JORNAL DA METROPOLE
Mergulhada no descaso: Orla de Salvador vive
abandono após derrubada de barracas e afeta banhistas e comerciantes
Demolição de barracas de praia e série de equívocos das gestões
municipais condenaram o lazer mais democrático da cidade e a fonte de renda de
milhares de comerciantes
Foto: Metropress/Leonardo Lima
Por: Mariana Bamberg no dia 27 de julho de 2023
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em
27 de julho de 2023
Não é conversa
saudosista. Patamares, Itapuã, Pituaçu, Jaguaribe e tantas outras não são mais
como antes. Perdoem-nos pelo pobre trocadilho, mas há 13 anos as paisagens das
praias de Salvador vivem um eterno inverno. E não é só para quem costumava
frequentar as barracas que se distribuíam pelos 64 km de areia do litoral
soteropolitano ou para quem sobrevivia disso. A perda foi geral. A demolição
das barracas de praia e a inexistência de um projeto que as substituíssem
significaram a morte do lazer mais democrático da cidade e o apagamento de um
dos atributos mais cobiçados de Salvador: o mar paradisíaco de águas mornas.
A baixa temporada,
que parece não ter fim, começa com uma decisão da Justiça Federal em 2007 e vai
ganhando fôlego ao longo de uma série de trapalhadas, equívocos e
principalmente descaso da gestão municipal. Desde então, entra verão, sai
verão, vai João Henrique, vem ACM Neto, chega Bruno Reis, e a orla de Salvador
continua entregue.
Mar de prejuízos
Os soteropolitanos mais atentos devem lembrar desse dia. Era uma segunda-feira,
23 de agosto de 2010. A cena não ficava muito atrás de um cenário de guerra. De
um lado, funcionários da prefeitura se aglomeravam junto a seus tratores e a
policiais federais e militares. Do outro, donos de barracas e famílias que
sobreviviam delas montavam barricadas, protestavam, gritavam e resistiam. Teve
até quem prometesse greve de fome ou dissesse que preferia incendiar o
equipamento do que vê-lo indo ao chão. Mas acabaram vendo. Ao todo, 447
barracas foram demolidas naquele ano. Só na orla de Patamares, foram 3 mil
trabalhadores que ficaram, da noite para o dia, sem emprego. Entre os os donos
de barracas, o prejuízo chegou a R$1 milhão.
A derrubada cumpria
uma determinação do juiz Carlos D’Ávila, da 13ª Vara da Justiça Federal. De
acordo com ele, os equipamentos ocupavam indevidamente uma área da União e
ofereciam risco ambiental. Na sua decisão, o magistrado destacava ainda que a
orla de Salvador está “favelizada, imunda, entupida de armações em alvenaria”,
tudo isso sob “desastrosa permissão de uso” da prefeitura.
Foto: Metropress/Kamille Martinho
O peixe morre pela boca
A cena da derrubada dos equipamentos não é o início desta história e tampouco o
fim. Muito antes disso, uma longa batalha já era travada na Justiça. Os
últimos dias das barracas na areia de Salvador começam a ser contados ainda em
2006, na gestão de João Henrique. Na época, o então secretário de Serviços
Públicos, Arnando Lessa - hoje vereador pelo PT -, comandou um acordo para a
construção de 50 novas estruturas de alvenaria na areia. Por trás do projeto,
estavam as milionárias Ambev e a Schincariol. O Ministério Público do Estado da
Bahia (MP-BA) logo apontou uma série de irregularidades no processo, incluindo
o uso de área de preservação permanente.
O Judiciário
precisou entrar no barco e embargou as construções, mesmo sob protestos do
então prefeito, que afirmava que as estruturas não seriam destruídas nem por
cima do seu cadáver. Elas foram. E uma crise se instaurou na gestão municipal.
João Henrique e Lessa - que chegou a ser procurado pelo Jornal Metropole, mas
não se manifestou - romperam, culparam-se um ao outro e foram até denunciados
por crime ambiental. Mas é a partir daí que os olhos da Justiça voltam-se para
as barracas de praia e é determinada a demolição de todos os equipamentos na
faixa de areia soteropolitana.
Sozinhos e à deriva
A demolição das barracas chegou a ser impedida por quatro anos com um recurso
da prefeitura. Mas depois a própria gestão municipal retirou o pedido judicial
e João Henrique passou a culpar a dificuldade de negociação com a defesa dos
barraqueiros.
