e comerciantes.

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