A orla de Salvador
acabou ficando sem barracas e sem projeto. E assim permanece até hoje. O plano
de revitalização de João Henrique incluia diminuir pela metade a quantidade de
equipamentos e retirá-los da areia, mas não deu sequer um passo adiante. Na
época, a Justiça informou que analisou o projeto e fez considerações, contudo,
não houve retorno algum da gestão municipal.
Promessas à vista
A situação dos barraqueiros parecia ter prazo para mudar: o verão de 2015. Foi
a data estipulada pelo então prefeito ACM Neto (na época DEM) para a entrega de
um novo projeto de requalificação da orla soteropolitana. Já de início ele
chamava atenção. Eram caixas de com 30, 50 e 100 metros quadrados, de madeira,
vidro e alvenaria, completamente descoladas da estética da orla de Salvador. Os
quiosques distribuídos pelo calçadão foram concedidos, via licitação, a três
empresas que iriam construir e depois sublocar os espaços. Metade das
estruturas ficou com a Holz Engenharia e a outra metade foi dividida entre a
Saneando Projetos de Engenharia e Consultoria Ltda e o consórcio RPH Engenharia
e Habita Lazer Salvador Empreendimentos Ltda.
A ideia era fazer
algo como na orla do Rio de Janeiro, onde 309 quiosques oferecem serviços e
infraestrutura ao banhista. Mas não chegou nem perto. Não era só a estética
deslocada, o modelo também era desconectado do comportamento do soteropolitano
e não foi suficiente para abraçar os trabalhadores que precisaram deixar as
barracas. Desde o início das entregas, já surgiram as reclamações de quem alugava
o espaço e tinha que enfrentar o fraco movimento, exigências contratuais e a
concorrência dos ambulantes.
Barraqueiro há 30
anos, Nilton Brito desistiu das praias e passou a administrar uma barraca em
uma praça na Pituba. Para ele, o novo projeto da orla já indicava que não iria
dar certo. “As pessoas não gostam desse modelo. Você pode passar pela orla, vai
ver um monte de cadeira vazia. O que elas buscam é infraestrutura, acesso fácil
ao mar, água e banheiro, como temos em outras capitais, mas aqui não. E ainda
me questiono quem ficou com esses quiosques, porque dos meus colegas
barraqueiros, ninguém ficou”, afirma Nilton.
Foto: Metropress/Kamille Martinho
Maré baixa
Para quem insiste em trabalhar na areia, é preciso ser mestre na arte do
improviso. O que, na prática, continua conferindo o clima de desorganização às
praias soteropolitanas. A diferença agora é que todo dia os barraqueiros
precisam enfrentar, além do fraco movimento, a rotina de levar e retirar os
equipamentos. Foi essa dinâmica, inclusive, que fez Nilton escolher subir para
o asfalto.
“É um trabalho
exaustivo. Ter que comprar gelo, isopor, correr o risco de perder as bebidas.
Antes o que tirávamos na praia dava pra sustentar uma família. Hoje não dá
mais”, reflete Nilton.
Para os banhistas a
maré também não está para peixe. A família da publicitária Erica Ressurreição,
por exemplo, migrou para as praias de Lauro de Freitas e Camaçari. Entre os
parentes dela, a reclamação é unânime: falta estrutura para curtir um bom dia
de praia na capital.
“Hoje, antes de
chegar, já enfrentamos um assédio enorme para pagar caro por uma cadeira e um
sombreiro. Não temos banheiro nem água para tirar o sal. A praia, cheia de
lixo. Pelo menos, no tempo das barracas, podia não ser uma orla bonita, mas
tinha essa infraestrutura”, reclama.
Morrendo na praia
Depois de anos de batalhas e promessas, a impressão para Nilton e tantos outros
barraqueiros e banhistas é que nadaram, nadaram e morreram na praia. No início
do mandato do Bruno Reis (União), parecia haver esperança. O prefeito informou
que aguardava uma decisão da Superintendência do Patrimônio da União na Bahia
(SPU) para que a gestão municipal passasse a administrar a faixa de areia
soteropolitana. O pedido, que já havia sido negado em 2019, poderia finalmente
ser aceito e os ventos mudariam nas praias da capital baiana. Dois anos depois,
nenhuma novidade e também nenhum novo projeto por parte da gestão municipal.
Por enquanto, o mar paradisíaco e convidativo permanece apenas nos folhetos de
turismo. Na realidade, Salvador segue mesmo sendo citada como exemplo de
equívocos e maresia no cuidado com sua orla e com banhistas e comerciantes.
Sem comentários. Meias verdades,
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